Já pratiquei heteronímia. Aqui confesso, sem medo ou vergonha. Deixei de ser réu primário ainda na adolescência e já tenho – quase – 70 anos. Eu o matei sem dó. Foi no braço. O moço – bem mais jovem do que eu – andava chato, fazendo muitas perguntas, tirando o meu sono, querendo atenção além da conta. Um literato intruso. Eu então – numa manhã de sol escaldante – esfolei-o vivo. Bati sem dó. Heterônimos nunca mais! Ele se chamava Ricardo Porto. Era popular nas redes sociais, tinha perfil, e-mails e até biografia. Os heterônimos literários constituem uma personalidade: conjunto complexo e único de características psicológicas que definem como uma pessoa pensa, sente e age, influenciando sua individualidade e as interações com o mundo. Antes de matá-lo – indeciso, talvez – escrevi para o Fernando Pessoa e perguntei sobre sua relação íntima com o Álvaro de Campos. Não deveria: eu sei. Depois que enviei a missiva, arrependi-me, profundamente. Feito estava! Ando lendo o livro “Deixa pra lá - A teoria 'Let Them' ” (Robbins, Mel e Robbins, Sawyer, Best Seller, 2025) e lá aprendi como parar de desperdiçar energia com o que está fora do meu controle e redirecionar o foco para o que realmente importa: Eu! Matei-o, então. A resposta de Pessoa – improvável – chegou. Um bilhete: “Fui como ervas, e não me arrancaram.”. Assinado A.C. Levei o bilhete – e o envelope junto – para uma amiga que conhece profundamente a obra de Fernando Pessoa. Ela olhou, cheirou a carta, o envelope, consultou a caligrafia, o remetente e sentenciou: “Quem escreveu o bilhete não foi o Pessoa, foi o Álvaro de Campos!”. “Isso é possível?”, quis saber. Minha amiga – que pediu para não ser identificada – respondeu: “Sim”. A heteronímia é uma doença cruel, perversa, maligna. Foi até a estante e trouxe o poema abandonado em viagem: “Venho dos lados de Beja. / Vou para o meio de Lisboa. / Não trago nada e não acharei nada. / Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, / E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. / Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: / Fui como ervas, e não me arrancaram.” Viu e disse: “No momento de responder a sua carta, Pessoa estava possuído, tomado, abduzido. Foi o Álvaro de Campos que assinou a carta!”. Sorte a minha: matei Ricardo Porto sem dó, no melhor do sol escaldante. Digo sempre: venho dos lados do Ceará. Não trago nada, nada mais que a minha poesia. E chega!
João Scortecci
Pesquisar
NÃO TRAGO NADA, NADA MAIS QUE A MINHA POESIA / JOÃO SCORTECCI
CHARLES BAUDELAIRE E O CATIVEIRO DO POETA / JOÃO SCORTECCI
Maldito cativeiro inacabado! Disse-me: "Faltou-me o tempo que não tinha!". O poeta francês Baudelaire (Charles-Pierre Baudelaire, 1821 – 1867) morreu no dia 31 de agosto de 1867. É considerado um dos precursores do simbolismo, movimento literário da poesia e das outras artes que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao realismo, ao naturalismo e ao positivismo da época. O seu livro "Les fleurs du mal" ("As flores do mal", 1857) é considerado um marco da poesia moderna. A obra, considerada na época imoral, foi atacada violentamente pela imprensa, censurada pela justiça, multada – cabendo ao escritor, 300 francos, e à editora, 100 francos – e foi recolhida sob acusação de insulto aos bons costumes. E mais, seis poemas de "As Flores do Mal" tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Foram eles: "O ideal", "Hino à beleza", "O perfume exótico", "O cabelo", "Um fantasma" e "O gato". Na solitude do espírito, resfolegou: "Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão!". Uma nova edição, acrescida de 35 poemas, foi publicada em 1861. E somente em 1924, ganhou edição completa, com os seis poemas censurados. Baudelaire, pôde, então, deixar o maldito cativeiro. Em 31 de maio de 1949, 92 anos após sua morte, a Sociedade dos Homens de Letras, num processo diante da Corte de Cassação – tribunal de alta instância – reabilitou Charles Baudelaire e seus editores. Baudelaire morreu de sífilis, em Paris, aos 46 anos de idade, sem a realização em vida do projeto de uma edição final de "As flores do Mal", como era o seu desejo. Escreveu: “Ah! pobre! O veneno e o punhal disseram-me de ar zombeteiro: Ninguém te livrará afinal de teu maldito cativeiro.". E nele, espírito maldito, voou livre, no rabo do gato, descabelado, perfumado, imortal fantasma, no Jardim das Flores do Mal. E lá está.
João Scortecci
AS ROSAS DO JARDIM DE CARLITO MAIA / JOÃO SCORTECCI
O publicitário Carlito Maia (Carlos Maia de Souza, 1924 – 2002) nasceu na cidade de Lavras, região do Campo das Vertentes, estado de Minas Gerais. Dizia sempre: “Vim ao mundo a passeio, não em viagem de negócios”. Mudou-se para a cidade de São Paulo, no início dos anos 1930, e se tornou um dos mais conhecidos publicitários do País. Carlito Maia foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e autor dos slogans "Lula-lá", "OPTei" e “Sem medo de ser feliz”. Segundo seu depoimento, foi: moleque, lavador de xícaras de café, rebelde, office-boy, contestador, reservista de 2ª categoria do Exército Brasileiro, antifascista, sargento da Força Aérea Brasileira, boêmio, despachante policial, picareta, corretor de seguros, "clochard" – pessoa que vive em meio urbano sem trabalho nem domicílio –, ajudante de despachante aduaneiro, "bon-vivant", tradutor público juramentado... Em 1954, ingressou na Escola de Propaganda do Museu de Arte Moderna. Trabalhou nas agências McCann-Erickson, Atlas, Norton, Alcântara Machado, Magaldi, Maia & Prosperi, P. A. Nascimento, Estúdio 13, Esquire e, finalmente, na Rede Globo, onde permaneceu por mais de 20 anos. Em 1978, foi eleito Publicitário do Ano. Entre suas máximas, figuram: “Uma vida não é nada. Com coragem, pode ser muito.”; “Brasil? Fraude explica”; e “Nós não precisamos de muitas coisas, só uns dos outros”. São dele também as expressões “Tremendão”, “Ternurinha”, “Jovem Guarda” e “É uma brasa, mora!”, esta usada pela primeira vez como título de um show do cantor e compositor Roberto Carlos. Carlito Maia se notabilizou por enviar flores para uma infinidade de estreias de espetáculos teatrais, lançamentos de livros e vernissages. Recebi o meu primeiro buquê de flores, belíssimo e inesquecível, no ano de 1987, quando do lançamento do livro de poesias "A morte e o corpo", e o segundo e último, em 1989, no evento de lançamento da "Antologia Poética de Pinheiros", volume I, na Scortecci Editora na Galeria Pinheiros, 1704, loja 13. Em sua homenagem, foi criado, em 2000, o Troféu Carlito Maia de Cidadania, que premia pessoas que desenvolvem ações sociais em prol da cidadania e na luta pelos direitos humanos. Carlito Maia faleceu no dia 22 de junho de 2002, aos 78 anos de idade. Na minha vida de livros, no poema sem-fim, reescrevo, sempre, a sua melhor “deixa”: “Evite acidentes, faça tudo de propósito!” Assim seja!
João Scortecci
MENOTTI DEL PICCHIA E A BATALHA PELO LIVRO / JOÃO SCORTECCI
Menotti Del Picchia (1892 – 1988), na Revista PAN – Semanário de Leitura Mundial – Ano II – número 4 – 16 de janeiro de 1936 – página 15, coluna: “O Imperativo da Hora – Modernizar-se ou Perecer”: “O maior inimigo do livro brasileiro é o próprio governo federal. A ele se deve a falta de difusão do único elemento de progresso e de cultura: o livro. Talvez o governo federal não seja um culpado consciente. Talvez não passe de um sono que dormiu e foi embrulhado pelos espertalhões negocistas que superabundam no país. A razão de justificarmos o governo reside no fato de não podermos compreender que o poder público de uma nação possa contribuir para embaraçar a expansão do livro. Seria julgá-lo criminoso demais ou inepto demais. O fato é que, mercê da legislação federal criando o truste do papel brasileiro, milhões de crianças nossas são prejudicadas em benefício da ganância de um grupinho de negociantes sem entranhas. O papel nacional – o pior papel do mundo – é relativamente ao nosso padrão de vida – o mais caro do mundo. Tivesse o governo derrubado a barreira alfandegária que torna impossível a importação de papel estrangeiro e então o problema da cultura nacional estaria automaticamente resolvido (...)”. Menotti Del Picchia foi colunista colaborador da Revista PAN (1935 – 1945), Semanário de Leitura Mundial, do editor e gráfico José Scortecci (1902 – 1988), avô materno do editor e gráfico João Scortecci.
João Scortecci
ALBALAT E A ARTE DE ESCREVER / MARIA MORTATTI
No final do século XIX, o escritor, jornalista e crítico literário francês Pierre Marie Antoine Albalat (04.02.1856 – 21.09.1935) resolveu iniciar a publicação “do que tinha aprendido por si só”. Era já autor de livros de poesia, contos, romances e ensaios de crítica literária, secretário da direção do Journal des Débats e amigo de grandes escritores franceses de seu tempo. Entre 1899 e 1905, teve publicados pela editora francesa Armand Colin, quatro “manuais práticos e técnicos” de escrita literária que se tornaram clássicos do gênero: L’art d’écrire enseigné en vingt leçons (A arte de escrever ensinada em vinte lições) (Armand Colin, 1899); La formation du style par l’assimilation des auteurs (A formação do estilo pela assimilação dos autores) (1901); Le travail du style enseigné par les corrections manuscrites des grands écrivains (O trabalho do estilo ensinado pelas correções manuscritas dos grandes escritores) (1903); Les ennemis de l'art d'écrire. Réponse aux objections de MM. F. Brunetlère, Emile Fagaet, Adolphe Brisson, Rémy de Gourmont, Ernest Charles, O. Lanson, Pélissîer, Octave Uzanne) (Os inimigos da arte de escrever. Resposta às objeções de ...) (1905). Recebeu por duas vezes o Prix Saintour: em 1904, por Le Travail du style ...; e, em 1914, por Comment il faut lire les auteurs classiques français.
O LEITOR DE LIVROS E O LEITO DE MORTE / JOÃO SCORTECCI
O leitor de livros é um sujeito estranho. Diferente? Talvez. Esquisito. Fora do padrão. Algo assim. No dicionário, a palavra “padrão” significa “modelo a ser seguido”. Confesso: não gosto do seu significado. Acho maçante, tedioso e enfadonho. Meu avô paterno dizia, sempre: “’Quem balança o rabo é cachorro!”. Desconfio de tudo que é padrão, definitivo, fechado no quadrado. Mas a palavra padrão serve – na falta de outra melhor – para definir tudo que um leitor não é. Ponto. Salvei o arquivo na área de trabalho e lá ficou. Hoje, preparando uma apresentação para uma palestra na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), sobre o leitor de livros e o hábito de leitura, resgatei o texto. Quem guarda tem! Salvei-o do lixo! Resmunguei. Na verdade, foi ele – pacientemente – que me salvou. Estranho. Ou melhor: esquisito! Conheço leitores. Muitos. Minha profissão de editor e gráfico ajuda. Faz parte! Minha mãe Nilce foi a primeira leitora voraz que conheci. Minha avó materna, Maria Aparecida, um dia, contou-me o segredo: “Apagávamos as luzes do quarto e ela, escondida, acendia uma vela!”. Risos. Li e reli o que já havia escrito. Dá para aproveitar! Foi o que fiz e aqui estou. Nas duas últimas bienais do livro de São Paulo (2024) e do Rio de Janeiro (2025), o público compareceu, prestigiou e entrou, literalmente, na fila de autógrafos. Ambas foram um tremendo sucesso! Um amigo livreiro, no pé do ouvido, confessou: “Já imaginou esse público todo visitando as livrarias?”. Risos. Seria o máximo, sussurrei pensativo, algo fora do padrão! Aqui com os meus encadernados: por que esse público todo de leitores, compradores de livros, não frequenta as livrarias? Mistério. Juro que não sei. Já escutei mil explicações, mas, até agora, nenhuma razão fora do padrão. Fechei, então, o arquivo e o abri novamente. Releitura. Corrigi um erro de espaço, apaguei um trema que não existe mais e me perdi, no silêncio das razões, refletindo sobre o que o amigo livreiro havia me dito ao pé do ogro das palavras. O leitor de livros é um sujeito feliz e estranho. Acende velas, conversa com o imaginário e – vez por outra – dorme amasiado com um livro no leito de morte.
João Scortecci
O TRAVESSÃO E O SINAL DA BESTA / JOÃO SCORTECCI
O travessão é um sinal de pontuação. Uma ponte! Representa conexão, superação de obstáculos, encontros. Simbolismo de desejos, sonhos, possibilidades. Segundo o mestre Evanildo Bechara (1928–2025), autor da "Moderna Gramática Portuguesa" ele serve para substituir vírgulas, parênteses, colchetes, assinalar uma expressão intercalada, indicar uma mudança de interlocutor num diálogo — ou denotar uma pausa forte. Mil e uma utilidades! Eu uso e abuso — exageradamente — dos travessões. Gosto deles! Andei conferindo as minhas poesias e os meus últimos textos — de 2022 pra cá — e notei que eles — os travessões — fazem parte da minha escrita diária. Minhas crônicas, na maioria, publicadas nos volumes da coleção “Menino tipográfico e outras histórias” estão repletas de travessões, de dois pontos, interrogações e exclamações. Uso, cada vez menos, parênteses — mais em datas de nascimento e morte —, nada de divisão em parágrafos, nada de ponto e vírgula e nada de reticências. Lendo sobre Inteligência Artificial — sobre a marca da besta — dos rastros deixados pelos robôs, o travessão — ele mesmo — está na berlinda. Diz a matéria: “Usuários experientes, estudiosos, que conhecem e usam a ferramenta, afirmam que o travessão seria um sinal claro de que um texto foi escrito por um ‘chatbot’“. Afirma, ainda, que as ferramentas tendem a usar frases de transição como “além disso”, “por outro lado” e “em conclusão” de forma sistemática e padronizada. Listou, por fim, 13 itens — dicas relevantes, talvez — a serem observados. São elas: “Ausência de opiniões ou ponto de vista, formalidade excessiva, tom consistente e impessoal, excesso de polidez, estrutura previsível, frases muitos longas, poucas variações e repetições de palavras, falta de erros gramaticais naturais, ideias repetidas, falta de profundidade em tópicos mais complexos, uso de exemplos genéricos e desconexão cultural e contextual.” Ponto. Aqui com os meus travessões, com as minhas travessias, as minhas ilhas, que povoam o meu universo de estrelas: assim fica difícil navegar! Pergunta: “É preciso?” No rádio, o jornalista esportivo Dirceu Marchioli — o Dirceu Maravilha — resfolega: “Eu quero é mais!”. Gosto dele: mesmo sendo um corintiano — sem H. Volto, então, para o travessão, para o sinal da besta. Além disso, por outro lado, em conclusão, respondo-me: viver não é preciso?
João Scortecci
ERA UMA VEZ… OS CONTOS DE FADAS / MARIA MORTATTI
A expressão “era uma vez…” convida leitores e ouvintes – crianças, jovens, adultos e idosos – a adentrar o mundo da imaginação. Conhecida e utilizada para introduzir histórias orais e escritas, hoje mais frequentemente as destinadas a crianças, a expressão indica tempo propositalmente vago e impreciso, como forma de marcar o caráter ficcional da narrativa, convidando o leitor/ouvinte a soltar a imaginação.
Em língua francesa, registra-se o uso da expressão, pela primeira vez, pelo escritor e poeta Charles Perrault (1628–1703), no conto “Les souhaits ridicules” (“Os desejos ridículos”), de 1694, incluído na edição de 1871 de sua obra mais famosa, Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités (Histórias ou contos do tempo passado com moralidades), conhecidos como Les contes de la mêre l'Oye (Contos da mamãe Gansa).
A expressão “era uma vez” e suas variantes, como “houve um tempo”, tornaram-se fórmula e chave mágica também utilizada por outros escritores daquela época, como Madame d'Aulnoy, na França, e do século seguinte, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, na França, Dorothea Viehmann (1755–1815), na Alemanha – a contadora de histórias que se tornou fonte de referência para os famosos contos dos irmãos Jacob Ludwing Carl Grimm e Wilhelm Carl Grimm – e Hans Christian Andersen, na Dinamarca.
Em língua inglesa, a expressão correspondente “once upon a time” e variantes têm origem no século XIV, com o poema “Sir Ferumbras”, da canção de gesta – poema épico medieval francês, celebrando os feitos de heróis e escrito para ser declamado – sobre a época do rei Carlos Magno, e com The Canterbury Tales do escritor e filósofo inglês Geoffrey Chaucer. Indicam, ainda, que a expressão como a conhecemos existia desde cerca do ano de 1600, tendo sido consolidada pelas narrativas de Perrault, seguido dos irmãos Grimm e de Andersen, alcançando rápida popularidade e tradução em outros países. E há também os que indicam a existência de histórias similares há mais de 6 mil anos.
Assim nasceram os contos de fadas…
Ao reunir e dar forma literária a narrativas orais na primeira edição, de 1697, de Contos da mamãe Gansa, Perrault inaugurou também um novo gênero literário e sua denominação, “contos de fadas” – histórias fantásticas contendo fadas (do latim “fatum”, que significa destino, fatalidade, fado), seres imaginários, geralmente mulheres com poderes sobrenaturais e mágicos –, expandindo seu alcance para outros públicos, além dos salões parisienses onde eram contadas para entretenimento de adultos. Posteriormente se tornaram, junto da expressão “era uma vez”, características de narrativas para crianças.
Por precedência cronológica, porém, outros estudiosos atribuem à poetisa e tradutora francesa Marie de France as primeiras histórias com fadas, em sua obra Lais, coletânea de 12 poemas narrativos, escritos entre 1160 e 1215. Outros, ainda, atribuem a origem da expressão “contos de fadas” à escritora Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Baronesa d'Aulnoy, que, em 1690, inaugurou esse gênero literário na França, usando a expressão “Contes de fée”, no conto “L’Île de la Félicité” (“Ilha da felicidade”) contido no romance Histoire d’Hypolite, Comte de Duglas.
Nos anos posteriores, aproximadamente 90 contos de fadas foram publicados por escritores e escritoras, como Gabrielle-Suzanne Barbot, na França. Nas décadas finais do século XVII, diminuiu consideravelmente a publicação desse gênero literário. Perrault passou a escrever para crianças, amenizando passagens de terror e incluindo mais elementos maravilhosos, como fizeram depois os irmãos Grimm e, de certo modo, Andersen, cujas histórias nem sempre têm entrecho ou final feliz.
A história é antiga e nem sempre são consensuais as reivindicações de paternidades e maternidades, denominações e desdobramentos. No entanto, “era uma vez” e “contos de fadas” se tornaram, mais do que fórmulas/clichês, chaves mágicas de matrizes literárias clássicas, com inumeráveis versões escritas, orais, cinematográficas e em mídias contemporâneas, além de inumeráveis estudos e interpretações, como em The uses of enchantment: The meaning and importance of fairy tales (1976) (Psicanálise dos contos de fadas), do austríaco Bruno Bettelheim, e Морфология сказки, (1928) (Morfologia do conto maravilhoso), do russo Vladimir Propp.
E continuam convidando leitores e ouvintes a se deixarem encantar pelo mundo da imaginação, para deleite e satisfação da necessidade humana de fantasia, direito humano básico, nas palavras do crítico literário Antonio Candido.
Maria Mortatti
---------------
Publicação original: ‘Era uma vez… os contos de fadas’: a origem ancestral das expressões que despertam a imaginação das crianças. The Conversation Brasil, 13 de junho de 2024. Disponível em: https://theconversation.com/era-uma-vez-os-contos-de-fadas-a-origem-ancestral-das-expressoes-que-despertam-a-imaginacao-das-criancas-231121
ROLAND BARTHES E O PRAZER DO TEXTO: É ISSO! / MARIA MORTATTI
Não só as da infância. Uma das experiências recentes de leitura me fez lembrar dessa constatação, de quando e por que li os primeiros volumes de À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), de Proust, e dos lugares e dias de tantas outras leituras de que me lembrei quando o li. Uma, em especial, veio-me involuntariamente à memória, a do livro O prazer do texto (Le plaisir du texte), do escritor e crítico literário francês Roland Barthes (12.11.1915- 26.03.1980), com tradução brasileira de J. Guinsburg (Perspectiva, 198?). Li-o um ou dois anos antes do opúsculo de Proust. Foi indicado por um professor que eu admirava. O exemplar era emprestado da biblioteca da faculdade.
Em um sábado à noite, talvez do ano de 1987, enquanto esperava o horário para um prazeroso passeio com os amigos, sentei-me na poltrona da sala, com lápis e papel ao lado, e comecei a ler como quem apenas se ocupa de uma distração. Aos poucos, porém, fui penetrando no texto. Levantei-me. Fui para cadeira da mesa de jantar. Aprumei-me. Comecei a anotar. Tudo era descoberta. Desisti do passeio, apesar da insistência dos amigos. Retomei a leitura e assim fui até a madrugada. Na memória ficou uma imagem: o prazer do texto, o prazer de desabotoar o primeiro botão da blusa... Não sei se as palavras de Barthes eram exatamente essas, mas assim gravei na memória.
Anos depois, comprei um exemplar da tradução brasileira. Localizei o trecho. As palavras eram parecidas, mas o sentido se renovou prazerosamente. E assim foi numa outra noite de sábado, quase quatro décadas depois, quando escrevia o prefácio para o livro Cahier de poésie 3 / Caderno de poesia 3, de Michel Thiollent (Scortecci Editora). Reli o livro de Barthes e lá encontrei minhas anotações de antigos momentos de leitura e dos pequenos pormenores que fizeram renascer conexões intertextuais infinitas e angustiantes com outros autores, com “a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior”, como as macieiras normandas de Gustave Flaubert que Barthes lê a partir de Proust.
Aquele primeiro botão de sentido cintilou novamente. O prazer do texto é a intermitência. O que seduz é a cintilação da pele entre duas bordas. Assim é a descoberta da relação erótica com os livros que nos escolhem ou escolhemos. Assim foi também com esse livro de Barthes, que despertou em mim o desejo de conhecer sua vasta e sedutora obra. O que faz de um escrito um texto é sua vontade de fruição, seu brio, o ponto onde ultrapassa a tagalerice e arranca do leitor, não um juízo de valor – é bom ou ruim –, mas um juízo de fruição estética: “É isso!”. “O texto de prazer é Babel feliz”.
Maria Mortatti
EDITH WARTHON, PRESENTE DE MR. DURHAM / MARIA MORTATTI
DERRIDA E A DESCONSTRUÇÃO DO TEXTO / JOÃO SCORTECCI
O filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) acalma os miolos, minhas inquietações e também as dores da alma! Ele e suas “aporias”, que em grego antigo significa contradição, impasse ou dificuldade. Interessante! Em “O livro da Filosofia” (Globo Livros, 2016, p. 310-313), o filósofo explica a sua famosa frase: "Não há nada fora do texto". Quando escrevo ou quando leio – qualquer coisa, não importa – sempre acho e continuo achando que falta algo. Mania chata! Textos antigos são apagados e sofrem mudanças, sempre. A saga não tem fim! Derrida resolveu o problema, creio. Lendo sobre o seu método de desconstrução do texto, consegui entender o que o autor chama de “différance”/“diferência” (com “i”), para explicar que todos os textos escritos têm hiatos, buracos, contradições e impasses. Já disse: Derrida acalma os miolos. Digo sempre: odeio reticências – omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada, insinuação. Na poesia é deplorável. Antes de conhecer o pensamento filosófico de Jacques Derrida tratava o assunto como “dilemas literários”, quando solução alguma parecia satisfatória ou desejável. Um sofrimento! No meu livro de poesia “A morte e o corpo”, publicado nos anos 1980, tive que colocar, na última página, esta nota: “Dilema literário para não julgar, fazer o poema sem-fim!”. Foi a solução na época. A cada edição do livro reescrevo o texto, sempre imperfeito. Uma dor que não tem fim. Sobre a frase "Não há nada fora do texto", eu faria uma sugestão, um acréscimo. Ficaria assim: "Não há nada fora do texto e nem do contexto". Perdão. Não resisti. Fazer o quê? Nasci assim: exagerado e inquieto. Pensei em finalizar este texto com reticências, três pontinhos e depois escrever “fim”. Desisti. Estou tentando desconstruir meus pecados, meus vazios, meus hiatos e impasses. Em diferências e deferências, claro.
João Scortecci
UMA CAIXA DE JOIAS LITERÁRIAS CHINESAS / MARIA MORTATTI
Bibliotecas pessoais, mais do que coleção de livros, guardam caixas de joias literárias garimpadas, escolhidas a dedo. Assim penso cada vez que alguma delas – sem motivo aparente – brilha na estante, entre centenas de outras, oferecendo-se à releitura. Assim aconteceu com a lombada verde-jade e o título branco-pérola de A caixa de joias da cortesã – volume II, coletânea de contos das dinastias chinesas Song (960-1279) e Ming (1368-1644), editado e impresso em Pequim, por Edições em Línguas Estrangeiras, em 1987, e distribuído por Corporação Chinesa para o Comércio Internacional de Livros.
O volume, com seis ilustrações em bico de pena, contém cinco contos – “O chapéu de feltra esfarrapado”; “A caixa de joias da cortesã”; “O vendedor de óleo e a cortesã”; “O velho jardineiro”; “A vingança de um homem justo” –, selecionados entre mais de duzentas histórias populares chinesas do século X ao XVII, inicialmente manuscritos de contadores de histórias, em linguagem popular, que se desenvolveram como gênero literário e foram publicados em coleções no começo do século XVII. Não há indicação do nome do tradutor para o português, mas pode-se presumir que seja ou uma tradução brasileira “anônima” ou mais provavelmente tradução direta de algum entre os que, como Gladys Yang, Yang Xianyi e Sidney Shapiro, traduziram para o inglês muitas obras da literatura chinesa clássica e moderna, integrando as publicações da Edições em Línguas Estrangeiras, fundada em 1952 e com milhares de publicações, em dezenas de idiomas, sobre assuntos diversos e também material didático para estudantes estrangeiros na China.
No conto que dá título ao volume se encontra uma narrativa entremeada de alguns versos em tom de comentário, na qual é contada a história de amor protagonizada por Décima, a mais linda cortesã da casa da velha senhora e a mais cobiçada pelos homens. Li, filho de alto funcionário imperial e estudante do Colégio Imperial de Pequim, para usufruir da companhia de Décima, gastou todo o dinheiro que o pai lhe dava. Tornaram-se amantes, juraram amor eterno e, apesar das suspensão dos pagamentos e ordens do pai para que ele retornasse, decidiram libertá-la da casa e da condição de cortesã para se casarem. Depois de muitas dificuldades para Li conseguir o dinheiro e as duras condições impostas pela velha senhora para libertá-la, Décima ganhou de uma cortesã uma caixa com a recomendação de somente abri-la em caso de necessidade e o casal partiu em viagem, sem saber ao certo aonde ir sem dinheiro, temendo voltar à casa do pai dele, depois de ter gastado e com uma cortesã o dinheiro que o pai lhe dera e ainda querer se casar com ela. Durante a viagem, Li encontrou o astuto jovem Sun, aceitou seu convite para beber, contou a ele sua história, ouviu seus conselhos e se convenceu a vender Décima para Sun, pois, assim, Li poderia voltar para a casa do pai com dinheiro e sem ofender a família com uma esposa cortesã. Quando Li conta a Décima sua decisão, sentindo-se traída e abandonada pelo homem que lhe jurara amor eterno, aparentemente aceitou ser vendida, enfeitou-se, perfumou-se e abriu a caixa que havia ganhado na partida. Foi abrindo gavetas de dentro da caixa, cada uma com muitas pedras preciosas, flautas de jade e peças de ouro, jogando-as no rio. Chorando de remorso, Li tentava impedi-la, sem sucesso. Depois de contar, em voz alta para as pessoas que se juntaram ao redor do barco, sua história e a traição de Li que a abandonou no meio do caminho, Décima agarrou o cofre, saltou no rio e nunca mais foi encontrada. Li enlouqueceu e Sun, sentindo-se perseguido pelo fantasma de Décima, adoeceu e definhou até morrer. A narrativa termina com estes versos: “Aqueles que nunca amaram devem ficar silenciosos;/ Não é fácil saber quanto vale o amor;/ E ninguém a não ser os que dão valor à constância/ Merece o nome de amante nesta terra”.
O enredo se passa em 1592, no contexto da invasão da Coreia pelo general japonês Hideoshy, no período Wan Li, quando o imperador concordou com o novo sistema de vantagens para os que tinham dinheiro, como facilidades nos estudos dos filhos de funcionários para adquirirem lugar no Colégio Imperial. Passados mais de quatro séculos e em contexto social e geográfico bastante diverso, essa história ainda encanta de diferentes pontos de vista; a mim, pelo realismo lírico com que são representadas as relações de poder e amorosas, especialmente a condição das mulheres. E o reencontro e a releitura dessa caixa de joias chinesas – que garimpei, escolhi a dedo e comprei por US$ 2,50, no dia 16 de maio de 1990, não lembro onde... – fez-me pensar que a leitura é também um espécie de amor; não é fácil saber quanto valem joias literárias e somente os que lhes dão valor merecem o nome de amantes da literatura...
Maria Mortatti
FERNANDA LOPES DE ALMEIDA, UMA CLARA LUZ NA LITERATURA INFANTIL / MARIA MORTATTI
Clara Luz, a fadinha transgressora, Soprinho, que torna as pessoas desejosas de fazer coisas, e Glorinha, a menina perguntadeira, foram as primeiras personagens que conheci dos clássicos da literatura para crianças criados pela escritora e psicóloga Fernanda Lopes de Almeida ([18.08].1927 – 27.12.2023). Pertencia a uma “família das letras”: era neta da escritora Julia Lopes de Almeida e do poeta e jornalista Filinto de Almeida, ambos entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras, e sobrinha-neta da escritora e educadora Adelina Lopes Vieira e presumivelmente parente da poeta Presciliana Duarte de Almeida, membro- fundadora da Academia Paulista de Letras, onde ocupou cadeira n. 8, cuja Patrona é Barbara Heliodora, sua bisavó. Como conta em entrevista recente para a revista Aletria, cresceu na casa da família no Rio de Janeiro e, mesmo antes de ser alfabetizada, gostava de ouvir histórias e contos de fadas clássicos que a mãe contava e a leitura já se tornara hábito. Por volta dos oito anos de idade começou a escrever histórias e poemas, mas não foi como sua avó, “que a isso se dedicou a vida inteira”. Formou-se em Psicologia, exerceu a profissão por 25 anos trabalhando com crianças e escrevia contos e crônicas para adultos – com influências da obra literária da avó Júlia –, que foram publicados em jornais e revistas. Mais tarde, quando começou a escrever para crianças, a principal influência foi Monteiro Lobato, mas logo se libertou pois “já estava muito mais consciente do que queria dizer e como dizê-lo”.
Iniciou a carreira literária para crianças em 1970, integrando uma geração de novos escritores que revolucionaram a literatura infantil e juvenil – como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo – apresentando novos temas e formas de escrever para o público infantil, com textos e ilustrações sensíveis e poéticos, com objetivo de divertir e propiciar leitura prazerosa, sem preocupação de ensinar. Publicou mais de duas dezenas de livros nas décadas seguintes, com muitas edições e milhares de leitores até os dias atuais e que se tornaram clássicos da literatura infantil.
Entre os que me marcaram, estão: os dois livros de estreia da autora no gênero, A fada que tinha ideias – ilustrações de Edu –, adaptado para peça teatral em 1982, que recebeu Troféu Mambembe pelo Melhor Texto de Teatro Infantil, e Soprinho – ilustrações de Odilon Moraes –, que recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro Infantil – 1971, da Câmara Brasileira do Livro e integra o acervo permanente da Biblioteca Internacional para a Juventude; e A curiosidade premiada – ilustrações de Alcy Linhares, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1978.
Clara Luz, Soprinho e Glorinha também fizeram parte de minhas aulas na educação básica e na universidade. Com eles e as professoras de horizontologia e D. Domingas, aprendemos que, quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda; que podemos ver tudo de forma diferente e encantada, quando nos deixamos levar pelo sopro da imaginação; e que, se para certos adultos prêmio só existe quando se pega nele, para as crianças – e adultos também – a curiosidade é premiada com o autoconhecimento e o conhecimento do mundo.
Não tenho esses livros em mãos. Levei-os para ler com meu neto, deliciamo-nos com a leitura e ficaram na biblioteca dele. Mas são histórias presentes até hoje em minha memória, clássicos que independem do tempo e da faixa etária. Uma clara luz e um duradouro sopro de renovação na literatura para crianças – e adultos também. Basta senti-los. Assim como disse a longeva autora em entrevista para a revista Crescer: “Nunca penso em faixa etária exata, pois as crianças são tão diferentes umas das outras. E acho, como muitos acham, que o bom livro infantil interessa também ao adulto. ... o que faz um livro ser realmente bom? Não se sabe, ou melhor, não se traduz em palavras. Sente-se”.
Maria Mortatti – 13.05.2025
BEST-SELLER CARIMBADO / JOÃO SCORTECCI
“Queremos publicar um livro!” Foi o que escutei do jovem casal. “Dueto literário?”, perguntei. “Não. Livro solo”, explicou o marido, olhando para a esposa. Abriram uma pasta de elástico azul e tiraram um maço de poemas. Mais de 200, creio. O marido, então, começou a fazer uma triagem, entregando para a esposa os poemas selecionados por ele. Estranho. “Essa não! Essa também não!” Foi fazendo uma pilha à parte, com os rejeitados. A esposa observava tudo, calada, aparentemente concordando com a seleção. O marido explicou: “Queremos um livro com 100 páginas, no máximo”. “Selecionem, então, 90 poemas. As demais páginas usaremos para compor as folhas de rosto, sumário, dedicatória e cólofon”, expliquei. Levaram quase uma hora na triagem. “E o título?”, perguntei. Ele escreveu o título num pedaço de papel e me entregou. “E a dedicatória?” A autora escreveu algumas linhas num pedaço de papel e mostrou para o marido. Ele olhou – fez cara azeda – e riscou dois nomes da lista de homenageados. “Esse não! Esse também não!” A esposa balançou a cabeça, concordando. Pronto. Fechamos o contrato e iniciamos os trabalhos de edição. O casal optou por fazer o serviço de revisão na editora. O marido – sempre junto – sentou ao lado da autora e acompanhou a revisão, linha por linha. Na época, ganharam dos funcionários da editora o apelido de “Casal 20”, série de sucesso da televisão americana criada pelo romancista Sidney Sheldon e protagonizada pelo casal rico e simpático Jonathan (Robert Wagner) e Jennifer Hart (Stefanie Powers). Risos. Quando os livros ficaram prontos, o marido veio buscá-los. Sozinho. Conferiu os exemplares e, sentado no banco da recepção da editora, na época localizada na Galeria Pinheiros, releu toda a obra, página por página. Agendou, então, a data do lançamento e, para a noite de autógrafos, fez uma exigência: “Quero uma cadeira ao lado da minha esposa!”. E assim foi. Muita gente no evento. Família e amigos. Coquetel, música e um fotógrafo contratado por ele. A esposa autografava e entregava o livro para o marido, que lia a dedicatória e, com um carimbo, validava o texto escrito. Não saiu nenhum livro sem o carimbo. Eu juro! Estranho foi receber de presente o meu exemplar, o último da noite. Tinha dois carimbos na folha de rosto. Um no início da dedicatória e outro, no final. Desconheço a razão dos dois carimbos. Pensei, no início, tratar-se de um erro, já que o primeiro carimbo estava meio apagado, com falhas de impressão. Com o tempo, desconfiei dos dois carimbos, um no início e outro no final da dedicatória, como limitadores de espaço. Qualquer palavra fora dos limites que surgisse depois, seria sinal de cumplicidade, de traição. Algo assim. O casal, depois de alguns anos, separou-se. A esposa poeta ligou, pedindo ajuda. Explicou: “O meu ex-marido entrou na Justiça cobrando parte dos lucros sobre a obra, segundo ele, um best-seller, com milhares de exemplares vendidos”. Imaginação fértil. E nada mais.
João Scortecci
FERNANDO, UMA PAIXÃO DE POETA / JOÃO SCORTECCI
Fernando era o nome dele. Tinha 18 anos de idade e era a paixão desbragada da menina poeta, olhos grandes, 16 anos de idade. Quem me ligou na editora foi sua mãe, indicação de uma professora de Letras, autora da Scortecci. Disse-me: “Quero publicar o livro de poesia da minha filha!”. Marcamos, então, uma data para reunião na editora. O livro estava datilografado em papel sulfite e tinha cerca de 60 páginas. Um poema por página, sumário e dedicatória. Título do livro: “Fernando, uma paixão!”. Comecei, então, a folheá-lo, batendo olhos, numa leitura dinâmica. Dedicatória: “Para o Fernando, amor da minha vida”. Li alguns poemas. Parei. Todos contavam a história do amor da poeta pelo príncipe encantado Fernando. Um diário. Olhei para a mãe e ela – adivinhando o meu incômodo – declarou: "Scortecci, preciso publicar esse livro. Essa menina – olhou para a filha sentada ao seu lado – está me deixando maluca. Já infernizou a vida do pai. Chora pelos cantos da casa, não come, não dorme e fala que vai cortar os pulsos”. A jovem poeta balançou a cabeça validando a história. Risos. "Eu quero!”, exclamou, batendo os pés no chão. Nos poemas do livro, eram relembrados o dia em que a poeta conheceu o Fernando, o primeiro encontro dos dois, a paquera, o primeiro olhar, a troca de bilhetes de amor, tardes no cinema e no shopping, o primeiro abraço, os primeiros beijos, quando escondidos viajaram para Ubatuba, e o dia em que ficaram juntos, fizeram amor e juraram amor eterno. Aceitei. Propus uma edição de 100 exemplares, tiragem mínima. A poeta me olhou e sorriu, radiante. Fechamos o contrato e começamos a trabalhar na edição do livro: digitação, diagramação e arte de capa. A poeta queria lançá-lo no mês de junho, na festa junina da sua escola. Disse-lhe, então: “Temos pouco tempo! Vamos precisar correr e seguir um cronograma rígido. Anotei as datas num papel. A poeta seguiu tudo à risca. No dia da liberação dos arquivos para impressão, perguntei-lhe: “E o Fernando?”. Ela me olhou e disse, sorrindo: “É surpresa!”. Estava eufórica. Gelei. O livro entrou na gráfica no início do mês de junho. Dez dias depois – prazo normal do serviço gráfico – o livro ficou pronto. Liguei para lhe dar a boa nova. A poeta não estava em casa. Deixei recado. Não retornou. Alguns dias depois liguei de novo, para falar diretamente com a sua mãe. Ela atendeu: “O livro 'Fernando, uma paixão’ está pronto”. Silêncio. Agradeceu e desligou. Foi seca, formal. Na manhã do dia seguinte apareceu de surpresa na editora, sozinha. Disse-me: “Sr. Scortecci, poderia, por favor, destruir todos os exemplares?”. “O que aconteceu?”, quis saber. Contou-me, então: “O Fernando terminou o namoro e trocou minha filha pela sua melhor amiga”. Silêncio. Pagou-me pelo serviço e foi embora. Esperei um mês antes de destruir os livros. Poderia haver um retorno, pensei. Mas nada aconteceu. Então, guilhotinei-os. Nunca mais soube da poeta e seus versos de amor. Não conheci o seu Fernando. Hoje, quando vejo um livro com dedicatória para um Fernando, o coração bate forte. Coisas de poeta. Depois passa e dói.
João Scortecci
NÃO ACHO JUSTO SENTIR DOR / JOÃO SCORTECCI
Vez por outra recebo pedido de autor solicitando avaliação literária sobre o seu trabalho. Alguns desconhecidos. Pergunto, sempre: “Livro de poesia?”. Confesso: gosto do gênero, caminhos em que me sinto confortável. Recuso prosa. Não é a minha praia. Não tenho o conhecimento profissional para tanto. Recomendo, então, procurar ajuda de profissional especializado. O mercado oferece boas opções. Quando o autor não conhece alguém para fazer o serviço e pede ajuda, eu recomendo. No ano de 2022, no início da pandemia de Covid-19, recebi uma solicitação de leitura crítica para um romance com mais de 400 páginas. Autor desconhecido. Procurei no cadastro da editora e não o encontrei. Pesquisei seu nome no Google, sem sucesso. Mistério. No corpo do seu e-mail uma ordem expressa: “Quero que você seja sincero!”. Fiquei surpreso, confesso. Como não poderia ser?, pensei. Respondi, então, educadamente: “Não sou a pessoa indicada para o serviço. Posso indicar ajuda profissional.” Algo assim. Enviei. No mesmo dia – algumas horas depois – veio uma resposta: “Não acho justo pagar por uma leitura crítica. O serviço deveria ser grátis, espontâneo e honesto!”. No parágrafo abaixo escreveu, ainda: “Vou procurar alguém com mais sensibilidade que você!”. Pensei, de pronto, mandá-lo para a PQP e mandar enfiar o livro no caneco. Respirei fundo. Curioso decidi perguntar qual era a sua profissão. Ele respondeu, logo em seguida: “Eu sou cirurgião dentista!”. Antes de deletá-lo do meu mundo, escrevi uma derradeira resposta: “Não acho justo sentir dor. Mas acontece!”. Algo assim. Não enviei o e-mail. O danado do e-mail fico girando na saída da caixa do Outlook. Ficou lá, espontaneamente. Depois travou e deu erro. Então o apaguei, gratuitamente. Fechei a boca e liguei para minha dentista. Descobri que estava com dor de dente e a gengiva inflamada. Acontece!
João Scortecci
APOSTA É APOSTA E EU PERDI / JOÃO SCORTECCI
A Scortecci Editora funcionou durante 10 anos, de 1982 até 1992, na Galeria Pinheiros, na Rua Teodoro Sampaio, n. 1.704, loja 13. Usávamos o espaço da galeria para recitais e lançamentos de livros, local com capacidade para mais de 300 pessoas. Naquela época, eu colaborava na organização dos eventos e minha presença fazia parte do negócio. Distribuíamos folhetos, marcadores de livros e cartões de visita. Era na época a única forma de captar novos autores. Funcionava! Não existiam ainda os celulares e a Internet era um luxo, para poucos. A editora tinha na loja uma linha de telefone LP, extensão do telefone alugado de um vizinho. O correio e o boca a boca eram as únicas ferramentas disponíveis para divulgação e promoção de um evento literário e cultural. O público comparecia em peso e prestigiava os eventos. Quando saía uma pequena nota num jornal de grande circulação era a glória. A coluna mais lida na época era a do jornalista Henrique Novak, intitulada “Página do Livro”, no jornal Diário Popular. São dessa época as apostas editor versus autor, para quem acertasse a quantidade de livros vendidos na noite de autógrafos. Apostávamos – quase sempre – uma caixa de cerveja. Eu sempre ganhava! Usava uma matemática simples e infalível. O autor dizia: “Vou vender 200 exemplares”. Eu, então, jogava – sempre – na metade: “Você vai vender 100”. Ganhava quem acertasse o número por aproximação. Eu sempre levava vantagem porque de 150 exemplares para baixo o número era meu. Confesso: nunca faltou cerveja na geladeira da editora. Uma vez, apenas uma única vez, perdi a aposta. O autor jogou alto: “Vou vender 200 exemplares”. Apostei. Vou ganhar fácil, pensei. Quando recebi o livro pronto da gráfica – alguns dias antes do evento – quase morri do coração. Era um livro com 100 sonetos e cada soneto dedicado a duas pessoas distintas. Desconfiei. O autor retirou os convites impressos e, ali mesmo, na recepção da editora, começou o seu trabalho de endereçamento. Organizado e com caligrafia primorosa. Virava o convite impresso e no verso em branco copiava uma mensagem tirada de um caderno de anotações. Escrevia, algo assim: “Maria, você sabe que gosto muito do seu esposo. Tenho por ele carinho e respeito. Eu pretendia fazer-lhe uma surpresa, mas minha esposa aconselhou-me a não fazer isso. Seria deselegante. Resolvi, então, contar a surpresa somente para você. Fiz no livro uma homenagem especial ao seu marido. Uma surpresa!". A galeria naquela noite lotou de gente. As pessoas chegavam no caixa e pediam 5, 10 e 15 exemplares do livro. Lembro que um homem idoso pediu um pacote fechado com 25 exemplares. Disse em voz alta: “O meu filho está sendo homenageado no livro. Vou levar livros para toda a família!”. Naquela noite, o sonetista autografou mais de 300 exemplares. Matemática simples e infalível. Dedicou cada soneto para duas pessoas distintas. Aposta é aposta e eu perdi.
João Scortecci
LIVRO EM SILÊNCIO E PONTUAL / JOÃO SCORTECCI
O convite foi impresso na Gráfica Scortecci. Dados: título do livro, nome do autor, data do lançamento, horário e local. Do lado esquerdo, a capa do livro e, embaixo da ilustração, os dados técnicos da obra: formato, assunto, número de páginas e ISBN. Convite padrão, nada diferente, apenas um detalhe estranho. No horário estava impresso: “19h30 – em ponto”. Quando vi o convite questionei: “Isso está certo?”. Responderam: “Exigência do autor”. Achei estranho, mesmo assim liberei o convite para impressão. O evento aconteceria no final do mês de maio, na cidade de Santo André/SP, no espaço de uma associação cultural mística. Não conhecia. Quando o autor veio retirar os convites, fez questão de me convidar para o lançamento e eu confirme presença: “Eu vou!”. Na época não existia ainda celular – e muito menos GPS. Usávamos com propriedade o Guia Quatro Rodas, peça obrigatória. Sai de Pinheiros às 17h, em ponto. Cheguei ao endereço 30 minutos antes do horário marcado. No local, apenas o autor. Cerimonioso, vestido com uma capa preta, anel e um bastão de madeira, mostrou-me o local do evento. Um salão. Chão de madeira, quadros de fotos de ilustres nas paredes, cortinas de veludo vermelhas, relógio de parede no canto e no centro, um candelabro girante no teto. Algumas lâmpadas estavam queimadas. O local parecia velho e sujo. No centro do salão, uma mesa retangular, com 24 cadeiras. À frente de cada cadeira, um exemplar da obra do autor, pratos de papelão, garfos e facas de plásticos. Nada mais. O autor mostrou o meu lugar e pediu, então, que eu sentasse. Sentei. Ele ocupou a cabeceira da mesa, no lado oposto à entrada e ficou em silêncio. Perguntei-lhe: “Você não vai vender o livro?”. “Não. Somos 24 pessoas”, explicou. Às 19h30, em ponto, as pessoas entraram na sala e tomaram os seus lugares. Tudo em silêncio. Nenhuma pessoa jovem. Apenas duas mulheres. Foram servidos sanduíche de pão com queijo e guaraná em copo de papel. As pessoas comeram o sanduíche, tomaram o guaraná e pontualmente, às 20h, se levantaram e foram embora, em silêncio. Um detalhe importante: os exemplares estavam autografados. Inclusive o meu. Permaneci sentado. O autor se levantou e me disse: “Boa noite!”. Foi o que fiz. Entrei no meu Uno Mille branco e voltei para a cidade de São Paulo. Foi assim – exatamente – como tudo aconteceu. O lançamento mais estranho e místico em 43 anos de editora.
João Scortecci
MEDO, O MAIOR INIMIGO DO ESCRITOR / JOÃO SCORTECCI
São muitos os inimigos de um escritor, iniciante ou não! José Francisco – indicação de um amigo dono de uma pequena livraria – ligou-me e quis saber de pronto: “Escrevi um romance e quero publicá-lo: como funciona?”. “Parabéns! O livro está pronto?” Pergunta obrigatória. "Quase!”, respondeu-me. “Falta o quê?” José Francisco, então, soltou a língua e tentou resumir o enredo da sua ficção, sem sucesso. Foi repetitivo, confuso. Parecia ansioso e coberto de medo. “O livro é um espelho da minha vida, com ação, suspense e mistério. Dei uma floreada!”, explicou. “E quando você termina o livro?”, insisti. “Logo!” Muitos escritores ficam no “logo” e, infelizmente, morrem ali mesmo, antes do prelo. Não conseguem terminá-lo. As razões? São muitas. Medo de não agradar ao público leitor, de se expor além da conta, de ser julgado pelos amigos, de receber crítica cruel nas redes sociais, de virar motivo de piada na família e na profissão, de descobrir – da pior maneira possível – que não é criativo, sua história é comum e beira o ridículo. Não é fácil. Existe uma distância imaterial, entre o “quase” e o “pronto”. Medo é o estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo. Nos anos 1990 publiquei um livro de um empresário do interior de Minas Gerais. Poucos exemplares. Enviou-me passagem, providenciou hospedagem e eu fui ao lançamento. Evento lindo, num clube da cidade. O livro não foi vendido e foi autografado previamente para cada um dos amigos, personalidades e familiares da cidade. A festa terminou por volta da meia-noite. Fui para o hotel e caí na cama, morto de cansaço. O interfone do quarto 11 – não esqueço até hoje o número – tocou às quatro e pouco da manhã. Já estava acordado, pronto para voltar para São Paulo. Era o autor empresário e sua esposa. Que susto! Desci e os encontrei na recepção do hotel. Estava transtornado, fora de controle e chorava muito. “O que aconteceu?”, perguntei. “Precisamos recolher todos os livros! Eu me arrependi! O que os meus amigos vão pensar de mim. Estou arruinado!”, repetia, gritando copiosamente. Sentamo-nos no saguão do hotel e começamos a conversar sobre o livro. Era de reminiscências poéticas e bem escrito. Reli lá mesmo e lhe disse: “Não encontrei nada que o desabone”. O autor começou a passar mal, provavelmente à beira de um infarto. Sua esposa, então, sugeriu: “Vamos pegar o carro e recolher todos os livros”. No início, achei a ideia uma maluquice. Depois, com calma, concordei: “Cidade pequena, livros doados, seguindo uma lista prévia de pessoas todas conhecidas... Vamos!”. Fomos primeiro à casa do prefeito e depois às dos vereadores e políticos da cidade, do padre, do delegado e dos fazendeiros da região. Todos devolveram o exemplar, sem drama ou perguntas maiores. “Quem ficou faltando da lista?”, quis saber. Alguém disse: “Apenas o Luiz Antônio, amigo de infância e sócio”. Fácil, pensei. Luiz Antônio não abriu a porta e respondeu pela janela entreaberta: “Não devolvo! Nunca! É meu”. O autor desmaiou ali mesmo e foi conduzido desacordado para a Santa Casa da cidade. E a história ficou por isso mesmo. Vez por outra busco na Internet o livro pelo título e pelo nome do autor. Nada! Nunca mais nos falamos. O poeta empresário mineiro faleceu em 2022, aos 82 anos de idade. Sempre que pergunto a um escritor se o seu livro está "pronto", lembro dessa história. Medo é medo: estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo de ter um amigo FDP. De poesia também se pode morrer.
João Scortecci
DAS ESCOLHAS DE UM LIVRO / JOÃO SCORTECCI
O livro salva. Cura neuroses e alimenta manias. É o que dizem. Acredito nisso. Li na infância as obras de Monteiro Lobato, Júlio Verne e José de Alencar e, na adolescência, os livros “Encontro marcado”, de Fernando Sabino, “O diário de Dany”, de Michel Quoist e “O profeta”, do libanês Khalil Gibran. Pouco mais de 20 títulos. Isso antes de deixar o Ceará e vir morar na cidade de São Paulo, no ano de 1972. Tinha 16 anos de idade. Tornei-me sócio do Círculo do Livro e cliente da Livraria Brasiliense da Rua Barão de Itapetininga e do Largo do Arouche. Não parei mais. Tornei-me, então, um leitor. Na época, autores estrangeiros – na maioria de clássicos – eram raridades nas livrarias, em comparação com os milhares de títulos de hoje. Gostava de um autor e pronto: lia tudo dele. Aprendi, depois – isso levou algum tempo – a caçar novidades nas livrarias do centro da cidade. Tinha tempo. Foi uma época interessante. Fazia assim: olhava a capa do livro, depois o assunto, a sinopse e, por fim, a biografia do autor. Na edição de 2025 do projeto Circule um Livro, realizada na Avenida Paulista, no vão do Prédio da FIESP, na cidade de São Paulo, pude observar o modo operante de três leitores, que colocaram a barriga num balcão de 5 metros e lá ficaram por mais de 30 minutos. O primeiro, um homem com pouco mais de 30 anos de idade, escolheu livros assim, pela ordem: capa, título, assunto e a sinopse no verso de capa. Não abriu os livros, não folheou, não leu as orelhas, não quis saber o nome da editora e muito menos o da gráfica em que foi impresso. Consultou exemplares de seis títulos. Levou um deles. Anotei. Em seguida apareceu outro homem, pouco mais de 50 anos de idade. Selecionou três títulos, dois deles no formato de bolso. Conferiu capa e título. Depois leu as orelhas e o cólofon. Interessante: os três não tinham ilustrações de capa. Levou um livro de bolso. Por fim, uma moça, jovem, selecionou cinco livros diferentes. Todos com capas coloridas e títulos de assuntos diversos. Não abriu nenhum deles. Cheirou. Colocou-os um ao lado do outro e fotografou com o celular. Depois foi embora de mãos vazias. Conclusão sobre as escolhas pessoais de um livro: nenhuma! O livro cura neuroses, alimenta manias e salva também. Tudo junto no melhor do seu tempo.
João Scortecci
PARA VOCÊ, LEITOR DE LIVROS / JOÃO SCORTECCI
Legal saber que você é um leitor de livros! Reconhecemos a importância do hábito da leitura e dos benefícios que ela proporciona: conhecimento, expansão do vocabulário, melhora na escrita, aumento da concentração, fortalecimento do pensamento crítico, desenvolvimento da criatividade, prazer estético, entre tantos outros que só os que leem experimentam.
Esta pequena nota se destina a você, leitor consciente da importância de somente comprar livros comercializados de forma legal e confiável, em livrarias físicas, lojas virtuais, distribuidoras, casas editoriais, feiras, bienais e eventos literários e culturais. O produto livro e outros bens culturais – como músicas, filmes, pinturas, fotos – quando comercializados em endereços piratas e ilegais – físicos ou virtuais – causam enormes prejuízos ao setor editorial e livreiro e aos autores. A Internet, infelizmente, através de plataformas irresponsáveis – algumas, cúmplices – tem sido canal fácil para fraudes, golpes e todo tipo de crime. No ano de 2024, o prejuízo para autores e editoras chegou a R$ 1,4 bilhão, o equivalente a cerca de 50% do rendimento anual das vendas do setor.
No meio digital, hackers são responsáveis por quebrar travas de acesso a e-books e obter cópias indevidas e ilegais. Algumas plataformas criminosas trabalham com acervos inteiros em PDF e oferecem ainda serviços “sob demanda”, em que os usuários pedem títulos específicos e recebem os arquivos diretamente em sua caixa de e-mail. Tem sido comum também a criação de grupos de leitura livre ou clube do livro e da leitura, em que usuários trocam arquivos digitais, recomendam pastas compartilhadas e ensinam como acessar bibliotecas digitais ilegais. Isso é crime! Editores e autores não são contra iniciativas que estimulem o compartilhamento de leitura e livros; muito pelo contrário, pois apoiam e fornecem livros com descontos especiais para os membros desses grupos.
Dados da ABDR – Associação Brasileira de Defesa dos Direitos Autorais e Reprográficos e de entidades do livro estimam que, dos R$ 2,52 bilhões faturados em 2023, pelo setor editorial e livreiro, deixou-se de faturar cerca de R$ 1,2 bilhão, valor “perdido” para a pirataria. Em 2024, o prejuízo chegou a R$ 1,4 bilhão, o que corresponde a 50% da quantia arrecadada no ano, correspondendo a cerca de 154 mil obras: 56%, de literatura geral; 39%, relacionadas à área do Direito; 4%, de livros religiosos; e 1% de livros com temática infantil ou didática.
Temos que combater a pirataria e a venda ilegal de livros. A Lei de Direitos Autorais no Brasil garante ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor – de forma legal, conforme contrato com editora, quando houver – de sua obra, incluindo livros, em qualquer formato, físico ou digital. Isso significa que configura violação legal qualquer reprodução, distribuição ou disponibilização de uma obra sem a autorização do autor ou da editora e sem cumprimento de regras contratuais.
Mesmo com o intenso trabalho
desenvolvido pela ABDR e entidades do setor, precisamos do apoio e do trabalho
voluntário e coletivo de conscientização da prática ilegal que assola o País.
Denuncie. Não compre livro pirata! Não faça nem compartilhe PDF pirata. Colabore, orientando
e explicando em escolas, universidades, clubes de leitura
e grupos de WhatsApp sobre a importância de combater a pirataria de livros e de
conteúdo editorial.
Esta nota é para você, leitor legal, que gosta de livros, curte e incentiva o hábito de leitura. Compartilhe essa ideia. O livro agradece.
João Scortecci
Escritor, editor, gráfico e livreiro.
scortecci@gmail.com
MASSAUD MOISÉS – “TODO LIVRO TEM SUA HISTÓRIA” / MARIA MORTATTI
Massaud Moisés (09.04.1928-11.04.2018), nascido na capital paulista, foi professor de literatura brasileira em colégios e faculdades paulistanas, até seu ingresso, em 1963, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – Universidade de São Paulo, como assistente da Cadeira de Literatura Portuguesa, então ocupada pelo professor Antonio Soares Amora, que sucedera Fidelino de Figueiredo, professor português que introduziu os estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras. Em 1954, Massaud Moisés assumiu essa Cadeira e exerceu outras atividades na USP até se aposentar em 1995. No início dos anos 1960, por designação do Governador Carvalho Pinto em seu projeto de expansão do ensino superior paulista, exerceu a função de diretor da Faculdade de Filosofia de Marília e da Faculdade de Filosofia de Assis, ambas incorporadas à Unesp – Universidade Estadual Paulista, criada em 1976. Foi, ainda, professor visitante em universidades estadunidenses e esteve em visita de estudos na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, dirigiu o Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São Paulo, ministrou conferências em universidades brasileiras, norte-americanas e europeias. Recebeu do governo português o título de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e, no ano 2000, assumiu a cadeira de número 17 na Academia Paulista de Letras.
Durante meio século, entre final dos anos 1950 e os anos 2000, escreveu e publicou livros – alguns com dezenas de reedições ou edições revistas e aumentadas – sobre literatura portuguesa e brasileira, crítica e análise literárias, que se tornaram referências para estudiosos, professores e estudantes. Entre eles, estão: Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge; A literatura portuguesa; A literatura portuguesa através dos textos; O conto português; Pequeno dicionário de literatura portuguesa - Crítico, biográfico e bibliográfico; Pequeno dicionário de literatura brasileira (com José Paulo Paes); História da literatura brasileira (5 vols.); A criação literária. Poesia; A Criação Literária. Prosa (2 vols.); Dicionário de termos literários. Dirigiu também a Colecção de Textos Básicos de Cultura, da Cultrix.
Sua obra me foi apresentada no início dos anos 1970 pelos professores Jorge Cury, de Literatura Portuguesa, e Dante Tringali, de Teoria Literária, no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, na época instituto isolado de ensino superior, posteriormente também incorporado à Unesp. Com admiração pelo contemporâneo e colega, esses dois professores indicavam e recomendavam a obra de Massaud Moisés como fonte de consulta para nossos estudos universitários e para nossa futura atuação profissional como professores de língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa no então ensino de 1º. e 2º. graus. Quando perguntávamos sobre a pronúncia correta do nome do autor, Cury respondia em seu característico tom brincalhão: “Alguns dizem ‘Massô’, mas está errado. Ele não é francês, é filho de libanês. A pronúncia correta é ‘Massaúde’.
Segui as recomendações. Os livros de Massaud Moisés estavam entre os que emprestei da biblioteca da faculdade ou comprei na livraria da cidade, para estudar durante o curso e depois para o concurso de ingresso no magistério público. Na prova de redação, cujo tema era a comparação entre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, fiz uma quase paráfrase da análise que lembrava ter lido em A criação literária (Melhoramentos; Edusp, 7ª. ed.,1975). Outros, como Guia prático de análise literária (Cultrix,1974) e Dicionário de termos literários (Cultrix, 1982), também passaram a fazer parte da minha biblioteca. Nas páginas amareladas estão as marcas do intenso manuseio e anotações para preparação de aulas, análises literárias e pesquisas sobre termos, autores e obras. As lembranças desses livros, recuperei-as para registrar neste texto, quando, dias atrás, ao pegar do chão a capa despregada de A criação literária e devolvê-la ao exemplar na estante, abri-o e encontrei sublinhada a primeira frase do prefácio do autor: “Todo livro tem sua história”. Dei-me conta, então, de que, embora não o tenha conhecido Massaud Moisés pessoalmente, meio século se passou desde o início de minha história de leitora de sua obra, quando eu era ainda estudante de Letras em Araraquara, e há mais de 30 anos ingressei como docente e pesquisadora na universidade e na faculdade de que ele foi diretor, contribuindo para a expansão do ensino superior no estado de São Paulo e, de modo duradouro, para a formação de milhares de estudantes, professores e pesquisadores.
Maria Mortatti
O IMPRESSOR LÉON SCOTT E A IMAGEM DO SOM / JOÃO SCORTECCI
O tipógrafo, bibliotecário e livreiro francês Léon Scott (Édouard-Léon Scott de Martinville, 1817-1879) foi o inventor do fonoautógrafo. Em 25 de março de 1857, obteve a patente francesa nº 17 897 / 31 470; três anos depois, em 9 de abril de 1860, fez com o seu dispositivo a mais antiga gravação existente da voz humana. Léon Scott estava interessado em registrar o som da fala humana de uma forma semelhante à alcançada pela então nova tecnologia de fotografia para luz e imagem. Esperava com o seu invento criar uma forma de registrar a conversa inteira, sem omissões, à semelhança de técnicas de escrita abreviada, como a estenografia, a taquigrafia, a logografia, a pasistenografia, que utilizam caracteres especiais, permitindo que se anotem as palavras com a mesma rapidez com que são pronunciadas. Concebeu a gravação sonora pela primeira vez, quando, debruçado em um texto sobre fisiologia humana, imaginou uma nova possibilidade incrível: se a fotografia podia capturar imagens fugazes com lentes modeladas no olho, uma réplica do ouvido não poderia, de forma semelhante, capturar palavras faladas? Ele a chamou de "a ideia imprudente de fotografar a palavra". Diferentemente do fonógrafo, invenção de Thomas Alva Edison (1847-1931), o aparelho de Léon Scott criava apenas uma imagem do som. A partir de 1853, dedicou-se a desenvolver – por meio mecânico – uma técnica para transcrever sons vocais. Ao revisar gravuras de um livro de Física, deparou com desenhos de anatomia auditiva. Tentou imitar o funcionamento com um dispositivo mecânico, substituindo o tímpano por uma membrana elástica e o ossículo, por uma série de alavancas, que moviam uma caneta que ele propôs prensar em uma superfície de papel, madeira ou vidro coberta de negro de fumo, feito de carbono, usado em muitos produtos, como tintas, borrachas, plásticos e adesivos. Para coletar o som, o fonautógrafo usava uma buzina presa a um diafragma que fazia vibrar uma cerda rígida, inscrevendo uma imagem em um cilindro revestido de negro de fumo e de manivela à mão. Ele construiu vários dispositivos com a ajuda do fabricante alemão de instrumentos acústicos Karl Rudolph Koenig (1832-1901). A intenção de Léon Scott era possibilitar que as ondas do dispositivo fossem lidas por humanos como se lessem um texto, o que se mostrou inviável. Mesmo não tendo sucesso, o trabalho de Léon Scott serviu de estudo para o desenvolvimento futuro da comunicação gráfica – transmissão de mensagens por meio de elementos gráficos, como imagens, símbolos, cores, tipografia e formas. Léon Scott, no entanto, não foi capaz de lucrar com a invenção do fonoautógrafo. Viveu até os 62 anos e passou o resto de sua vida trabalhando como livreiro, lidando com gravuras e fotografias, na Rue Vivienne, 9, em Paris.
João Scortecci
LEON FEFFER, O HOMEM QUE CALCULAVA PAPEL PARA LIVROS / JOÃO SCORTECCI
Conheci o ucraniano Leon Feffer (1902-1999), fundador do Grupo Suzano Papéis, no ano de 1996, quando da edição e impressão, para a associação “A Hebraica”, da antologia do I Concurso Literário Consulesa Antonietta Feffer, em homenagem a sua esposa, então recentemente falecida. Leon Feffer dedicou-se ao trabalho comunitário em instituições como a Casa de Cultura de Israel, a Federação Israelita do Estado de São Paulo, o Hospital Albert Einstein e o Colégio Renascença. Foi um dos fundadores de “A Hebraica” e cônsul de Israel no Brasil. Empresário respeitadíssimo e bom de conta “de cabeça”. Para muitos, um adorado “pão-duro”. Veio para o Brasil em 1920, com 18 anos de idade, com a mãe, um irmão e duas irmãs. Seu pai já estava no País desde 1910. Durante os anos de 1920 e 1930, fundou, na capital paulista, a empresa Leon Feffer, voltada ao comércio de papéis, uma tipografia e uma pequena fábrica de envelopes. Morava na Rua Bresser, no bairro do Brás, e usava o porão da casa para armazenar papéis. Para visitar os clientes, usava o bonde. Em 1941, inaugurou sua primeira fábrica de papel, no bairro do Ipiranga, também na cidade de São Paulo. Em cinco décadas construiu um império. Foi Leon Feffer quem me ensinou a calcular a quantidade de papel para impressão de livros. Tudo aconteceu mais ou menos assim: diagramamos a antologia, definimos a tiragem e solicitamos por fax, para a Suzano Papéis – patrocinadora da obra – , oito resmas, com 500 folhas cada, no formato 87 x 114 cm, para impressão. Trinta minutos depois, não mais do que isso, o telefone tocou. Atendi, de pronto. Era o Sr. Leon Feffer. O coração disparou. “Em que posso lhe atender, Sr. Leon?” “Meu jovem, sei que estou conversando com um editor respeitado, inteligente, de prestígio no mercado de livros.” “Obrigado”, respondi. “Posso lhe fazer uma pergunta?” Gelei. “Claro, Sr. Leon. Faça, por favor.” “Onde o jovem editor aprendeu a calcular a quantidade de papel para a impressão de um livro?” Silêncio. Refiz os cálculos - na velocidade da luz - conferi o pedido enviado por fax e respondi. “Sr. Leon, o meu cálculo está correto.” “Não está. Não está. Não está!” Repetiu três vezes. “Onde eu errei, Sr. Leon?” Ele então me ordenou, de pronto: “Pegue papel e lápis e vamos calcular juntos”. E assim foi. Na ponta do lápis, chegamos a sete resmas e mais 150 folhas. “Certo?” “Certo”, respondi. Ele então me perguntou: “Qual então a razão do seu pedido de oito resmas com 500 folhas cada?” “Sr. Leon, coloquei 10% de quebra e arredondei o número de resmas. É o padrão.” Sr. Leon explodiu: “Padrão? Isso é um absurdo! Desperdício de papel! 10% de sobra? Sua máquina gráfica deve estar desregulada, deve estar precisando de uma boa manutenção. Faça isso! Outra coisa: você não sabe que fabricamos meia resma, com 250 folhas?” “Sim. Sei”, respondi. “Sete resmas com 500 folhas cada e mais uma meia resma, com 250 folhas, são mais do que suficientes." E assim foi feito. No fígado. Devo ter publicado e impresso duas ou três antologias do Concurso Literário Consulesa Antonietta Feffer. Com o passar do tempo, o Sr. Leon, madrugador que era, passou a telefonar pela manhã, para papear e jogar conversa fora, uma ou duas vezes por semana. Ficamos amigos ou quase isso. Ele falava e eu respondia. Em 1998, o Sr. Leon adoeceu e veio a falecer no dia 7 de fevereiro de 1999. O queridíssimo Sr. Leon Feffer foi o meu Malba Tahan, o homem que calculava papel para livros.
João Scortecci
JACK LONDON, O BRASILEIRO / JOÃO SCORTECCI
Não me lembro do ano exato. Talvez 1996. Alguém da Livraria Cultura me ligou e disse: “O Jack London da Booknet vai falar sobre e-commerce de livros”. Algo assim. “Jack London: o autor do livro ‘O Lobo do Mar’? Impossível! O moço morreu em 1916!” “Não! O Jack London brasileiro. O criador da Booknet – depois Submarino, 1999 –, considerada a primeira loja online de livros do Brasil.” Então fui. Auditório lotado, muita gente importante do negócio do livro. Em maio de 1996, na Folha Ilustrada, a jornalista Cristina Grillo, escreveu: “A Booknet põe 12 mil títulos à venda na rede, expectativa é que o acervo chegue a 40 mil em 90 dias. Por meio da Internet, será possível comprar e receber em casa livros de 35 editoras brasileiras e de outras nove livrarias virtuais nos Estados Unidos e na Europa.”. Perguntaram: “Você é parente do escritor norte-americano?”. “Não. Foi um gracejo da minha mãe que tinha ‘London’ no sobrenome e gostava muito do autor”. Risos. Declarou, então: “Foi após uma visita à Amazon, em 1994, que decidi criar a Booknet”. “Amazon?” “Sim. Empresa de tecnologia norte-americana de e-commerce, computação em nuvem, streaming e inteligência artificial, fundada por Jeff Bezos, em 5 de julho de 1994.” O José Henrique Grossi, amigo e na época vice-presidente da CBL, fuxicou no pé do meu ouvido: “Logo a Amazon vai vir com tudo e engolir deus e o mundo!” Profetizou. E, então, soltou sua frase predileta, conhecida por todos: “Merdas cagadas não voltam mais ao cu!”. Risos. Pela Scortecci Editora, trabalhei alguns anos com o Submarino – depois Lojas Americanas – e a experiência não foi boa. Desisti. A Submarino fechou em 2024. Foi quando, ferozmente, a Amazon engoliu de vez o mercado de livros na Internet, hoje com mais de 50% do varejo. Na matéria da jornalista Cristina Grillo de 1996, detalhes de oportunidade: “Os preços serão os mesmos das livrarias. London garante que, no Rio e em São Paulo, os pedidos serão entregues no máximo três dias depois de encomendados. Outra vantagem que a Booknet irá oferecer aos clientes é a possibilidade de usar o cartão de crédito com segurança nas compras. De acordo com London, existem no Brasil 250 mil computadores ligados à Internet – cada um é usado em média por quatro pessoas.”. Lendo sobre a vida de Jack London na Internet, encontrei sua declaração numa entrevista: “Aos 20 anos de idade, tinha certeza que minha vida seria uma mistura de livros, tecnologia e cinema. E me dediquei à vida toda a isso!”. Acertou em quase tudo. Acontece. Menos que os preços na Amazon seriam os mesmos praticados pelas livrarias. Grossi sabe das coisas! Jack London faleceu em agosto de 2016, aos 67 anos de idade, 100 anos depois do escritor norte-americano, autor do livro “O Lobo do Mar”.
João Scortecci
AUGUSTO DE CAMPOS E A INFOXICAÇÃO EM TEMPOS DE IA / JOÃO SCORTECCI
Um dia de cada vez. Lendo sobre o uso e aplicação de ferramentas de Inteligência Artificial na literatura, encontrei algo do outro mundo – literalmente. Já chegamos lá? Talvez. Estava trabalhando numa apresentação para a Abigraf – Associação Brasileira da Indústria Gráfica, intitulada “O produto livro – Das responsabilidades da Indústria Gráfica”, quando dei de cara com um artigo do outro mundo, em que se dizia que um centro espírita estava usando IA, para se comunicar com pessoas que já haviam morrido. Conversas do além, algo assim. Gosto do assunto – muito – o que me obrigou a ler o artigo inteiro. Faz parte. Aqui com as almas penadas da literatura: já imaginaram incorporar uma identidade IA? Receber um mix de escritores malditos, concretistas, modernistas e parnasianos? Doideira! Verdadeira infoxicação literária. Descobri, ainda, que a palavra "infoxicação” é a junção das palavras "informação" e "intoxicação", conceito concebido pelo físico espanhol Alfons Cornellade, para designar a situação em que uma pessoa tenta receber e analisar um número de informações muito maior do que seu organismo é capaz de processar. Dizem – não sei se é verdade – que um ser humano tem a capacidade máxima de ler 350 páginas por dia, caso faça apenas isso o dia inteiro! Desconfio. Já o volume de informações que recebemos diariamente pela Internet é de cerca de 7.355 gigas, o equivalente a bilhões de livros! Lendo sobre os 94 anos do incrível escritor Augusto de Campos e o lançamento do seu livro “Pós Poemas”, algo me chamou atenção – além da conta – no belíssimo texto escrito pelo jornalista Claudio Leal. No olho do texto, chamado de resumo: “Augusto de Campos, principal escritor brasileiro vivo!”. Algo assim. Augusto merece todos os elogios e imortalidade. O que achei estranho – Drummond já havia alertado sobre o perigo – foi a afirmação de se tratar do principal escritor brasileiro vivo. Não precisava. Poderia ser algo assim: “Um dos principais...” Todos os dias perdemos escritores incríveis, maravilhosos e imortais. Conhecidos e desconhecidos. Precisava dizer isso? Talvez não. E mais: o assunto do centro espírita comunicando-se por IA com escritores mortos promete briga, confusão e inveja. Ou não? O papel aceita tudo! O inferno e o céu também. No mais, vou comprar o livro do poeta Augusto de Campos. E, se possível, com autógrafo.
João Scortecci
POETAS BISSEXTOS – “ESTADO DE GRAÇA DE RARO EM RARO” / MARIA MORTATTI
“Bissexto” (do latim bis sextum) é a denominação do ano civil com um dia extra, 29 de fevereiro, acrescentado de quatro em quatro anos ao calendário gregoriano. Foi a solução matemática criada no século 45 a.C. pelo astrônomo Sosígenes para compensar as 6 horas que sobram a cada ano de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, tempo exato do movimento de translação da Terra em torno do Sol.
Em 1942, a palavra foi trasladada pelo poeta Vinícius de Moraes (19.10.1913 – 09.07.1980) em artigo sobre poesia brasileira, na revista argentina Sur, de 1942, para se referir em sentido figurado aos poetas “que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embargo os coloca ao lado dos mais citados”.
Com base nessa translação semântica, o poeta Manuel Bandeira (09.04.1886-13.10.1968) imortalizou a expressão “poetas bissextos” em sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Zélio Valverde, 1946). Assim explica no prefácio:
Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo dicionário, bissexto só há ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil [...] bissexto é todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro.”; “nego que a circunstância de não publicar os poemas em livro ou em revistas e jornais seja característica essencial do bissexto. O essencial é a produção rara.”; “O bissexto, na sua relativa impotência criadora, tem, às vezes, achados que enchem de inveja todo o ‘genus irritabile’.
O organizador reuniu mais de uma centena de poemas escritos por pessoas que na época exerciam diferentes atividades – escritores, advogados, engenheiros, médicos, sociólogos, professores, jornalistas, padres, pintores. Entre eles estavam: Afonso Arinos de Mello Franco, Aníbal Machado, Dante Milano, Euclides da Cunha, Joaquim Cardozo, José Auto, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, Ismael Nery, Joanita Blank, Leopoldo Brígido, Lucila Godoi, Lucilo Bueno, Luís Aranha, Maria Clara Machado, Maria Helena, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas, Pedro Nava, Raimundo Magalhães Júnior, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga, Sérgio Buarque de Hollanda.
Nem todos eram “bissextos autênticos”, como o organizador adverte, mas optou por incluí-los para não perder poemas de qualidade. Nem todos eram ou se tornaram contumazes – epíteto sugerido por Paulo Dantas e aceito por Bandeira, como antônimo de bissextos. Vinte e quatro anos depois, na 2ª. edição da Antologia... (Organização Simões, 1964), Bandeira incluiu outros poetas que, nas décadas seguintes, passaram a publicar de modo contumaz, como H. Dobal e Odylo Costa, filho. Provavelmente pelo mesmo motivo, outros, como Joaquim Cardozo e Paulo Mendes Campos, foram excluídos dessa edição. Alguns, ainda, tornaram-se “imortais” quando posteriormente eleitos, pelo conjunto da obra em outros campos e gêneros literários, como membros da Academia Brasileira Letras.
Manuel Bandeira – poeta contumaz – tornou-se "imortal" em 1940. A Antologia de poetas bissextos contemporâneos, publicada naquele ano, tornou-se um clássico – teve outras reedições, inspirou outras antologias e provavelmente outros poetas contumazes, ou não. E sua solução poética para designar aquele "em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil" foi consolidada em dicionário: “quem exerce pouco determinada atividade (ex.: poeta bissexto)”.
Maria Mortatti
CENA BRASILEIRA NA FOTOPTICA-BRASILIENSE / MARIA MORTATTI
A revista Novidades Fotoptica lançada em 1953 e publicada até 1987, com alterações na periodicidade, formato e conteúdo, foi uma das iniciativas de Thomaz Farkas (17.10.1924-25.03.2011), fotógrafo, cineasta e empresário de origem húngara radicado na cidade de São Paulo. Reconhecido como um dos pioneiros da moderna fotografia e do filme documentário no Brasil, ao lado de grandes cineastas do Foto Cine Clube Bandeirantes, Farkas assumiu, após a morte do pai em 1960, a direção da Fotoptica, primeira empresa especializada em equipamentos fotográficos no País. Com formato de jornal, Novidades Fotoptica publicava anúncios de produtos do ramo, divulgação de livros e concursos, artigos sobre técnica fotográfica e audiovisual, exposições, entre outros. A partir de 1970, com formato de revista, passou a publicar também textos críticos e ensaios fotográficos.
Não menos importante na cena cultural e literária brasileira foi a Editora Brasiliense, fundada em 1943 na cidade de São Paulo, por reconhecidos intelectuais e escritores brasileiros: Caio Prado Júnior, José Bento Monteiro Lobato, Arthur Neves, Leandro Dupré a Maria José Dupré, cuja casa foi utilizada como primeira sede da editora. A Brasiliense publicou obras fundamentais da literatura e cultura brasileira e internacional, caracterizando-se pelo prestígio de seus autores e como foco de resistência ao Estado Novo e à ditadura militar pós-1964. A partir de 1975, sob a direção de Caio Graco Prado (1931-1992), filho de Caio Prado Júnior, foram lançadas coleções inéditas, como a Primeiros Passos, que tiveram sucesso editorial duradouro, com vendas de milhares de exemplares nos anos 1980. A editora também lançou a Revista Brasiliense, com circulação entre 1955 e 1964, e Leia livros, dirigida por Caio Graco Prado e Cláudio Abramo, com circulação entre 1978 e 1984. A Livraria Brasiliense, na Rua Itapetininga, no centro da cidade de São Paulo, tornou-se referência para encontros de intelectuais, escritores, manifestações, debates e exposições.
No final do ano de 1979, Fotoptica e Editora Brasiliense, reunindo expertises, promoveram o Concurso Cena Brasileira, com ensaios de textos e fotos. Os selecionados foram publicados na revista Novidades Fotoptica, n. 83, de 1978. No editorial consta comentário sobre os ensaios, que revelam a visão de uma parcela significativa da população, na moderna cena fotográfica e literária e cultural e no contexto político da época: “Não importa onde esteja a cena brasileira [...] o que interessa é que muitos jovens brasileiros querem encontrar os vestígios de uma realidade sem os retoques do estúdio”. Como “nos tempos do movimento universitário, a fotografia documento sem ranço de qualquer academicismo sociologismo ou antropologia [...] A unidade de palavra e de imagem muito pouco estimulada na maior parte de nossas situações ganha em vigor e expressão.”
Além da publicação na revista Novidades Fotoptica, os premiados no concurso tiveram a oportunidade de expor suas fotos e poemas em varais estendidos na calçada em frente à Livraria Brasiliense. Lá estava meu poema “Rapsódia brasileira: queimação da cana” acompanhando cinco fotos de Karlos Magnani. Aquela cena da estreia pública da jovem poeta numa paulistana manhã de sábado ficou documentada nas páginas da revista, guardada no acervo pessoal e preservada na memória desta brasileira.
Maria Mortatti
MULHERES IMPRESSORAS, ELIZABETH MALLET E OS ÚLTIMOS DISCURSOS MORIBUNDOS / JOÃO SCORTECCI
A biografia da gráfica e livreira inglesa Elizabeth Mallet (1672-1706) é incrível. Pesquisando sobre mulheres impressoras e editoras na Inglaterra, soube do The Daily Courant, primeiro jornal diário inglês, fundado em 11 de março de 1702. O diário consistia em uma única página, com anúncios no verso. No primeiro número do jornal, Elizabeth Mallet declarou que pretendia publicar apenas notícias e não acrescentaria nenhum comentário próprio, supondo que seus leitores tivessem "bom senso” e “discernimento” para julgar e analisar os fatos. Anúncios somente no verso do jornal, prova do que dizia de não permitir interferências ou influências de anunciantes, políticos e poderosos. A ideia de separar as notícias dos anúncios foi tentada – ao longo do tempo –, por diversos jornais e revistas do mundo todo, sem sucesso. Os anunciantes simplesmente não aceitam! Exigem que seus anúncios ocupem espaços estratégicos e pagam por isso, seguindo os critérios de localização do anúncio no impresso, seu tamanho e relação proativa com a manchete do dia. Depois de menos de dois meses, Elizabeth Mallet vendeu o The Daily Courant para Samuel Buckley. O diário durou até 1735, quando foi fundido com o Daily Gazetteer. Elizabeth Mallet e seu marido, David Mallet, durante as décadas de 1670 e 1680, dominaram o comércio de discursos impressos proferidos por prisioneiros condenados antes da execução em Tyburn, feudo no condado de Middlesex, sudeste da Inglaterra. Os "últimos discursos moribundos” são as últimas palavras de uma pessoa antes da morte ou quando a morte se aproxima. Os registros são mais comuns do que parecem, principalmente na Europa e nos Estados Unidos da América. É comum, também, que condenados à pena de morte, no dia da sua execução, tenham direito a escolher o que desejam comer na sua última refeição. “O último pedido!” David, o marido de Elizabeth Mallet, morreu em 1683. No seu lugar, na gerência da gráfica e dos negócios, assumiu David, seu filho. O moço não tinha jeito para o negócio e o empreendimento acabou falindo.
Antes da invenção da imprensa, os livros eram feitos de páginas escritas por escribas, eram caros e luxuosos, privilégio apenas para religiosos e homens da classe alta. Um livro podia levar até dois anos para ser concluído. O alemão Johannes Gutenberg, por volta de 1450, inventou a prensa de tipos móveis, o que possibilitou a produção em massa de livros. A impressão naquela época era trabalho pesado, árduo e exigia força física. Mesmo assim, muitas mulheres conseguiam fazer todos os serviços necessários para produzir um livro. Aprendiam o ofício com seus pais ou maridos. De 1500 até 1600, as mulheres representavam 10% da força de trabalho de impressão, em Londres. Antes da abolição do sistema de guildas – associações de artesãos e comerciantes que controlavam e supervisionavam a prática de um ofício ou comércio em determinado território ou região –, a única maneira de uma mulher se tornar empresária das artes gráficas era herdar um negócio de seu falecido marido, já que o privilégio da guilda – patente e autorização – era concedido, por costume, à viúva de um membro da associação. A Inglaterra seguiu o costume europeu de permitir que as viúvas herdassem o privilégio da guilda, até que se casassem novamente. Sabe-se que 34 viúvas eram ativas como impressoras e editoras de livros em Londres, entre 1641 e 1660. A lista de viúvas empresárias gráficas de sucesso é grande: Elizabeth Mallet, Elisabeth Pickering, Mary Clark, Hannah Allen, Elinor James, Ann Lea, Anne Dodd Ann Ward, Martha Gurney, Elizabeth Jackson, Eleanor Lay e Sarah Roddam. Na Inglaterra, a maioria das gráficas herdadas por mulheres, viúvas de impressores gráficos, progrediram e duraram por décadas. Algumas estão, até hoje, em pleno funcionamento, imprimindo jornais, revistas e livros.
João Scortecci