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DERRIDA E A DESCONSTRUÇÃO DO TEXTO / JOÃO SCORTECCI

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) acalma os miolos, minhas inquietações e também as dores da alma! Ele e suas “aporias”, que em grego antigo significa contradição, impasse ou dificuldade. Interessante! Em “O livro da Filosofia” (Globo Livros, 2016, p. 310-313), o filósofo explica a sua famosa frase: "Não há nada fora do texto". Quando escrevo ou quando leio – qualquer coisa, não importa – sempre acho e continuo achando que falta algo. Mania chata!  Textos antigos são apagados e sofrem mudanças, sempre. A saga não tem fim! Derrida resolveu o problema, creio. Lendo sobre o seu método de desconstrução do texto, consegui entender o que o autor chama de “différance”/“diferência” (com “i”), para explicar que todos os textos escritos têm hiatos, buracos, contradições e impasses. Já disse: Derrida acalma os miolos. Digo sempre: odeio reticências – omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada, insinuação. Na poesia é deplorável. Antes de conhecer o pensamento filosófico de Jacques Derrida tratava o assunto como “dilemas literários”, quando solução alguma parecia satisfatória ou desejável. Um sofrimento! No meu livro de poesia “A morte e o corpo”, publicado nos anos 1980, tive que colocar, na última página, esta nota: “Dilema literário para não julgar, fazer o poema sem-fim!”. Foi a solução na época. A cada edição do livro reescrevo o texto, sempre imperfeito. Uma dor que não tem fim. Sobre a frase "Não há nada fora do texto", eu faria uma sugestão, um acréscimo. Ficaria assim: "Não há nada fora do texto e nem do contexto". Perdão. Não resisti. Fazer o quê? Nasci assim: exagerado e inquieto. Pensei em finalizar este texto com reticências, três pontinhos e depois escrever “fim”. Desisti. Estou tentando desconstruir meus pecados, meus vazios, meus hiatos e impasses. Em diferências e deferências, claro. 


João Scortecci


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UMA CAIXA DE JOIAS LITERÁRIAS CHINESAS / MARIA MORTATTI

Bibliotecas pessoais, mais do que coleção de livros, guardam caixas de joias literárias garimpadas, escolhidas a dedo. Assim penso cada vez que alguma delas – sem motivo aparente – brilha na estante, entre centenas de outras, oferecendo-se à releitura. Assim aconteceu com a lombada verde-jade e o título branco-pérola de A caixa de joias da cortesã – volume II, coletânea de contos das dinastias chinesas Song (960-1279) e Ming (1368-1644), editado e impresso em Pequim, por Edições em Línguas Estrangeiras, em 1987, e distribuído por Corporação Chinesa para o Comércio Internacional de Livros. 

O volume, com seis ilustrações em bico de pena, contém cinco contos – “O chapéu de feltra esfarrapado”; “A caixa de joias da cortesã”; “O vendedor de óleo e a cortesã”; “O velho jardineiro”; “A vingança de um homem justo” –, selecionados entre mais de duzentas histórias populares chinesas do século X ao XVII, inicialmente manuscritos de contadores de histórias, em linguagem popular, que se desenvolveram como gênero literário e foram publicados em coleções no começo do século XVII. Não há indicação do nome do tradutor para o português, mas pode-se presumir que seja ou uma tradução brasileira “anônima” ou mais provavelmente tradução direta de algum entre os que, como Gladys Yang, Yang Xianyi e Sidney Shapiro, traduziram para o inglês muitas obras da literatura chinesa clássica e moderna, integrando as publicações da Edições em Línguas Estrangeiras, fundada em 1952 e com milhares de publicações, em dezenas de idiomas, sobre assuntos diversos e também material didático para estudantes estrangeiros na China. 

No conto que dá título ao volume se encontra uma narrativa entremeada de alguns versos em tom de comentário, na qual é contada a história de amor protagonizada por Décima, a mais linda cortesã da casa da velha senhora e a mais cobiçada pelos homens. Li, filho de alto funcionário imperial e estudante do Colégio Imperial de Pequim, para usufruir da companhia de Décima, gastou todo o dinheiro que o pai lhe dava. Tornaram-se amantes, juraram amor eterno e, apesar das suspensão dos pagamentos e ordens do pai para que ele retornasse, decidiram libertá-la da casa e da condição de cortesã para se casarem. Depois de muitas dificuldades para Li conseguir o dinheiro e as duras condições impostas pela velha senhora para libertá-la, Décima ganhou de uma cortesã uma caixa com a recomendação de somente abri-la em caso de necessidade e o casal partiu em viagem, sem saber ao certo aonde ir sem dinheiro, temendo voltar à casa do pai dele, depois de ter gastado e com uma cortesã o dinheiro que o pai lhe dera e ainda querer se casar com ela. Durante a viagem, Li encontrou o astuto jovem Sun, aceitou seu convite para beber, contou a ele sua história, ouviu seus conselhos e se convenceu a vender Décima para Sun, pois, assim, Li poderia voltar para a casa do pai com dinheiro e sem ofender a família com uma esposa cortesã. Quando Li conta a Décima sua decisão, sentindo-se traída e abandonada pelo homem que lhe jurara amor eterno, aparentemente aceitou ser vendida, enfeitou-se, perfumou-se e abriu a caixa que havia ganhado na partida. Foi abrindo gavetas de dentro da caixa, cada uma com muitas pedras preciosas, flautas de jade e peças de ouro, jogando-as no rio. Chorando de remorso, Li tentava impedi-la, sem sucesso. Depois de contar, em voz alta para as pessoas que se juntaram ao redor do barco, sua história e a traição de Li que a abandonou no meio do caminho, Décima agarrou o cofre, saltou no rio e nunca mais foi encontrada. Li enlouqueceu e Sun, sentindo-se perseguido pelo fantasma de Décima, adoeceu e definhou até morrer. A narrativa termina com estes versos: “Aqueles que nunca amaram devem ficar silenciosos;/ Não é fácil saber quanto vale o amor;/ E ninguém a não ser os que dão valor à constância/ Merece o nome de amante nesta terra”.

O enredo se passa em 1592, no contexto da invasão da Coreia pelo general japonês Hideoshy, no período Wan Li, quando o imperador concordou com o novo sistema de vantagens para os que tinham dinheiro, como facilidades nos estudos dos filhos de funcionários para adquirirem lugar no Colégio Imperial. Passados mais de quatro séculos e em contexto social e geográfico bastante diverso, essa história ainda encanta de diferentes pontos de vista; a mim, pelo realismo lírico com que são representadas as relações de poder e amorosas, especialmente a condição das mulheres. E o reencontro e a releitura dessa caixa de joias chinesas – que garimpei, escolhi a dedo e comprei por US$ 2,50, no dia 16 de maio de 1990, não lembro onde... –  fez-me pensar que a leitura é também um espécie de amor; não é fácil saber quanto valem joias literárias e somente os que lhes dão valor merecem o nome de amantes da literatura...

Maria Mortatti 


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FERNANDA LOPES DE ALMEIDA, UMA CLARA LUZ NA LITERATURA INFANTIL / MARIA MORTATTI

Clara Luz, a fadinha transgressora, Soprinho, que torna as pessoas desejosas de fazer coisas, e Glorinha, a menina perguntadeira, foram as primeiras personagens que conheci dos clássicos da literatura para crianças criados pela escritora e psicóloga Fernanda Lopes de Almeida ([18.08].1927 – 27.12.2023). Pertencia a uma “família das letras”: era neta da escritora Julia Lopes de Almeida e do poeta e jornalista Filinto de Almeida, ambos entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras, e sobrinha-neta da escritora e educadora Adelina Lopes Vieira e presumivelmente parente da poeta Presciliana Duarte de Almeida, membro- fundadora da Academia Paulista de Letras, onde ocupou cadeira n. 8, cuja Patrona é Barbara Heliodora, sua bisavó. Como conta em entrevista recente para a revista Aletria, cresceu na casa da família no Rio de Janeiro e, mesmo antes de ser alfabetizada, gostava de ouvir histórias e contos de fadas clássicos que a mãe contava e a leitura já se tornara hábito. Por volta dos oito anos de idade começou a escrever histórias e poemas, mas não foi como sua avó, “que a isso se dedicou a vida inteira”. Formou-se em Psicologia, exerceu a profissão por 25 anos trabalhando com crianças e escrevia contos e crônicas para adultos – com influências da obra literária da avó Júlia –, que foram  publicados em jornais e revistas. Mais tarde, quando começou a escrever para crianças, a principal influência foi Monteiro Lobato, mas logo se libertou pois “já estava muito mais consciente do que queria dizer e como dizê-lo”.

Iniciou a carreira literária para crianças em 1970, integrando uma geração de novos escritores que revolucionaram a literatura infantil e juvenil – como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo – apresentando novos temas e formas de escrever para o público infantil, com textos e ilustrações sensíveis e poéticos, com objetivo de divertir e propiciar leitura prazerosa, sem preocupação de ensinar. Publicou mais de duas dezenas de livros nas décadas seguintes, com muitas edições e milhares de leitores até os dias atuais e que se tornaram clássicos da literatura infantil.

Entre os que me marcaram, estão: os dois livros de estreia da autora no gênero, A fada que tinha ideias – ilustrações de Edu –, adaptado para peça teatral em 1982, que recebeu Troféu Mambembe pelo Melhor Texto de Teatro Infantil, e Soprinho – ilustrações de Odilon Moraes –, que recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro Infantil – 1971, da Câmara Brasileira do Livro e integra o acervo permanente da Biblioteca Internacional para a Juventude; e A curiosidade premiada – ilustrações de Alcy Linhares, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1978.

Clara Luz, Soprinho e Glorinha também fizeram parte de minhas aulas na educação básica e na universidade. Com eles e as professoras de horizontologia e D. Domingas, aprendemos que, quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda; que podemos ver tudo de forma diferente e encantada, quando nos deixamos levar pelo sopro da imaginação; e que, se para certos adultos prêmio só existe quando se pega nele, para as crianças – e adultos também – a curiosidade é premiada com o autoconhecimento e o conhecimento do mundo. 

Não tenho esses livros em mãos. Levei-os para ler com meu neto, deliciamo-nos com a leitura e ficaram na biblioteca dele. Mas são histórias presentes até hoje em minha memória, clássicos que independem do tempo e da faixa etária. Uma clara luz e um duradouro sopro de renovação na literatura para crianças – e adultos também. Basta senti-los. Assim como disse a longeva autora em entrevista para a revista Crescer: “Nunca penso em faixa etária exata, pois as crianças são tão diferentes umas das outras. E acho, como muitos acham, que o bom livro infantil interessa também ao adulto. ... o que faz um livro ser realmente bom? Não se sabe, ou melhor, não se traduz em palavras. Sente-se”.

Maria Mortatti – 13.05.2025 

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BEST-SELLER CARIMBADO / JOÃO SCORTECCI

“Queremos publicar um livro!” Foi o que escutei do jovem casal. “Dueto literário?”, perguntei. “Não. Livro solo”, explicou o marido, olhando para a esposa. Abriram uma pasta de elástico azul e tiraram um maço de poemas. Mais de 200, creio. O marido, então, começou a fazer uma triagem, entregando para a esposa os poemas selecionados por ele. Estranho. “Essa não! Essa também não!” Foi fazendo uma pilha à parte, com os rejeitados. A esposa observava tudo, calada, aparentemente concordando com a seleção. O marido explicou: “Queremos um livro com 100 páginas, no máximo”. “Selecionem, então, 90 poemas.  As demais páginas usaremos para compor as folhas de rosto, sumário, dedicatória e cólofon”, expliquei. Levaram quase uma hora na triagem. “E o título?”, perguntei. Ele escreveu o título num pedaço de papel e me entregou. “E a dedicatória?” A autora escreveu algumas linhas num pedaço de papel e mostrou para o marido. Ele olhou – fez cara azeda – e riscou dois nomes da lista de homenageados. “Esse não! Esse também não!” A esposa balançou a cabeça, concordando. Pronto. Fechamos o contrato e iniciamos os trabalhos de edição. O casal optou por fazer o serviço de revisão na editora. O marido – sempre junto – sentou ao lado da autora e acompanhou a revisão, linha por linha. Na época, ganharam dos funcionários da editora o apelido de “Casal 20”, série de sucesso da televisão americana criada pelo romancista Sidney Sheldon e protagonizada pelo casal rico e simpático Jonathan (Robert Wagner) e Jennifer Hart (Stefanie Powers). Risos. Quando os livros ficaram prontos, o marido veio buscá-los. Sozinho. Conferiu os exemplares e, sentado no banco da recepção da editora, na época localizada na Galeria Pinheiros, releu toda a obra, página por página. Agendou, então, a data do lançamento e, para a noite de autógrafos, fez uma exigência: “Quero uma cadeira ao lado da minha esposa!”. E assim foi. Muita gente no evento. Família e amigos. Coquetel, música e um fotógrafo contratado por ele. A esposa autografava e entregava o livro para o marido, que lia a dedicatória e, com um carimbo, validava o texto escrito. Não saiu nenhum livro sem o carimbo. Eu juro! Estranho foi receber de presente o meu exemplar, o último da noite. Tinha dois carimbos na folha de rosto. Um no início da dedicatória e outro, no final. Desconheço a razão dos dois carimbos. Pensei, no início, tratar-se de um erro, já que o primeiro carimbo estava meio apagado, com falhas de impressão. Com o tempo, desconfiei dos dois carimbos, um no início e outro no final da dedicatória, como limitadores de espaço. Qualquer palavra fora dos limites que surgisse depois, seria sinal de cumplicidade, de traição. Algo assim. O casal, depois de alguns anos, separou-se. A esposa poeta ligou, pedindo ajuda. Explicou: “O meu ex-marido entrou na Justiça cobrando parte dos lucros sobre a obra, segundo ele, um best-seller, com milhares de exemplares vendidos”. Imaginação fértil. E nada mais.   

João Scortecci


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FERNANDO, UMA PAIXÃO DE POETA / JOÃO SCORTECCI

Fernando era o nome dele. Tinha 18 anos de idade e era a paixão desbragada da menina poeta, olhos grandes, 16 anos de idade. Quem me ligou na editora foi sua mãe, indicação de uma professora de Letras, autora da Scortecci. Disse-me: “Quero publicar o livro de poesia da minha filha!”. Marcamos, então, uma data para reunião na editora. O livro estava datilografado em papel sulfite e tinha cerca de 60 páginas. Um poema por página, sumário e dedicatória. Título do livro: “Fernando, uma paixão!”. Comecei, então, a folheá-lo, batendo olhos, numa leitura dinâmica. Dedicatória: “Para o Fernando, amor da minha vida”. Li alguns poemas. Parei. Todos contavam a história do amor da poeta pelo príncipe encantado Fernando. Um diário. Olhei para a mãe e ela – adivinhando o meu incômodo – declarou: "Scortecci, preciso publicar esse livro. Essa menina – olhou para a filha sentada ao seu lado – está me deixando maluca. Já infernizou a vida do pai. Chora pelos cantos da casa, não come, não dorme e fala que vai cortar os pulsos”. A jovem poeta balançou a cabeça validando a história. Risos. "Eu quero!”, exclamou, batendo os pés no chão. Nos poemas do livro, eram relembrados o dia em que a poeta conheceu o Fernando, o primeiro encontro dos dois, a paquera, o primeiro olhar, a troca de bilhetes de amor, tardes no cinema e no shopping, o primeiro abraço, os primeiros beijos, quando escondidos viajaram para Ubatuba, e o dia em que ficaram juntos, fizeram amor e juraram amor eterno. Aceitei. Propus uma edição de 100 exemplares, tiragem mínima. A poeta me olhou e sorriu, radiante. Fechamos o contrato e começamos a trabalhar na edição do livro: digitação, diagramação e arte de capa. A poeta queria lançá-lo no mês de junho, na festa junina da sua escola. Disse-lhe, então: “Temos pouco tempo! Vamos precisar correr e seguir um cronograma rígido. Anotei as datas num papel. A poeta seguiu tudo à risca. No dia da liberação dos arquivos para impressão, perguntei-lhe: “E o Fernando?”. Ela me olhou e disse, sorrindo: “É surpresa!”. Estava eufórica. Gelei. O livro entrou na gráfica no início do mês de junho. Dez dias depois – prazo normal do serviço gráfico – o livro ficou pronto. Liguei para lhe dar a boa nova. A poeta não estava em casa. Deixei recado. Não retornou. Alguns dias depois liguei de novo, para falar diretamente com a sua mãe. Ela atendeu: “O livro 'Fernando, uma paixão’ está pronto”. Silêncio. Agradeceu e desligou. Foi seca, formal. Na manhã do dia seguinte apareceu de surpresa na editora, sozinha. Disse-me: “Sr. Scortecci, poderia, por favor, destruir todos os exemplares?”. “O que aconteceu?”, quis saber. Contou-me, então: “O Fernando terminou o namoro e trocou minha filha pela sua melhor amiga”. Silêncio. Pagou-me pelo serviço e foi embora. Esperei um mês antes de destruir os livros. Poderia haver um retorno, pensei. Mas nada aconteceu. Então, guilhotinei-os. Nunca mais soube da poeta e seus versos de amor. Não conheci o seu Fernando. Hoje, quando vejo um livro com dedicatória para um Fernando, o coração bate forte. Coisas de poeta. Depois passa e dói. 


João Scortecci

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NÃO ACHO JUSTO SENTIR DOR / JOÃO SCORTECCI

Vez por outra recebo pedido de autor solicitando avaliação literária sobre o seu trabalho. Alguns desconhecidos. Pergunto, sempre: “Livro de poesia?”. Confesso: gosto do gênero, caminhos em que me sinto confortável. Recuso prosa. Não é a minha praia. Não tenho o conhecimento profissional para tanto.  Recomendo, então, procurar ajuda de profissional especializado. O mercado oferece boas opções. Quando o autor não conhece alguém para fazer o serviço e pede ajuda, eu recomendo. No ano de 2022, no início da pandemia de Covid-19, recebi uma solicitação de leitura crítica para um romance com mais de 400 páginas. Autor desconhecido. Procurei no cadastro da editora e não o encontrei. Pesquisei seu nome no Google, sem sucesso. Mistério. No corpo do seu e-mail uma ordem expressa: “Quero que você seja sincero!”. Fiquei surpreso, confesso. Como não poderia ser?, pensei. Respondi, então, educadamente: “Não sou a pessoa indicada para o serviço. Posso indicar ajuda profissional.” Algo assim. Enviei. No mesmo dia – algumas horas depois – veio uma resposta: “Não acho justo pagar por uma leitura crítica. O serviço deveria ser grátis, espontâneo e honesto!”. No parágrafo abaixo escreveu, ainda: “Vou procurar alguém com mais sensibilidade que você!”. Pensei, de pronto, mandá-lo para a PQP e mandar enfiar o livro no caneco. Respirei fundo. Curioso decidi perguntar qual era a sua profissão. Ele respondeu, logo em seguida: “Eu sou cirurgião dentista!”. Antes de deletá-lo do meu mundo, escrevi uma derradeira resposta: “Não acho justo sentir dor. Mas acontece!”. Algo assim. Não enviei o e-mail. O danado do e-mail fico girando na saída da caixa do Outlook. Ficou lá, espontaneamente. Depois travou e deu erro. Então o apaguei, gratuitamente. Fechei a boca e liguei para minha dentista. Descobri que estava com dor de dente e a gengiva inflamada. Acontece!

João Scortecci   


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APOSTA É APOSTA E EU PERDI / JOÃO SCORTECCI

A Scortecci Editora funcionou durante 10 anos, de 1982 até 1992, na Galeria Pinheiros, na Rua Teodoro Sampaio, n. 1.704, loja 13. Usávamos o espaço da galeria para recitais e lançamentos de livros, local com capacidade para mais de 300 pessoas. Naquela época, eu colaborava na organização dos eventos e minha presença fazia parte do negócio. Distribuíamos folhetos, marcadores de livros e cartões de visita. Era na época a única forma de captar novos autores. Funcionava! Não existiam ainda os celulares e a Internet era um luxo, para poucos. A editora tinha na loja uma linha de telefone LP, extensão do telefone alugado de um vizinho. O correio e o boca a boca eram as únicas ferramentas disponíveis para divulgação e promoção de um evento literário e cultural. O público comparecia em peso e prestigiava os eventos. Quando saía uma pequena nota num jornal de grande circulação era a glória. A coluna mais lida na época era a do jornalista Henrique Novak, intitulada “Página do Livro”, no jornal Diário Popular. São dessa época as apostas editor versus autor, para quem acertasse a quantidade de livros vendidos na noite de autógrafos. Apostávamos – quase sempre – uma caixa de cerveja. Eu sempre ganhava! Usava uma matemática simples e infalível. O autor dizia: “Vou vender 200 exemplares”. Eu, então, jogava – sempre – na metade: “Você vai vender 100”. Ganhava quem acertasse o número por aproximação. Eu sempre levava vantagem porque de 150 exemplares para baixo o número era meu. Confesso: nunca faltou cerveja na geladeira da editora. Uma vez, apenas uma única vez, perdi a aposta. O autor jogou alto: “Vou vender 200 exemplares”. Apostei. Vou ganhar fácil, pensei. Quando recebi o livro pronto da gráfica – alguns dias antes do evento – quase morri do coração. Era um livro com 100 sonetos e cada soneto dedicado a duas pessoas distintas. Desconfiei. O autor retirou os convites impressos e, ali mesmo, na recepção da editora, começou o seu trabalho de endereçamento. Organizado e com caligrafia primorosa. Virava o convite impresso e no verso em branco copiava uma mensagem tirada de um caderno de anotações. Escrevia, algo assim: “Maria, você sabe que gosto muito do seu esposo. Tenho por ele carinho e respeito. Eu pretendia fazer-lhe uma surpresa, mas minha esposa aconselhou-me a não fazer isso. Seria deselegante. Resolvi, então, contar a surpresa somente para você. Fiz no livro uma homenagem especial ao seu marido. Uma surpresa!". A galeria naquela noite lotou de gente. As pessoas chegavam no caixa e pediam 5, 10 e 15 exemplares do livro. Lembro que um homem idoso pediu um pacote fechado com 25 exemplares. Disse em voz alta: “O meu filho está sendo homenageado no livro. Vou levar livros para toda a família!”. Naquela noite, o sonetista autografou mais de 300 exemplares. Matemática simples e infalível. Dedicou cada soneto para duas pessoas distintas. Aposta é aposta e eu perdi.

João Scortecci

 

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LIVRO EM SILÊNCIO E PONTUAL / JOÃO SCORTECCI

O convite foi impresso na Gráfica Scortecci. Dados: título do livro, nome do autor, data do lançamento, horário e local. Do lado esquerdo, a capa do livro e, embaixo da ilustração, os dados técnicos da obra: formato, assunto, número de páginas e ISBN. Convite padrão, nada diferente, apenas um detalhe estranho. No horário estava impresso: “19h30 – em ponto”. Quando vi o convite questionei: “Isso está certo?”. Responderam: “Exigência do autor”. Achei estranho, mesmo assim liberei o convite para impressão. O evento aconteceria no final do mês de maio, na cidade de Santo André/SP, no espaço de uma associação cultural mística. Não conhecia. Quando o autor veio retirar os convites, fez questão de me convidar para o lançamento e eu confirme presença: “Eu vou!”. Na época não existia ainda celular – e muito menos GPS. Usávamos com propriedade o Guia Quatro Rodas, peça obrigatória. Sai de Pinheiros às 17h, em ponto. Cheguei ao endereço 30 minutos antes do horário marcado. No local, apenas o autor. Cerimonioso, vestido com uma capa preta, anel e um bastão de madeira, mostrou-me o local do evento. Um salão. Chão de madeira, quadros de fotos de ilustres nas paredes, cortinas de veludo vermelhas, relógio de parede no canto e no centro, um candelabro girante no teto. Algumas lâmpadas estavam queimadas. O local parecia velho e sujo. No centro do salão, uma mesa retangular, com 24 cadeiras. À frente de cada cadeira, um exemplar da obra do autor, pratos de papelão, garfos e facas de plásticos. Nada mais. O autor mostrou o meu lugar e pediu, então, que eu sentasse. Sentei. Ele ocupou a cabeceira da mesa, no lado oposto à entrada e ficou em silêncio. Perguntei-lhe: “Você não vai vender o livro?”. “Não. Somos 24 pessoas”, explicou. Às 19h30, em ponto, as pessoas entraram na sala e tomaram os seus lugares. Tudo em silêncio. Nenhuma pessoa jovem. Apenas duas mulheres. Foram servidos sanduíche de pão com queijo e guaraná em copo de papel. As pessoas comeram o sanduíche, tomaram o guaraná e pontualmente, às 20h, se levantaram e foram embora, em silêncio. Um detalhe importante: os exemplares estavam autografados. Inclusive o meu. Permaneci sentado. O autor se levantou e me disse: “Boa noite!”. Foi o que fiz. Entrei no meu Uno Mille branco e voltei para a cidade de São Paulo. Foi assim – exatamente – como tudo aconteceu. O lançamento mais estranho e místico em 43 anos de editora.


João Scortecci

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MEDO, O MAIOR INIMIGO DO ESCRITOR / JOÃO SCORTECCI

São muitos os inimigos de um escritor, iniciante ou não! José Francisco – indicação de um amigo dono de uma pequena livraria – ligou-me e quis saber de pronto: “Escrevi um romance e quero publicá-lo: como funciona?”. “Parabéns! O livro está pronto?” Pergunta obrigatória. "Quase!”, respondeu-me. “Falta o quê?” José Francisco, então, soltou a língua e tentou resumir o enredo da sua ficção, sem sucesso. Foi repetitivo, confuso. Parecia ansioso e coberto de medo. “O livro é um espelho da minha vida, com ação, suspense e mistério. Dei uma floreada!”, explicou. “E quando você termina o livro?”, insisti. “Logo!” Muitos escritores ficam no “logo” e, infelizmente, morrem ali mesmo, antes do prelo. Não conseguem terminá-lo. As razões? São muitas. Medo de não agradar ao público leitor, de se expor além da conta, de ser julgado pelos amigos, de receber crítica cruel nas redes sociais, de virar motivo de piada na família e na profissão, de descobrir – da pior maneira possível – que não é criativo, sua história é comum e beira o ridículo. Não é fácil. Existe uma distância imaterial, entre o “quase” e o “pronto”. Medo é o estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo. Nos anos 1990 publiquei um livro de um empresário do interior de Minas Gerais. Poucos exemplares. Enviou-me passagem, providenciou hospedagem e eu fui ao lançamento. Evento lindo, num clube da cidade. O livro não foi vendido e foi autografado previamente para cada um dos amigos, personalidades e familiares da cidade. A festa terminou por volta da meia-noite. Fui para o hotel e caí na cama, morto de cansaço. O interfone do quarto 11 – não esqueço até hoje o número – tocou às quatro e pouco da manhã. Já estava acordado, pronto para voltar para São Paulo. Era o autor empresário e sua esposa. Que susto! Desci e os encontrei na recepção do hotel. Estava transtornado, fora de controle e chorava muito. “O que aconteceu?”, perguntei. “Precisamos recolher todos os livros! Eu me arrependi! O que os meus amigos vão pensar de mim. Estou arruinado!”, repetia, gritando copiosamente. Sentamo-nos no saguão do hotel e começamos a conversar sobre o livro. Era de reminiscências poéticas e bem escrito. Reli lá mesmo e lhe disse: “Não encontrei nada que o desabone”. O autor começou a passar mal, provavelmente à beira de um infarto. Sua esposa, então, sugeriu: “Vamos pegar o carro e recolher todos os livros”. No início, achei a ideia uma maluquice. Depois, com calma, concordei: “Cidade pequena, livros doados, seguindo uma lista prévia de pessoas todas conhecidas... Vamos!”. Fomos primeiro à casa do prefeito e depois às dos vereadores e políticos da cidade, do padre, do delegado e dos fazendeiros da região. Todos devolveram o exemplar, sem drama ou perguntas maiores. “Quem ficou faltando da lista?”, quis saber. Alguém disse: “Apenas o Luiz Antônio, amigo de infância e sócio”. Fácil, pensei. Luiz Antônio não abriu a porta e respondeu pela janela entreaberta: “Não devolvo! Nunca! É meu”. O autor desmaiou ali mesmo e foi conduzido desacordado para a Santa Casa da cidade. E a história ficou por isso mesmo. Vez por outra busco na Internet o livro pelo título e pelo nome do autor. Nada! Nunca mais nos falamos. O poeta empresário mineiro faleceu em 2022, aos 82 anos de idade. Sempre que pergunto a um escritor se o seu livro está "pronto", lembro dessa história. Medo é medo: estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo de ter um amigo FDP. De poesia também se pode morrer.  

João Scortecci       


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DAS ESCOLHAS DE UM LIVRO / JOÃO SCORTECCI

O livro salva. Cura neuroses e alimenta manias. É o que dizem. Acredito nisso. Li na infância as obras de Monteiro Lobato, Júlio Verne e José de Alencar e, na adolescência, os livros “Encontro marcado”, de Fernando Sabino, “O diário de Dany”, de Michel Quoist e “O profeta”, do libanês Khalil Gibran. Pouco mais de 20 títulos. Isso antes de deixar o Ceará e vir morar na cidade de São Paulo, no ano de 1972. Tinha 16 anos de idade. Tornei-me sócio do Círculo do Livro e cliente da Livraria Brasiliense da Rua Barão de Itapetininga e do Largo do Arouche. Não parei mais. Tornei-me, então, um leitor. Na época, autores estrangeiros – na maioria de clássicos – eram raridades nas livrarias, em comparação com os milhares de títulos de hoje. Gostava de um autor e pronto: lia tudo dele. Aprendi, depois – isso levou algum tempo – a caçar novidades nas livrarias do centro da cidade. Tinha tempo. Foi uma época interessante. Fazia assim: olhava a capa do livro, depois o assunto, a sinopse e, por fim, a biografia do autor. Na edição de 2025 do projeto Circule um Livro, realizada na Avenida Paulista, no vão do Prédio da FIESP, na cidade de São Paulo, pude observar o modo operante de três leitores, que colocaram a barriga num balcão de 5 metros e lá ficaram por mais de 30 minutos. O primeiro, um homem com pouco mais de 30 anos de idade, escolheu livros assim, pela ordem: capa, título, assunto e a sinopse no verso de capa. Não abriu os livros, não folheou, não leu as orelhas, não quis saber o nome da editora e muito menos o da gráfica em que foi impresso. Consultou exemplares de seis títulos. Levou um deles. Anotei. Em seguida apareceu outro homem, pouco mais de 50 anos de idade. Selecionou três títulos, dois deles no formato de bolso. Conferiu capa e título. Depois leu as orelhas e o cólofon. Interessante: os três não tinham ilustrações de capa. Levou um livro de bolso. Por fim, uma moça, jovem, selecionou cinco livros diferentes. Todos com capas coloridas e títulos de assuntos diversos. Não abriu nenhum deles. Cheirou. Colocou-os um ao lado do outro e fotografou com o celular. Depois foi embora de mãos vazias. Conclusão sobre as escolhas pessoais de um livro: nenhuma! O livro cura neuroses, alimenta manias e salva também. Tudo junto no melhor do seu tempo.

João Scortecci        

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PARA VOCÊ, LEITOR DE LIVROS / JOÃO SCORTECCI

Legal saber que você é um leitor de livros! Reconhecemos a importância do hábito da leitura e dos benefícios que ela proporciona: conhecimento, expansão do vocabulário, melhora na escrita, aumento da concentração, fortalecimento do pensamento crítico, desenvolvimento da criatividade, prazer estético, entre tantos outros que só os que leem experimentam.

Esta pequena nota se destina a você, leitor consciente da importância de somente comprar livros comercializados de forma legal e confiável, em livrarias físicas, lojas virtuais, distribuidoras, casas editoriais, feiras, bienais e eventos literários e culturais. O produto livro e outros bens culturais – como músicas, filmes, pinturas, fotos – quando comercializados em endereços piratas e ilegais – físicos ou virtuais – causam enormes prejuízos ao setor editorial e livreiro e aos autores. A Internet, infelizmente, através de plataformas irresponsáveis – algumas, cúmplices – tem sido canal fácil para fraudes, golpes e todo tipo de crime. No ano de 2024, o prejuízo para autores e editoras chegou a R$ 1,4 bilhão, o equivalente a cerca de 50% do rendimento anual das vendas do setor.

No meio digital, hackers são responsáveis por quebrar travas de acesso a e-books e obter cópias indevidas e ilegais. Algumas plataformas criminosas trabalham com acervos inteiros em PDF e oferecem ainda serviços “sob demanda”, em que os usuários pedem títulos específicos e recebem os arquivos diretamente em sua caixa de e-mail. Tem sido comum também a criação de grupos de leitura livre ou clube do livro e da leitura, em que usuários trocam arquivos digitais, recomendam pastas compartilhadas e ensinam como acessar bibliotecas digitais ilegais. Isso é crime! Editores e autores não são contra iniciativas que estimulem o compartilhamento de leitura e livros; muito pelo contrário, pois apoiam e fornecem livros com descontos especiais para os membros desses grupos. 

Dados da ABDR – Associação Brasileira de Defesa dos Direitos Autorais e Reprográficos e de entidades do livro estimam que, dos R$ 2,52 bilhões faturados em 2023, pelo setor editorial e livreiro, deixou-se de faturar cerca de R$ 1,2 bilhão, valor “perdido” para a pirataria. Em 2024, o prejuízo chegou a R$ 1,4 bilhão, o que corresponde a 50% da quantia arrecadada no ano, correspondendo a cerca de 154 mil obras: 56%, de literatura geral; 39%, relacionadas à área do Direito; 4%, de livros religiosos; e 1% de livros com temática infantil ou didática.

Temos que combater a pirataria e a venda ilegal de livros. A Lei de Direitos Autorais no Brasil garante ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor – de forma legal, conforme contrato com editora, quando houver – de sua obra, incluindo livros, em qualquer formato, físico ou digital. Isso significa que configura violação legal qualquer reprodução, distribuição ou disponibilização de uma obra sem a autorização do autor ou da editora e sem cumprimento de regras contratuais.

Mesmo com o intenso trabalho desenvolvido pela ABDR e entidades do setor, precisamos do apoio e do trabalho voluntário e coletivo de conscientização da prática ilegal que assola o País. Denuncie. Não compre livro pirata! Não faça nem compartilhe PDF pirata. Colabore, orientando e explicando em escolas, universidades, clubes de leitura e grupos de WhatsApp sobre a importância de combater a pirataria de livros e de conteúdo editorial.

Esta nota é para você, leitor legal, que gosta de livros, curte e incentiva o hábito de leitura. Compartilhe essa ideia. O livro agradece.

João Scortecci
Escritor, editor, gráfico e livreiro.
scortecci@gmail.com

 

 

 

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MASSAUD MOISÉS – “TODO LIVRO TEM SUA HISTÓRIA” / MARIA MORTATTI

Massaud Moisés (09.04.1928-11.04.2018), nascido na capital paulista, foi professor de literatura brasileira em colégios e faculdades paulistanas, até seu ingresso, em 1963, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – Universidade de São Paulo, como assistente da Cadeira de Literatura Portuguesa, então ocupada pelo professor Antonio Soares Amora, que sucedera Fidelino de Figueiredo, professor português que introduziu os estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras. Em 1954, Massaud Moisés assumiu essa Cadeira e exerceu outras atividades na USP até se aposentar em 1995. No início dos anos 1960, por designação do Governador Carvalho Pinto em seu projeto de expansão do ensino superior paulista, exerceu a função de diretor da Faculdade de Filosofia de Marília e da Faculdade de Filosofia de Assis, ambas incorporadas à Unesp – Universidade Estadual Paulista, criada em 1976. Foi, ainda, professor visitante em universidades estadunidenses e esteve em visita de estudos na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, dirigiu o Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São Paulo, ministrou conferências em universidades brasileiras, norte-americanas e europeias. Recebeu do governo português o título de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e, no ano 2000, assumiu a cadeira de número 17 na Academia Paulista de Letras.

Durante meio século, entre final dos anos 1950 e os anos 2000, escreveu e publicou livros – alguns com dezenas de reedições ou edições revistas e aumentadas – sobre literatura portuguesa e brasileira, crítica e análise literárias, que se tornaram referências para estudiosos, professores e estudantes. Entre eles, estão: Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge; A literatura portuguesa; A literatura portuguesa através dos textos; O conto português; Pequeno dicionário de literatura portuguesa - Crítico, biográfico e bibliográfico; Pequeno dicionário de literatura brasileira (com José Paulo Paes); História da literatura brasileira (5 vols.); A criação literária. Poesia; A Criação Literária. Prosa (2 vols.); Dicionário de termos literários. Dirigiu também a Colecção de Textos Básicos de Cultura, da Cultrix. 

Sua obra me foi apresentada no início dos anos 1970 pelos professores Jorge Cury, de Literatura Portuguesa, e Dante Tringali, de Teoria Literária, no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, na época instituto isolado de ensino superior, posteriormente também incorporado à Unesp. Com admiração pelo contemporâneo e colega, esses dois professores indicavam e recomendavam a obra de Massaud Moisés como fonte de consulta para nossos estudos universitários e para nossa futura atuação profissional como professores de língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa no então ensino de 1º. e 2º. graus. Quando perguntávamos sobre a pronúncia correta do nome do autor, Cury respondia em seu característico tom brincalhão: “Alguns dizem ‘Massô’, mas está errado. Ele não é francês, é filho de libanês. A pronúncia correta é ‘Massaúde’. 

Segui as recomendações. Os livros de Massaud Moisés estavam entre os que emprestei da biblioteca da faculdade ou comprei na livraria da cidade, para estudar durante o curso e depois para o concurso de ingresso no magistério público. Na prova de redação, cujo tema era a comparação entre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, fiz uma quase paráfrase da análise que lembrava ter lido em A criação literária (Melhoramentos; Edusp, 7ª. ed.,1975). Outros, como Guia prático de análise literária (Cultrix,1974) e Dicionário de termos literários (Cultrix, 1982), também passaram a fazer parte da minha biblioteca. Nas páginas amareladas estão as marcas do intenso manuseio e anotações para preparação de aulas, análises literárias e pesquisas sobre termos, autores e obras. As lembranças desses livros, recuperei-as para registrar neste texto, quando, dias atrás, ao pegar do chão a capa despregada de A criação literária e devolvê-la ao exemplar na estante, abri-o e encontrei sublinhada a primeira frase do prefácio do autor: “Todo livro tem sua história”. Dei-me conta, então, de que, embora não o tenha conhecido Massaud Moisés pessoalmente, meio século se passou desde o início de minha história de leitora de sua obra, quando eu era ainda estudante de Letras em Araraquara, e há mais de 30 anos ingressei como docente e pesquisadora na universidade e na faculdade de que ele foi diretor, contribuindo para a expansão do ensino superior no estado de São Paulo e, de modo duradouro, para a formação de milhares de estudantes, professores e pesquisadores.

Maria Mortatti 


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O IMPRESSOR LÉON SCOTT E A IMAGEM DO SOM / JOÃO SCORTECCI

O tipógrafo, bibliotecário e livreiro francês Léon Scott (Édouard-Léon Scott de Martinville, 1817-1879) foi o inventor do fonoautógrafo. Em 25 de março de 1857, obteve a patente francesa nº 17 897 / 31 470; três anos depois, em 9 de abril de 1860, fez com o seu dispositivo a mais antiga gravação existente da voz humana. Léon Scott estava interessado em registrar o som da fala humana de uma forma semelhante à alcançada pela então nova tecnologia de fotografia para luz e imagem. Esperava com o seu invento criar uma forma de registrar a conversa inteira, sem omissões, à semelhança de técnicas de escrita abreviada, como a estenografia, a taquigrafia, a logografia, a pasistenografia, que utilizam caracteres especiais, permitindo que se anotem as palavras com a mesma rapidez com que são pronunciadas. Concebeu a gravação sonora pela primeira vez, quando, debruçado em um texto sobre fisiologia humana, imaginou uma nova possibilidade incrível: se a fotografia podia capturar imagens fugazes com lentes modeladas no olho, uma réplica do ouvido não poderia, de forma semelhante, capturar palavras faladas? Ele a chamou de "a ideia imprudente de fotografar a palavra". Diferentemente do fonógrafo, invenção de Thomas Alva Edison (1847-1931), o aparelho de Léon Scott criava apenas uma imagem do som. A partir de 1853, dedicou-se a desenvolver – por meio mecânico – uma técnica para transcrever sons vocais. Ao revisar gravuras de um livro de Física, deparou com desenhos de anatomia auditiva. Tentou imitar o funcionamento com um dispositivo mecânico, substituindo o tímpano por uma membrana elástica e o ossículo, por uma série de alavancas, que moviam uma caneta que ele propôs prensar em uma superfície de papel, madeira ou vidro coberta de negro de fumo, feito de carbono, usado em muitos produtos, como tintas, borrachas, plásticos e adesivos. Para coletar o som, o fonautógrafo usava uma buzina presa a um diafragma que fazia vibrar uma cerda rígida, inscrevendo uma imagem em um cilindro revestido de negro de fumo e de manivela à mão. Ele construiu vários dispositivos com a ajuda do fabricante alemão de instrumentos acústicos Karl Rudolph Koenig (1832-1901). A intenção de Léon Scott era possibilitar que as ondas do dispositivo fossem lidas por humanos como se lessem um texto, o que se mostrou inviável. Mesmo não tendo sucesso, o trabalho de Léon Scott serviu de estudo para o desenvolvimento futuro da comunicação gráfica – transmissão de mensagens por meio de elementos gráficos, como imagens, símbolos, cores, tipografia e formas. Léon Scott, no entanto, não foi capaz de lucrar com a invenção do fonoautógrafo. Viveu até os 62 anos e passou o resto de sua vida trabalhando como livreiro, lidando com gravuras e fotografias, na Rue Vivienne, 9, em Paris.

João Scortecci



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LEON FEFFER, O HOMEM QUE CALCULAVA PAPEL PARA LIVROS / JOÃO SCORTECCI

 Conheci o ucraniano Leon Feffer (1902-1999), fundador do Grupo Suzano Papéis, no ano de 1996, quando da edição e impressão, para a associação “A Hebraica”, da antologia do I Concurso Literário Consulesa Antonietta Feffer, em homenagem a sua esposa, então recentemente falecida. Leon Feffer dedicou-se ao trabalho comunitário em instituições como a Casa de Cultura de Israel, a Federação Israelita do Estado de São Paulo, o Hospital Albert Einstein e o Colégio Renascença. Foi um dos fundadores de “A Hebraica” e cônsul de Israel no Brasil. Empresário respeitadíssimo e bom de conta “de cabeça”. Para muitos, um adorado “pão-duro”. Veio para o Brasil em 1920, com 18 anos de idade, com a mãe, um irmão e duas irmãs. Seu pai já estava no País desde 1910. Durante os anos de 1920 e 1930, fundou, na capital paulista, a empresa Leon Feffer, voltada ao comércio de papéis, uma tipografia e uma pequena fábrica de envelopes. Morava na Rua Bresser, no bairro do Brás, e usava o porão da casa para armazenar papéis. Para visitar os clientes, usava o bonde. Em 1941, inaugurou sua primeira fábrica de papel, no bairro do Ipiranga, também na cidade de São Paulo. Em cinco décadas construiu um império. Foi Leon Feffer quem me ensinou a calcular a quantidade de papel para impressão de livros. Tudo aconteceu mais ou menos assim: diagramamos a antologia, definimos a tiragem e solicitamos por fax, para a Suzano Papéis  patrocinadora da obra – , oito resmas, com 500 folhas cada, no formato 87 x 114 cm, para impressão. Trinta minutos depois, não mais do que isso, o telefone tocou. Atendi, de pronto. Era o Sr. Leon Feffer. O coração disparou. “Em que posso lhe atender, Sr. Leon?” “Meu jovem, sei que estou conversando com um editor respeitado, inteligente, de prestígio no mercado de livros.” “Obrigado”, respondi. “Posso lhe fazer uma pergunta?” Gelei. “Claro, Sr. Leon. Faça, por favor.” “Onde o jovem editor aprendeu a calcular a quantidade de papel para a impressão de um livro?” Silêncio. Refiz os cálculos - na velocidade da luz - conferi o pedido enviado por fax e respondi. “Sr. Leon, o meu cálculo está correto.” “Não está. Não está. Não está!” Repetiu três vezes. “Onde eu errei, Sr. Leon?” Ele então me ordenou, de pronto: “Pegue papel e lápis e vamos calcular juntos”. E assim foi. Na ponta do lápis, chegamos a sete resmas e mais 150 folhas. “Certo?” “Certo”, respondi. Ele então me perguntou: “Qual então a razão do seu pedido de oito resmas com 500 folhas cada?” “Sr. Leon, coloquei 10% de quebra e arredondei o número de resmas. É o padrão.” Sr. Leon explodiu: “Padrão? Isso é um absurdo! Desperdício de papel! 10% de sobra? Sua máquina gráfica deve estar desregulada, deve estar precisando de uma boa manutenção. Faça isso! Outra coisa: você não sabe que fabricamos meia resma, com 250 folhas?” “Sim. Sei”, respondi. “Sete resmas com 500 folhas cada e mais uma meia resma, com 250 folhas, são mais do que suficientes." E assim foi feito. No fígado. Devo ter publicado e impresso duas ou três antologias do Concurso Literário Consulesa Antonietta Feffer. Com o passar do tempo, o Sr. Leon, madrugador que era, passou a telefonar pela manhã, para papear e jogar conversa fora, uma ou duas vezes por semana. Ficamos amigos ou quase isso. Ele falava e eu respondia. Em 1998, o Sr. Leon adoeceu e veio a falecer no dia 7 de fevereiro de 1999. O queridíssimo Sr. Leon Feffer foi o meu Malba Tahan, o homem que calculava papel para livros.

João Scortecci


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JACK LONDON, O BRASILEIRO / JOÃO SCORTECCI

Não me lembro do ano exato. Talvez 1996. Alguém da Livraria Cultura me ligou e disse: “O Jack London da Booknet vai falar sobre e-commerce de livros”. Algo assim. “Jack London: o autor do livro ‘O Lobo do Mar’?  Impossível! O moço morreu em 1916!” “Não! O Jack London brasileiro. O criador da Booknet – depois Submarino, 1999 –, considerada a primeira loja online de livros do Brasil.” Então fui. Auditório lotado, muita gente importante do negócio do livro. Em maio de 1996, na Folha Ilustrada, a jornalista Cristina Grillo, escreveu: “A Booknet põe 12 mil títulos à venda na rede, expectativa é que o acervo chegue a 40 mil em 90 dias. Por meio da Internet, será possível comprar e receber em casa livros de 35 editoras brasileiras e de outras nove livrarias virtuais nos Estados Unidos e na Europa.”. Perguntaram: “Você é parente do escritor norte-americano?”. “Não. Foi um gracejo da minha mãe que tinha ‘London’ no sobrenome e gostava muito do autor”. Risos. Declarou, então: “Foi após uma visita à Amazon, em 1994, que decidi criar a Booknet”. “Amazon?” “Sim. Empresa de tecnologia norte-americana de e-commerce, computação em nuvem, streaming e inteligência artificial, fundada por Jeff Bezos, em 5 de julho de 1994.” O José Henrique Grossi, amigo e na época vice-presidente da CBL, fuxicou no pé do meu ouvido: “Logo a Amazon vai vir com tudo e engolir deus e o mundo!” Profetizou. E, então, soltou sua frase predileta, conhecida por todos: “Merdas cagadas não voltam mais ao cu!”. Risos. Pela Scortecci Editora, trabalhei alguns anos com o Submarino – depois Lojas Americanas – e a experiência não foi boa. Desisti. A Submarino fechou em 2024. Foi quando, ferozmente, a Amazon engoliu de vez o mercado de livros na Internet, hoje com mais de 50% do varejo. Na matéria da jornalista Cristina Grillo de 1996, detalhes de oportunidade: “Os preços serão os mesmos das livrarias. London garante que, no Rio e em São Paulo, os pedidos serão entregues no máximo três dias depois de encomendados. Outra vantagem que a Booknet irá oferecer aos clientes é a possibilidade de usar o cartão de crédito com segurança nas compras. De acordo com London, existem no Brasil 250 mil computadores ligados à Internet – cada um é usado em média por quatro pessoas.”. Lendo sobre a vida de Jack London na Internet, encontrei sua declaração numa entrevista: “Aos 20 anos de idade, tinha certeza que minha vida seria uma mistura de livros, tecnologia e cinema. E me dediquei à vida toda a isso!”. Acertou em quase tudo. Acontece. Menos que os preços na Amazon seriam os mesmos praticados pelas livrarias. Grossi sabe das coisas! Jack London faleceu em agosto de 2016, aos 67 anos de idade, 100 anos depois do escritor norte-americano, autor do livro “O Lobo do Mar”. 

João Scortecci


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AUGUSTO DE CAMPOS E A INFOXICAÇÃO EM TEMPOS DE IA / JOÃO SCORTECCI

Um dia de cada vez. Lendo sobre o uso e aplicação de ferramentas de Inteligência Artificial na literatura, encontrei algo do outro mundo – literalmente. Já chegamos lá? Talvez. Estava trabalhando numa apresentação para a Abigraf – Associação Brasileira da Indústria Gráfica, intitulada “O produto livro – Das responsabilidades da Indústria Gráfica”, quando dei de cara com um artigo do outro mundo, em que se dizia que um centro espírita estava usando IA, para se comunicar com pessoas que já haviam morrido. Conversas do além, algo assim. Gosto do assunto – muito – o que me obrigou a ler o artigo inteiro. Faz parte. Aqui com as almas penadas da literatura: já imaginaram incorporar uma identidade IA? Receber um mix de escritores malditos, concretistas, modernistas e parnasianos? Doideira! Verdadeira infoxicação literária. Descobri, ainda, que a palavra "infoxicação” é a junção das palavras "informação" e "intoxicação", conceito concebido pelo físico espanhol Alfons Cornellade, para designar a situação em que uma pessoa tenta receber e analisar um número de informações muito maior do que seu organismo é capaz de processar. Dizem – não sei se é verdade – que um ser humano tem a capacidade máxima de ler 350 páginas por dia, caso faça apenas isso o dia inteiro! Desconfio. Já o volume de informações que recebemos diariamente pela Internet é de cerca de 7.355 gigas, o equivalente a bilhões de livros! Lendo sobre os 94 anos do incrível escritor Augusto de Campos e o lançamento do seu livro “Pós Poemas”, algo me chamou atenção – além da conta – no belíssimo texto escrito pelo jornalista Claudio Leal. No olho do texto, chamado de resumo: “Augusto de Campos, principal escritor brasileiro vivo!”. Algo assim. Augusto merece todos os elogios e imortalidade. O que achei estranho – Drummond já havia alertado sobre o perigo – foi a afirmação de se tratar do principal escritor brasileiro vivo. Não precisava. Poderia ser algo assim: “Um dos principais...” Todos os dias perdemos escritores incríveis, maravilhosos e imortais. Conhecidos e desconhecidos. Precisava dizer isso? Talvez não. E mais: o assunto do centro espírita comunicando-se por IA com escritores mortos promete briga, confusão e inveja. Ou não? O papel aceita tudo! O inferno e o céu também. No mais, vou comprar o livro do poeta Augusto de Campos. E, se possível, com autógrafo.   

João Scortecci  








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POETAS BISSEXTOS – “ESTADO DE GRAÇA DE RARO EM RARO” / MARIA MORTATTI

“Bissexto” (do latim bis sextum) é a denominação do ano civil com um dia extra, 29 de fevereiro, acrescentado de quatro em quatro anos ao calendário gregoriano. Foi a solução matemática criada no século 45 a.C. pelo astrônomo Sosígenes para compensar as 6 horas que sobram a cada ano de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, tempo exato do movimento de translação da Terra em torno do Sol. 

Em 1942, a palavra foi trasladada pelo poeta Vinícius de Moraes (19.10.1913 – 09.07.1980) em artigo sobre poesia brasileira, na revista argentina Sur, de 1942, para se referir em sentido figurado aos poetas “que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embargo os coloca ao lado dos mais citados”. 

Com base nessa translação semântica, o poeta Manuel Bandeira (09.04.1886-13.10.1968) imortalizou a expressão “poetas bissextos” em sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Zélio Valverde, 1946). Assim explica no prefácio: 

Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo dicionário, bissexto só há ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil [...] bissexto é todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro.”; “nego que a circunstância de não publicar os poemas em livro ou em revistas e jornais seja característica essencial do bissexto. O essencial é a produção rara.”; “O bissexto, na sua relativa impotência criadora, tem, às vezes, achados que enchem de inveja todo o ‘genus irritabile’. 

O organizador reuniu mais de uma centena de poemas escritos por pessoas que na época exerciam diferentes atividades – escritores, advogados, engenheiros, médicos, sociólogos, professores, jornalistas, padres, pintores. Entre eles estavam: Afonso Arinos de Mello Franco, Aníbal Machado, Dante Milano, Euclides da Cunha, Joaquim Cardozo, José Auto, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, Ismael Nery, Joanita Blank, Leopoldo Brígido, Lucila Godoi, Lucilo Bueno, Luís Aranha, Maria Clara Machado, Maria Helena, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas, Pedro Nava, Raimundo Magalhães Júnior, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga, Sérgio Buarque de Hollanda.

Nem todos eram “bissextos autênticos”, como o organizador adverte, mas optou por incluí-los para não perder poemas de qualidade. Nem todos eram ou se tornaram contumazes – epíteto sugerido por Paulo Dantas e aceito por Bandeira, como antônimo de bissextos. Vinte e quatro anos depois, na 2ª. edição da Antologia... (Organização Simões, 1964), Bandeira incluiu outros poetas que, nas décadas seguintes, passaram a publicar de modo contumaz, como H. Dobal e Odylo Costa, filho. Provavelmente pelo mesmo motivo, outros, como Joaquim Cardozo e Paulo Mendes Campos, foram excluídos dessa edição. Alguns, ainda, tornaram-se “imortais” quando posteriormente eleitos, pelo conjunto da obra em outros campos e gêneros literários, como membros da Academia Brasileira Letras. 

Manuel Bandeira – poeta contumaz – tornou-se "imortal" em 1940. A Antologia de poetas bissextos contemporâneos, publicada naquele ano, tornou-se um clássico – teve outras reedições, inspirou outras antologias e provavelmente outros poetas contumazes, ou não. E sua solução poética para designar aquele "em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil" foi consolidada em dicionário: “quem exerce pouco determinada atividade (ex.: poeta bissexto)”. 

Maria Mortatti 

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CENA BRASILEIRA NA FOTOPTICA-BRASILIENSE / MARIA MORTATTI

A revista Novidades Fotoptica lançada em 1953 e publicada até 1987, com alterações na periodicidade, formato e conteúdo, foi uma das iniciativas de Thomaz Farkas (17.10.1924-25.03.2011), fotógrafo, cineasta e empresário de origem húngara radicado na cidade de São Paulo. Reconhecido como um dos pioneiros da moderna fotografia e do filme documentário no Brasil, ao lado de grandes cineastas do Foto Cine Clube Bandeirantes, Farkas assumiu, após a morte do pai em 1960, a direção da Fotoptica, primeira empresa especializada em equipamentos fotográficos no País. Com formato de jornal, Novidades Fotoptica publicava anúncios de produtos do ramo, divulgação de livros e concursos, artigos sobre técnica fotográfica e audiovisual, exposições, entre outros. A partir de 1970, com formato de revista, passou a publicar também textos críticos e ensaios fotográficos.

Não menos importante na cena cultural e literária brasileira foi a Editora Brasiliense, fundada em 1943 na cidade de São Paulo, por reconhecidos intelectuais e escritores brasileiros: Caio Prado Júnior, José Bento Monteiro Lobato, Arthur Neves, Leandro Dupré a Maria José Dupré, cuja casa foi utilizada como primeira sede da editora. A Brasiliense publicou obras fundamentais da literatura e cultura brasileira e internacional, caracterizando-se pelo prestígio de seus autores e como foco de resistência ao Estado Novo e à ditadura militar pós-1964. A partir de 1975, sob a direção de Caio Graco Prado (1931-1992), filho de Caio Prado Júnior, foram lançadas coleções inéditas, como a Primeiros Passos, que tiveram sucesso editorial duradouro, com vendas de milhares de exemplares nos anos 1980. A editora também lançou a Revista Brasiliense, com circulação entre 1955 e 1964, e Leia livros, dirigida por Caio Graco Prado e Cláudio Abramo, com circulação entre 1978 e 1984. A Livraria Brasiliense, na Rua Itapetininga, no centro da cidade de São Paulo, tornou-se referência para encontros de intelectuais, escritores, manifestações, debates e exposições.

No final do ano de 1979, Fotoptica e Editora Brasiliense, reunindo expertises, promoveram o Concurso Cena Brasileira, com ensaios de textos e fotos. Os selecionados foram publicados na revista Novidades Fotoptica, n. 83, de 1978. No editorial consta comentário sobre os ensaios, que revelam a visão de uma parcela significativa da população, na moderna cena fotográfica e literária e cultural e no contexto político da época: “Não importa onde esteja a cena brasileira [...] o que interessa é que muitos jovens brasileiros querem encontrar os vestígios de uma realidade sem os retoques do estúdio”. Como “nos tempos do movimento universitário, a fotografia documento sem ranço de qualquer academicismo sociologismo ou antropologia [...] A unidade de palavra e de imagem muito pouco estimulada na maior parte de nossas situações ganha em vigor e expressão.”

Além da publicação na revista Novidades Fotoptica, os premiados no concurso tiveram a oportunidade de expor suas fotos e poemas em varais estendidos na calçada em frente à Livraria Brasiliense. Lá estava meu poema “Rapsódia brasileira: queimação da cana” acompanhando cinco fotos de Karlos Magnani. Aquela cena da estreia pública da jovem poeta numa paulistana manhã de sábado ficou documentada nas páginas da revista, guardada no acervo pessoal e preservada na memória desta brasileira. 

Maria Mortatti


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MULHERES IMPRESSORAS, ELIZABETH MALLET E OS ÚLTIMOS DISCURSOS MORIBUNDOS / JOÃO SCORTECCI

A biografia da gráfica e livreira inglesa Elizabeth Mallet (1672-1706) é incrível. Pesquisando sobre mulheres impressoras e editoras na Inglaterra, soube do The Daily Courant, primeiro jornal diário inglês, fundado em 11 de março de 1702. O diário consistia em uma única página, com anúncios no verso. No primeiro número do jornal, Elizabeth Mallet declarou que pretendia publicar apenas notícias e não acrescentaria nenhum comentário próprio, supondo que seus leitores tivessem "bom senso” e “discernimento” para julgar e analisar os fatos. Anúncios somente no verso do jornal, prova do que dizia de não permitir interferências ou influências de anunciantes, políticos e poderosos. A ideia de separar as notícias dos anúncios foi tentada – ao longo do tempo –, por diversos jornais e revistas do mundo todo, sem sucesso. Os anunciantes simplesmente não aceitam! Exigem que seus anúncios ocupem espaços estratégicos e pagam por isso, seguindo os critérios de localização do anúncio no impresso, seu tamanho e relação proativa com a manchete do dia. Depois de menos de dois meses, Elizabeth Mallet vendeu o The Daily Courant para Samuel Buckley. O diário durou até 1735, quando foi fundido com o Daily Gazetteer. Elizabeth Mallet e seu marido, David Mallet, durante as décadas de 1670 e 1680, dominaram o comércio de discursos impressos proferidos por prisioneiros condenados antes da execução em Tyburn, feudo no condado de Middlesex, sudeste da Inglaterra. Os "últimos discursos moribundos” são as últimas palavras de uma pessoa antes da morte ou quando a morte se aproxima. Os registros são mais comuns do que parecem, principalmente na Europa e nos Estados Unidos da América. É comum, também, que condenados à pena de morte, no dia da sua execução, tenham direito a escolher o que desejam comer na sua última refeição. “O último pedido!” David, o marido de Elizabeth Mallet, morreu em 1683. No seu lugar, na gerência da gráfica e dos negócios, assumiu David, seu filho. O moço não tinha jeito para o negócio e o empreendimento acabou falindo.

Antes da invenção da imprensa, os livros eram feitos de páginas escritas por escribas, eram caros e luxuosos, privilégio apenas para religiosos e homens da classe alta. Um livro podia levar até dois anos para ser concluído. O alemão Johannes Gutenberg, por volta de 1450, inventou a prensa de tipos móveis, o que possibilitou a produção em massa de livros. A impressão naquela época era trabalho pesado, árduo e exigia força física. Mesmo assim, muitas mulheres conseguiam fazer todos os serviços necessários para produzir um livro. Aprendiam o ofício com seus pais ou maridos. De 1500 até 1600, as mulheres representavam 10% da força de trabalho de impressão, em Londres. Antes da abolição do sistema de guildas – associações de artesãos e comerciantes que controlavam e supervisionavam a prática de um ofício ou comércio em determinado território ou região –, a única maneira de uma mulher se tornar empresária das artes gráficas era herdar um negócio de seu falecido marido, já que o privilégio da guilda – patente e autorização – era concedido, por costume, à viúva de um membro da associação. A Inglaterra seguiu o costume europeu de permitir que as viúvas herdassem o privilégio da guilda, até que se casassem novamente. Sabe-se que 34 viúvas eram ativas como impressoras e editoras de livros em Londres, entre 1641 e 1660. A lista de viúvas empresárias gráficas de sucesso é grande: Elizabeth Mallet, Elisabeth Pickering, Mary Clark, Hannah Allen, Elinor James, Ann Lea, Anne Dodd Ann Ward, Martha Gurney, Elizabeth Jackson, Eleanor Lay e Sarah Roddam. Na Inglaterra, a maioria das gráficas herdadas por mulheres, viúvas de impressores gráficos, progrediram e duraram por décadas. Algumas estão, até hoje, em pleno funcionamento, imprimindo jornais, revistas e livros.

João Scortecci

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“LE CARNET DES NUITS”: AUTORRETRATO DE MARIE LAURENCIN COMO POETA / MARIA MORTATTI

Marie Laurencin (Paris, 31.10.1883 – 08.06.1956) ficou mais conhecida como “musa de Apollinaire”, poeta com quem manteve turbulento relacionamento amoroso por seis anos, e “la fauvette”, dada sua proximidade com círculos parisienses de artistas da vanguarda da arte moderna do início do século XX. Mas foi em prosa e verso que a conheci, quando ganhei de presente a edição francesa de 2022 de seu livro Le carnet des nuits (Diário das noites). Ao folhear o exemplar, saltou-me aos olhos o prenúncio da autora em um dos textos, instigando-me a adentrar na história dessa mulher, por meio de biografias e estudos recentes sobre sua obra, e conhecer as aventuras do talento da pintora, gravurista, ilustradora, cenógrafa, que registrou em verso e prosa, não apenas um autorretrato, mas também um testemunho de seu tempo.   

Le carnet des nuits foi publicado na Bélgica, em 1942, durante a ocupação nazista na França. Em 1956, ano da morte de Laurencin, foi publicada em Genebra a segunda edição. Em 2022, foi publicada na França, pela editora La Coopérative, “edição completa com notas e posfácios dos editores”. O livro é ilustrado com três gravuras e 37 textos curtos, 12 em prosa e 25 em verso, em estilo “surrealista” – conforme alguns críticos. É acompanhado de um anexo, com três poemas de Louise Lalanne, pseudônimo de Apollinaire, publicados na revista francesa Les Magres, em 1909. Dois desses poemas são de autoria de Laurencin, que os cedeu ao poeta para que ele os publicasse com seu pseudônimo. O livro é composto de poemas, diários íntimos e lembranças. Além de evocar e testemunhar o período em que ela participou da vanguarda modernista francesa, “traça a evolução interior dessa mulher extraordinária desde a infância, com uma fantasia e lucidez que provocam a imaginação [...] e  completam e enriquecem o conhecimento de sua obra pictórica: pode-se defini-lo como um autorretrato  da artista como poeta”. 

Sem vocação para o magistério, como desejava sua mãe, Laurencin trocou as aulas do Liceu Lamartine por aula em ateliê de pintura em porcelana e depois na Academia Humbert, onde conheceu, entre outros artistas, o pintor Georges Braque, fundador do cubismo, que a apresentou ao pintor Pablo Picasso. Por meio deles, em 1907 conheceu o poeta Guillaume Apollinaire (26.08.1880 – 09.11.1918), que a ela dedicou poemas como “Marie”, “Crépuscule”, “Le pont Mirabeau” e “Zone”, em seu livro Alcools (1913). Embora não tenha se filiado ao fauvismo e ao cubismo, principais movimentos artísticos de vanguarda modernista da época, mantendo estilo estético singular na representação da identidade feminina, com formas suaves e curvilíneas, Laurencin participou de círculos parisienses ao lado de artistas e escritores famosos, como Max Jacobs, André Derain, Henri Matisse. Após se separar de Apollinaire, ela se casou com o pintor alemão Otto von Wätjen, exilaram-se na Espanha durante a Primeira Guerra Mundial, retornaram a Paris, divorciaram-se. Laurencin conheceu outros artistas e escritores, teve relacionamentos amorosos com homens e mulheres, participou de círculos neoclássicos lésbicos, ilustrou 80 livros – entre os quais de André Gide, Lewis Carrol, Somerset Maugham –, produziu cenários e figurinos para o balé russo Les Biches, com música de Francis Poulenc e coreografia de Bronislava Nijinska, e para a Comédie Française, pintou retratos de personalidades parisienses, como Coco Chanel. Durante a Segunda Guerra Mundial, teve o apartamento confiscado pelos nazistas, recolheu-se em apartamento mais modesto, sua saúde se fragilizou. Morreu de parada cardíaca, em 1956, com 72 anos de idade, deixando uma biblioteca de 5000 itens. Em seu testamento, pediu que fossem colocadas em sua mão uma rosa branca e uma carta de amor de Apollinaire. 

Apesar do reconhecimento da crítica e do público nas décadas de 1920 e 1930, sua obra ficou relativamente esquecida na França e na história canônica da arte. Mais recentemente, vem despertando novo interesse de críticos, estudiosos e historiadores da arte, conquistando novos admiradores e crescente notoriedade póstuma. Em 1974, o poeta anarquista francês Léo Ferré musicou o poema “Marie”, de Apollinaire. Em 1975, o cantor francês Joe Dassin a mencionou na canção L'été indien. Em 1979, coleção de suas obras foi comprada em leilão pelo empresário japonês Masahiro Takano e expostas no Museu Marie Laurencin de Tokio – que encerrou atividades em 2019. No Brasil, seu quadro Guitarrista e duas figuras femininas (1934) integrou o primeiro lote de quadros quando da inauguração, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo. Suas obras constaram também de exposições coletivas de artistas estrangeiros em galerias brasileiras, nos anos 1973, 1995 e 2002. 

Nas últimas décadas, a artista vem sendo “redescoberta” também em estudos acadêmicos e catálogos de exposições, que possibilitam ampliar a compreensão de seu lugar na história das artes plásticas e da literatura de autoria feminina. Em 2011, foi lançada sua biografia em inglês, escrita por Bertrand Meyer-Stabley; em 2013, sua obra foi exposta no Musée Marmottan Monet, em Paris, entre outros exemplos. Também vem sendo conhecida e divulgada sua produção como escritora em prosa e verso: correspondência inédita, prefácio, textos em revistas e Le carnet des nuits, pelo qual a conheci. Quase 70 anos após a morte, sua obra continua ecoando, provocando reflexões e contribuindo para a compreensão do lugar, muitas vezes esquecido, das mulheres na história da arte e da literatura e para lembrar que “... ter talento é uma aventura que vale a pena...”. (Marie Laurencin)

Maria Mortatti – 08.03.2025

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Obs.: As informações sobre vida e obra de Marie Laurencin sintetizadas neste texto foram extraídas do posfácio da edição francesa de 2022 de Le carnet des nuits, da Wikipedia, de artigos e de catálogos de galerias e exposições disponíveis on-line, principalmente Casa Museu Eva Klabin e Pallant House Gallery.  Os trechos do livro citados em português foram traduzidos por mim.  

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FERNANDO GASPARIAN: ALGUNS ANOS DEPOIS! / JOÃO SCORTECCI

Conheci o editor e livreiro Fernando Gasparian (1930-2006) e o seu filho caçula Marcus, no final dos anos 1990, na gestão do editor e gráfico Altair Ferreira Brasil (1995-1999), então presidente da Câmara Brasileira do Livro, na cidade de São Paulo. Alguém teria dito: “Gasparian é um doido de pedra!”. Algo assim. Gosto dos doidos. Tenho por eles profunda admiração e respeito. Descobri, com o tempo, tratar-se de uma pessoa querida por muitos, respeitada, influente no mercado editorial brasileiro. Foi editor das obras de Fernando Henrique Cardoso, Érico Veríssimo, Celso Furtado, Antônio Callado, Oscar Niemeyer, Francisco Weffort, Paulo Freire e outros. Ex-deputado federal e empresário do ramo têxtil, Gasparian fundou nos anos 1970 o jornal “Opinião” (1971-1975) e a revista “Argumento”, focos de resistência à ditadura militar brasileira. Em 1973, assumiu a editora Paz e Terra, referência no meio acadêmico nas áreas de filosofia, sociologia e ciência política, fundada em 1965, pelo editor Ênio Silveira, também fundador da Civilização Brasileira. Em 1978, com sua esposa Dalva Funaro, Gasparian criou a Livraria Argumento, especializada em livros sobre política, economia e artes. A livraria funcionou inicialmente na cidade de São Paulo, na Rua Oscar Freire, e depois mudou para a cidade do Rio de Janeiro, no Leblon, onde funciona até hoje. Quando editor da Paz e Terra, Gasparian recebeu, das mãos do político e diplomata suíço Jean Ziegler, os originais do livro “Pedagogia do Oprimido”, do educador e filósofo, patrono da educação brasileira, Paulo Freire (Paulo Reglus Neves Freire, 1921-1997), na época exilado no Chile e também perseguido pela ditadura militar brasileira. Mesmo contra tudo e todos, num ato de coragem – loucura, talvez – Gasparian publicou, em 1974, o livro e o divulgou abertamente pelo País. Até hoje, “Pedagogia do Oprimido” continua popular entre educadores no mundo inteiro e é um dos fundamentos da pedagogia crítica com mais de um milhão de cópias vendidas. É o terceiro livro mais citado em trabalhos acadêmicos da área de ciências sociais, em todo o mundo. No filme "Ainda estou aqui" – Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 2024, com Fernanda Torres, Selton Mello e grande elenco, dirigido pelo premiadíssimo Walter Salles Júnior –, Fernando Gasparian, Dalva e Helena e Laura, filhas do casal, são personagens presentes na história.  Fernando Gasparian faleceu em 7 de outubro de 2006, aos 76 anos de idade. 

João Scortecci


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IZUMI SUZUKI E A QUÍMICA OXIMEL / JOÃO SCORTECCI

Fui um péssimo aluno de Química no colegial. Interesse zero! Lembro-me que apenas uma vez em sala de aula um assunto se ocupou de mim. Foi uma aula sobre combinação, fenômeno que ocorre quando substâncias químicas interagem e formam novas substâncias. Gostei das possibilidades. Igual à poesia! Até hoje guardo na cabeça as leis da combinação química e suas interações literárias. Anotei a ideia no meu diário e, anos depois, usei o conceito para escrever o livro “O Eu de Mim - Poema ecológico”, obra original do poema vencedor do IX Prêmio Itajaí de Poesia 1982. No poema, versos sobre química oximel, mistura de mel, vinagre e penas de gralha azul, remédio para as feridas da natureza humana. Talvez tenha sido o único livro que escrevi sobre ecologia, a destruição do planeta, o homem predador, covarde, algo assim. De lá para cá, as coisas só pioraram. Sou um apaixonado pelos livros de ficção científica, da combinação oximel: ciência, tecnologia e imaginação, narrativas sobre o futuro. Tenho uma lista de escritores do coração: Isaac Asimov, Aldous Huxley, Ray Bradbury, Júlio Verne, George Orwell e outros. Hoje conheci a escritora e atriz japonesa Izumi Suzuki (1949 -1986), autora do livro “Tédio terminal”, obra publicada pela DBA editora. Nesse livro, escrito entre os anos 1970 e 1980, Suzuki, visionária, escreveu sobre “cérebro podre”, a temática do vício em telas e tecnologia, estados totalitários, fluidez de gênero e jovens assexuados. A expressão está associada a: consumo de informações simples ou de baixa qualidade, rolagem de feeds on-line, busca por notícias negativas e angustiantes e afastamento de atividades e conteúdos mais complexos. O termo “cérebro podre” foi usado pela primeira vez em 1854 por Henry David Thoreau, no livro "Walden". O autor criticava a falta de valorização de ideias complexas e comparava o "brain rot" ao apodrecimento das batatas na Inglaterra, referindo-se à "Grande Fome da Batata", que ocorreu na Europa na década de 1840, causada por uma doença – conhecida como míldio, provocada pelo fungo Phytophthora infestansque – que contaminou as batatas e as tornou impróprias para o consumo. Izumi Suzuki cometeu suicídio em 1986, aos 36 anos de idade, enforcando-se em casa. Assim é a poesia! 

João Scortecci
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O “TOUR” DA FRANÇA POR AUGUSTINE FOUILLÉ / MARIA MORTATTI

A escritora francesa Augustine Fouillé (31.07.1833 – 08.07.1923), de pseudônimo G. Bruno (inspirado no nome do filósofo italiano) é autora de quatro manuais de leitura escolar: Francinet (1889), Les Enfants de Marcel (1887), Le tour de la France par deux enfants (1887), Le Tour de l’Europe pendant la guerre (1916). Le tour de la France..., o mais conhecido, foi utilizado para ensino de leitura, escrita, história, geografia e moral na escola primária francesa. Teve sucesso imediato e sucessivas edições com atualizações e adaptações ao sistema educacional francês. Marcou o ensino primário no contexto da Terceira República Francesa (1870-1940), foi adotado até ao anos 1950 e ainda é editado. 

Nesse manual, a narrativa em forma romanceada, organizada em 121 capítulos e ilustrada com 200 gravuras, desenvolve-se em torno das aventuras vividas pelos protagonistas, André (14 anos) e Alfred (7 anos), jovens irmãos e órfãos que partem da região da Alsácia-Lorena ocupada pelos alemães depois da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), para encontrar o tio em Marseille, cumprindo o pedido do pai antes de morrer. Durante a viagem pelas províncias francesas, aprendem a importância da educação, do trabalho, dos saberes práticos, da diversidade cultural e linguística, dos símbolos patrióticos, das formas de vida e atividades desenvolvidas no país, reconhecendo-o como nação e pátria. Por meio das lições do manual, inculcavam-se o sentimento de unidade nacional, a moral laica – em substituição à moral religiosa das edições do século XIX – o lema republicano “liberdade, igualdade e fraternidade” e noções “controversas”, tais como a que, entre as raças humanas, a branca apresentada é a mais perfeita em relação às outras.

“Este verdadeiro ‘livrinho vermelho da República’ com o seu tom paternalista promove as obsessões do novo regime: o trabalho, os valores tradicionais e o colonialismo”, na avaliação do jornalista francês Vincent Bresson. Apesar das críticas relativas às mudanças políticas e sociais, ao longo do século XX esse clássico pedagógico foi objeto de adaptações na França e em outros países – em livros, filmes, séries e programas de TV e rádio – e serviu de modelo para autores de livros escolares, como, no Brasil, ocorreu com Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim – inspirado também em Cuore (1886), do italiano Edmondo De Amicis –  sucesso na escola primária nas décadas iniciais do século XX, tornando-se um clássico do gênero, que formou gerações de brasileiros. 

Diferentemente do filósofo italiano que inspirou seu pseudônimo, Augustine Fouillé optou, não por desafiar, mas por se engajar, ela mesma, no ideal republicano e nacionalista de sua época e propagá-lo por meio do poderoso e exemplar instrumento pedagógico que criou, no qual seu país se apresentava como a utopia de uma grande nação e no qual cada estudante deveria se engajar. Com o sucesso de seu tour da França, imortalizou-se com a inscrição de suas lições nas mentes de gerações de estudantes e de seu nome na história da educação francesa e ocidental.

Maria Mortatti  


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A POÉTICA MARGINAL DA “GERAÇÃO MIMEÓGRAFO” NO BRASIL / MARIA MORTATTI

“Poesia marginal” é a denominação atribuída à produção da “Geração mimeógrafo”, constituída de novos poetas brasileiros que, nos anos 1970, durante a ditadura militar pós-1964, escreviam e divulgavam seus poemas “à margem”. Para escapar da censura do regime político e das dificuldades de inserção no meio editorial, recusavam modelos e sistemas literários, acadêmicos, intelectuais e editoriais. Não tinham um projeto ou programa literário. Com liberdade poética, diversidade etária e regional, faziam poesia “coletiva” sobre assuntos do cotidiano, em linguagem coloquial e informal, com tom de improviso, paródias e apropriação de poetas canônicos, protesto políticos contra o regime e contra a crítica literária oficial. Confeccionavam artesanalmente textos e ilustrações em mimeógrafo e buscavam contato direto com o público, expondo sua poesia em muros, praças, ruas, teatros, bares, universidades, eventos e vendendo por preço baixo. 

Apesar da atitude de recusa, transgressão, independência e resistência ao regime autoritário da época, alguns representantes dessa geração se destacaram já na época pela qualidade estética, especialmente por meio da inclusão na antologia 26 poetas hoje (1975), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Alguns deles tiveram seus poemas publicados e distribuídos por editoras comerciais, e suas obras vêm sendo reunidas, publicadas e estudadas, já com consistente fortuna crítica. Nos anos 1980, apresentei aos meus alunos de ensino médio poetas dessa geração, que então tinha lido e apreciado: Ana Cristina César, Cacaso – ambos falecidos precocemente, além de outros dessa geração, como Torquato Neto, Waly Salomão – e Paulo Leminski. 

O primeiro que me chegou às mãos foi o livro A teus pés: poesia/prosa, de 1982, Ana Cristina César (Rio de Janeiro, 1952-1983), que além de poeta, com quatro livros publicados em vida, dedicou-se às atividades de crítica literária, jornalista e tradutora, com dezena de publicações. No poema “Este livro” me apresentou o manifesto poético de Ana C..: “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio [...]”. Nesse e demais livros seus anteriores e posteriores, reunidos na antologia Poética (Companhia das Letras, 2013,), conheci melhor sua poesia, que, apesar da aparente “simplicidade”, é marcada por “avançada pesquisa poética” com uma “estratégia de linguagem como desvio contínuo, fratura, abertura para múltiplas falas, testemunho do inconcluso e do inacabado”, nas palavras do crítico Ítalo Moriconi.

Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (Uberaba/MG,1944; Rio de Janeiro,1987), poeta, professor universitário e letrista de música popular brasileira, para alguns críticos literários é o tutor da “poesia marginal”. Seu livro Beijo na boca e outros poemas (1975) foi o que primeiramente li e apresentei em aulas. Em especial, recordo-me de dois poemas apreciados em atividades de leitura: “Lar doce Lar”: “Minha pátria é minha infância / Por isso vivo no exílio.” E “Estágio do retrato”, em que o poeta, inspirado em Cecília Meireles, pergunta: “Nos olhos de quem terei perdido a minha face?” O conjunto de sua produção – seis livros publicados em via e poemas inéditos, e 60 letras de música –, publicado em Poesia completa (Companhia das Letras, 2020), representa também ideias e dilemas de sua geração, “impactada pela violência da história”. “Embora seus poemas sejam independentes e possam ser lidos separadamente, compõem uma espécie de poema único ou ‘poemão’, que sintetiza vivências subjetivas e coletivas”, segundo a pesquisadora Débora Racy Soares

Paulo Leminski Filho (Curitiba/PR, 1944-1989) é autor de obra prolífica e diversificada, um escritor “multimidia”, em termos atuais. Publicou oito livros de poemas, dois romances, novela infantojuvenil, ensaios, biografia, crítica literária, canções, artigos, crônicas, traduções de clássicos da literatura e transitou, ainda, nas artes gráficas, quadrinhos, TV, jornalismo e publicidade. Segundo Rodrigo Garcia Lopes, na recepção crítica da obra de Leminski costuma-se reduzi-la ao trocadilho e ao haicai, ignorando-se a densidade de muitos de seus “poemas pensantes”. Em carta de 1977 ao poeta Regis Bonvicino, Leminski formula a declaração de princípios de sua poesia: “é a linguagem que tem que estar a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem”. No livro Distraídos venceremos (1987), assim “define” sua poética e de sua geração: “Marginal é quem escreve à margem,/ deixando branca a página / para que a paisagem passe / e deixe tudo claro à sua passagem.” Resistindo ao tempo, sua obra foi reunida em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013) e, os inéditos foram publicados no livro O ex-estranho – Paulo Leminski (Iluminuras, 2018), com organização e seleção pela poeta Alice Ruiz S., com quem foi casado, e Áurea Leminski, filha do casal. 

Sob influência difusa de movimentos de contracultura da geração beat (beat generation) – iniciados nos anos 1940 nos EUA, que inspiraram formas de expressão similares em países europeus, e, no Brasil, do movimento modernista pós-1922 e do Tropicalismo/ Tropicália – movimento artístico e cultural de vanguarda, com manifestações principalmente na música popular, no cinema, no teatro, poetas daquela “geração mimeógrafo” compuseram também uma “poética marginal”. Com o “jazz do coração” de Ana C., por meio do “poemão” sintetizado por Cacaso e reconfigurando as palavras de ordem “distraídos venceremos”, de Leminski, esses e outros daquela geração transgressora, cuja qualidade estética foi e é reconhecida pela crítica especializada, continuam lidos e apreciados por leitores do século XXI, com circulação também em redes sociais. E, apesar da diversidade de características dos poetas e da postura transgressora, contestatória e antiprogramática, a “poética marginal” resultante da produção da "geração mimeógrafo" integra um capítulo da história da literatura brasileira.

Maria Mortatti


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OSWALD DE ANDRADE, SOPÃO LITERÁRIO E A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 / JOÃO SCORTECCI

Conheci o poeta e pintor modernista, Menotti Del Picchia (1892-1988), no final dos anos 1970. Em 1982, quando inaugurei a Scortecci Editora, na Galeria Pinheiros, na cidade de São Paulo, tive a honra de recebê-lo na loja, numa inesquecível tarde de agosto, acompanhado da escritora e acadêmica, Lygia Fagundes Telles. Entre 1982 e 1983, frequentei a casa de Menotti, na Avenida Brasil, na capital paulista. Fiquei amigo também de Helena Rudge Miller, sua enteada, filha de Charles Miller – considerado por muitos o pai do futebol no Brasil – e de Antonietta Rudge, que, nos anos 1920, casara-se com Menotti. De 1934 a 1945, Menotti colaborou com o meu avô, José Scortecci, na revista PAN. Eu, Menotti e Helena conversávamos sobre tudo: literatura, política e principalmente sobre os “causos” da Semana de Arte Moderna, realizada de 11 a 18 de fevereiro de 1922. O "Príncipe dos Poetas" – titulo que Menotti recebeu em 1982 – era “fã” de Juscelino Kubitschek. Na parede da entrada da sua casa, tinha uma foto de JK. Vez por outra, interrompia o papo, apontava para a foto e bradava: “Grande homem!”. Na literatura, o assunto predileto eram as doideiras de Oswald de Andrade. Segundo Menotti, o vate antropofágico era possuído por profunda e insaciável fome. Reuniam-se – costumeiramente – nos fins de semana. Quando Oswald chegava, abria geladeiras, armários, o saco de pão, tudo que cheirasse a comida. O seu apetite era incontrolável! Helena, que participava do papo, balançava a cabeça, rindo, confirmando a prosa. Para fugir dos ataques de Oswald, por sugestão de alguém criaram, então, o famoso “sopão literário”, com as sobras da semana. Não se perdia nada! Menotti – de quem ganhei algumas gravuras que guardo no meu acervo – pintou um retrato de Oswald de Andrade, com babador, “antropofagando” o tal “sopão literário”. O quadro a óleo – eu o vi – ficava na parede da cozinha da casa do "Príncipe dos Poetas", como prova do crime modernista. Não sei do seu paradeiro, infelizmente. Nos anos 1990, tornei-me amigo do escritor e cineasta Rudá de Andrade (Rudá Poronominare Galvão de Andrade, 1930-2009), filho de Oswald e Pagu (Patrícia Rehder Galvão, 1910-1962). Contei-lhe a história do sopão, do quadro pintado por Menotti e aguardei sua reação. Rudá me olhou – pareceu-me surpreso – e depois caiu no riso solto, vampiresco. Seus olhos brilharam. Nada disse. Riu muito. E a amizade continuou até sua morte. 

João Scortecci


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CONRADUS CELTIS: O COLECIONADOR DE POETAS / JOÃO SCORTECCI

O poeta, historiador e humanista alemão Conradus Celtis (1459-1508) foi também colecionador de manuscritos em grego e latim, quando exerceu o cargo de bibliotecário da biblioteca imperial fundada por Maximiliano I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Arquiduque da Áustria e Rei da Germânia, de 1497 até sua morte, em 1519. O imperador homenageou Celtis, oferecendo-lhe um “privilegium” imperial como professor da arte da poesia e da conversação. Em Viena, deu aulas sobre os manuscritos dos escritores clássicos e, em 1502, fundou o Collegium Poetarum, destinado à formação de poetas. Quando jovem, formou-se em artes liberais na Universidade de Colônia e se graduou na Universidade de Heidelberg – ambas na Alemanha –, atraído pela presença do humanista holandês Rudolf Agricola (Roelof Huesman, 1443-1485). A grande obra de Celtis – e a única publicada em vida – foi Quatro livros de amor (Quattuor libri amorum), de 1502. Para muitos críticos, essa é a contribuição mais original do humanismo alemão à literatura renascentista. Celtis também editou e publicou diversos textos sobre a história e a cultura alemã e fundou academias literárias, entre outras atividades, durante os 10 anos em que viajou pela Europa. Em 1488, na Cracóvia, Polônia, fundou a Sodalitas Litterarum Vistulana, uma sociedade literária com base nas academias romanas. Em 1490, na Hungria, fundou a Sodalitas Litterarum Hungaria, mais tarde conhecida como Sodalitas Litterarum Danubiana, com sede em Viena, Áustria. Em Heidelberg, Alemanha, fundou a Sodalitas Litterarum Rhenana. Conradus Celtis, o colecionador de poetas, morreu de sífilis, em Viena, no dia 4 de fevereiro de 1508, aos 49 anos de idade.

João Scortecci

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UMA VIAGEM NAS ASAS DE SELMA LAGERLÖF, PRIMEIRA NOBEL DE LITERATURA / MARIA MORTATTI

“... em reconhecimento do idealismo elevado, da imaginação vívida e da percepção espiritual que caracterizam seus escritos”: essa é a justificativa da Academia Sueca para escolher Selma Ottilia Lovisa Lagerlöf (20.11.1858 – 16.03.1940), como a primeira escritora laureada com o Prêmio Nobel de Literatura (1909). Foi também uma das primeiras escritoras feministas escandinavas e a primeira a integrar a Academia Sueca (1914), tendo se consagrado como uma das maiores escritoras de seu país e conhecida internacionalmente. 

Selma Lagerlöf nasceu e viveu até os 24 anos em Mårbacka, propriedade da família na província sueca de Värmland. Leitora desde cedo, educada em casa como as jovens da época, começou a escrever ainda nessa época. Foi incentivada a publicar seus primeiros versos na revista literária feminista Dagny, fundada pela pioneira ativista dos direitos das mulheres no país, a baronesa Sophie Lejonhufvud Adlersparre (Esselde). Em 1885, formou-se professora e lecionou em escola para meninas em Landskrona, até 1895, quando se mudou para a cidade de Falun e passou a se dedicar apenas à carreira literária. Com a escritora sueca Sophie Elkan (1853-1921) – por quem se apaixonou –, entre 1895 e 1899 viajou para Itália, Egito, Palestina, França, Bélgica e Holanda, recolhendo material para seus livros. Com o dinheiro obtido com seus primeiros livros e com o prêmio Nobel, em 1910 realizou o antigo desejo de comprar de volta a propriedade da família, vendida para salvar dívidas do pai e do irmão. Lá passou a morar até a morte, continuando sua obra de escritora. Além das atividades de fazendeira, dedicou-se a causas feministas e humanistas. Após a morte da amiga escritora, Lagerlöf herdou seus pertences pessoais e converteu um cômodo de sua casa em Mårbacka em um museu dedicado a Sophie Elkan.

Sua obra literária é inspirada nas histórias e lendas populares do seu país, rompendo com o realismo predominante em sua época e inserindo-se na tradição do conto de autoria feminina na Suécia, iniciada com Fredrika Bremer (1801-1865), escritora e pioneira do movimento feminista no país. Em 1891, Selma Lagerlöf publicou seu primeiro romance Gösta Berling Saga (A Saga de Gösta Berling), considerado por críticos literários como sua obra-prima e precursor do realismo mágico. Escreveu, depois, mais de duas dezenas de publicações, alguns póstumos, entre romances, contos, biografia, autobiografia, ensaios e literatura para crianças. No Brasil foram publicadas apenas sete de seus livros, entre os quais Nils Holgerssons underbara resa genom Sverige  (A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia), seu livro de maior sucesso, que integra o cânone da literatura para crianças e jovens, foi adotado em todas as escolas suecas e traduzido para mais de 60 idiomas, além de adaptações em livros, peças de teatro, ópera, filmes e séries de cinema e TV. 

Publicado em 2 volumes, em 1906 e1907, o livro foi escrito – depois de muita pesquisa – por encomenda do diretor da escola elementar onde ela lecionava, para ensinar geografia e outros aspectos da Suécia aos alunos. O protagonista, Nils Holgersson, com 14 anos, filho de camponeses pobres da região da Escânia, menino preguiçoso, violento e maldoso com animais e pessoas, que só gostava de dormir e comer, é castigado com a transformação em duende e monta num ganso doméstico, que voa na primavera seguindo um bando de patos selvagens até a Patagônia. Durante a viagem, enfrenta sustos e medos, mas com o tempo vai ganhando coragem, descobrindo a Suécia como “uma toalha quadriculada”, participando de aventuras com as aves e aprendendo com elas a se tornar um menino melhor, que respeita as pessoas e a natureza, reconhece a importância do trabalho e da caridade, podendo, então, voltar ao tamanho e à forma humana. 

Apesar de sua finalidade didático-pedagógica, com lições morais, religiosas, humanistas e nacionalistas, características da literatura infantil ocidental da época – como exemplificam os contos de Zacharias Topelius (1818-1898), finlandês de expressão sueca; Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos) (1886), do italiano Edmondo De Amicis; Le Tour de la France par deux enfants (Viagem pela França por duas crianças) (1877), da francesa Augustine Fouillée; Heide (1879/1880), da suíça Johanna Spyri, entre outros – os talentos literários da autora e a qualidade poética de sua narrativa se destacam nessa obra que continua sendo lida e apreciada na Suécia e em outros países, até os dias atuais. Foi elogiada pelos escritores Rainer Maria Rilke e Marguerite Yourcenar e mais recentemente por críticos literários e editores, em diferentes aspectos: um dos primeiros “romances ecológicos” do mundo; uma “fábula de dimensões épicas sobre a redenção e encontrar o bom caminho”; “quase uma rapsódia sueca”. 

A obra de Selma Lagerlöf, em particular A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, ficou pouco conhecida e estudada no Brasil ao longo do século XX. A primeira tradução desse livro para o português, feita por Maria de Castro Henriques Oswald, foi publicada em 1953, em Portugal; no Brasil, em 1985, pela Nórdica, foi publicada a tradução de Manoel Paulo Ferreira. Podem-se, no entanto, identificar semelhanças entre o livro protagonizado por Nils e ao menos um livro brasileiro para crianças do início do século XX: Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, que também teve grande sucesso nas escolas, dada a forma agradável de ensinar às crianças geografia, hábitos, costumes, lendas do País, por meio da narração da viagem dos irmãos Carlos e Alfredo de Recife/PE até Pelotas/RS, em busca do pai. 

Passa o tempo, mudam-se critérios e gostos literários, mas neste século XXI as aventuras e o aprendizado do menino sueco montado nas asas de um ganso, nascidos da pena da feminista sueca e primeira Nobel de Literatura, continuam maravilhando crianças e adultos, muito além das lições de geografia de sua terra natal. Assim são os clássicos: nunca terminaram de dizer o que tinham a nos dizer, como ressalta o escritor italiano Italo Calvino. Certamente, o duradouro sucesso desse clássico sueco se deve às maravilhas da viagem que, pelos olhos de Nils, podemos desfrutar nas asas de Langerlöf, como sugere a poeta brasileira Cecília Meireles: “Assim vai o herói. E assim vai se desenrolando o livro. A técnica é realmente a da receita, - parece fácil. Ai das supostas facilidades literárias. Mas aqui não há nada a temer: Nils viaja com segurança, levado por Selma Lagerlöf...”. Nós, leitores, também!

Maria Mortatti  

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HAIDI, A “FILHA" DILETA DE JOAHNNA SPIRY / MARIA MORTATTI

Com 10 anos de idade, ganhei um exemplar de Haidi, a filha das montanhas, adaptação do romance infantojuvenil da escritora suíça de expressão alemã Johanna Spiry (12.06.1827- 07.07.1901). De formato pequeno, capa de fundo amarelo, 126 páginas com algumas ilustrações em preto e branco, o livro foi publicado pela Livraria Exposição do livro (SP), sem data, com tradução por Sylvio Monteiro da adaptação (dos dois volumes originais) pela escritora estadunidense Alice Thorne e publicada em 1961 pela Grosset & Dunlap. Foi um presente de D. Elza Canazza, professora de minha turma (feminina) no 4º. ano primário, como prêmio pelo aproveitamento, com louvor, no ano letivo de 1964 no Grupo Escolar “Pedro José Neto”, de Araraquara/SP. 

Nascida nos Alpes Suíços, Johanna Louise Heusser Spyri começou a escrever aos 43 anos de idade e publicou o primeiro livro em 1873, em Zurich, Alemanha, onde passou a morar depois de casada. Após a morte do marido e do único filho, em 1884, dedicou-se a causas de caridade. Ao longo da vida, escreveu mais de 50 histórias, a maior parte para crianças e com tom didático e religioso, tendo se tornado um ícone na Suíça. 

Seu primeiro romance para crianças é Heide. Escrita em quatro semanas, a história original de Joahnna Spyri foi publicada em duas partes: Heidis Lehr- und Wanderjahre (Os anos de aprendizado e viagens de Heidi), de 1879/1880, e Heidi kann brauchen, was es gelernt hat (Heidi pode usar o que aprendeu), de 1881. Heide (ou Haidi), é o apelido da protagonista, Adelaide, menina órfã de cinco anos, otimista e altruísta, levada pela tia Dete para morar com o avô paterno que vivia sozinho nos Alpes Suíços. Lá, ela aprende e ensina o amor ao próximo, à natureza e a reverência a Deus. Com 10 anos de idade, a tia a leva à casa de uma rica família em Frankfurt, Alemanha, para ser companheira da menina Clara, de 12 anos, paralítica, órfã e solitária. Lá, ela novamente ensina e aprende a generosidade e a alegria de ajudar os outros. Sente saudade da vida nas montanhas e para lá retorna, levada por Clara e seu pai.

Heide teve sucesso imediato e se tornou uma das obras mais conhecidas da literatura suíça e um clássico da literatura infantojuvenil universal. Os livros foram traduzidos para mais de 50 idiomas, com inúmeras adaptações em livros, filmes e séries live-action e de animação de cinema e TV, peças de teatro, histórias em quadrinhos, musicais. Houve também alegação de a história ter sido plagiada de romance suíço de 1830, o que foi contestado por não haver comprovação científica das semelhanças encontradas. 

O exemplar que ganhei há seis décadas, guardei-o com as recordações escolares. Recentemente, reencontrei-o e o reli. Com certeza, a professora o escolheu para me presentear por ser a adaptação então recém-lançada de um clássico da literatura para meninas e com lições exemplares a serem aprendidas e usadas. Assim o li naquela época e gostei. Provavelmente também usei muito do que aprendi com ela e outras protagonistas órfãs de histórias parecidas – como Pollyana, do romance de Eleanor Porter, que li logo em seguida, na tradução de Lobato pela Cia Editora Nacional – as quais foram criticadas por estudiosos da literatura infantil a partir dos anos 1980, justamente pelo tom edificante e didático. Na releitura, as lições de Haidi não me empolgaram. Mas me detive na folha de rosto com o carimbo da Livraria Acadêmica de Araraquara e anotações em manuscrito, abaixo de meu nome: “Lembrança de D. Elza, 12 de dezembro de 1964.” Talvez o livro-lembrança da saudosa professora e do que me ensinou tenha representado a mais duradoura e afetiva lição daqueles tempos de aprendizado com Haidi, a “filha" dileta de Johanna Spyri. 

Maria Mortatti 

 

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