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O DIA DE SARTRE, BEAUVOIR E PELÉ NA “MORADA DO SOL” / MARIA MORTATTI

O “Dia de Sartre” – 4 de setembro – foi instituído na cidade de Araraquara – SP, pela Lei Municipal n. 5673/2001, para relembrar e comemorar o dia 4 de setembro de 1960, em que o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 –1980) proferiu a célebre “Conferência de Araraquara”.

Órfão de pai aos 15 meses de idade, Sartre mudou-se com sua mãe para a casa dos seus avós maternos em Meudon e, até a adolescência, foi educado em casa pelo avô, Charles Schweitzer, professor de alemão que influenciou e despertou no neto o interesse pela literatura clássica. Aos 12 anos, mudou-se com sua família para La Rochelle, onde residiu até os 15 anos, indo estudar em Paris, no célebre Liceu Henri IV, e depois no Liceu Louis le Grand, interessando-se por filosofia. Em 1924, matriculou-se na Escola Normal Superior, em Paris, e conclui os estudos em 1929. Nesse ano, conheceu a escritora, filósofa, ativista política e feminista Simone de Beauvoir (1908 – 1986), que ele tratava pelo apelido “Castor” e se tornou sua companheira e colaboradora até o fim da vida, mantendo-se entre eles grande afinidade intelectual – ela  colaborou com a obra filosófica dele, revisava seus livros, tornou-se também uma das principais filósofas do movimento existencialista e, nos volumes autobiográficos de sua obra, relata seu processo criativo e o do companheiro. Em 1931, Sartre foi nomeado professor de Filosofia no Liceu do Havre e, de 1933 a 1934, estudou e viveu em Berlim. Em 1938, publicou seu primeiro romance, La Nausée (A náusea), que foi um sucesso, tendo contribuído para a influência do filósofo na cultura francesa e para a moda existencialista que dominou Paris na década de 1940. Depois de outras atividades como professor, abandonou definitivamente o magistério em 1944. Com o início da Segunda Guerra Mundial, convocado a servir no exército francês como meteorologista, foi capturado em 1940 pelos alemães e enviado a um campo de prisioneiros onde passou nove meses, durante os quais escreveu e encenou a peça teatral Barionà, fils du tonnerre. Libertado, voltou à França em 1941 e criou o movimento Socialismo e Liberdade. Em 1943, publicou L'être et le néant (O ser e o nada). Em 1945, fundou a revista Les Temps Modernes (Tempos Modernos), conhecida como “Revista de Sartre”. Em 1952, ingressou no Partido Comunista Francês, rompendo depois de quatro anos. Em 1960, publicou Critique de la raison dialectique (Crítica da razão dialética) e passou dois meses e meio no Brasil, acompanhado de Simone de Beauvoir. Em 1964, publicou a autobiografia Les mots (As palavras) e recusou o Prêmio Nobel de Literatura por acreditar que “nenhum escritor pode ser transformado em instituição”. Faleceu em Paris em 15 de abril de 1980.

Na única visita ao Brasil, Sartre e Beauvoir desembarcaram em Recife – PE, em 12 de agosto de 1960, a convite do escritor baiano Jorge Amado (1912 – 2001), que os conhecera em encontros do Partido Comunista, na França. O convite era para participar do 1º. Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, na capital pernambucana. Comenta-se, porém, que a visita de Sartre e Beauvoir era na verdade uma fuga das perseguições por eles sofridas, devido à forte oposição que faziam ao colonialismo francês na Argélia. Permaneceram no Brasil por dois meses e meio e estiveram em várias cidades, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, Fortaleza, Manaus e... Araraquara. A intensa agenda dos filósofos franceses foi organizada por Jorge Amado e sua esposa, a escritora Zélia Gattai (1916 – 2008) e incluiu visitas a plantações de tabaco, café e de cacau, mercados populares, fazendas, favelas e cidades modernas e encontro com o presidente da República, Juscelino Kubitschek, em 22 de setembro de 1960, além de palestras de Sartre sobre temas políticos importantes, em um momento em que o mundo estava polarizado pela Guerra Fria: a libertação da Argélia, então colônia francesa, e a revolução em Cuba, onde ele havia estado meses antes. 

O discurso engajado do filósofo fez grande sucesso no País, que vivia um momento de euforia das esquerdas. Houve ampla cobertura da imprensa e televisão brasileiras. Em uma única semana que passou por São Paulo, os jornais paulistas dedicaram a ele mais de 200 artigos. Sartre deu entrevistas na televisão, apareceu em colunas sociais, participou de inúmeras conferências e se encontrou com comunistas históricos, como Luís Carlos Prestes e Oscar Niemeyer.

O responsável pela visita dos filósofos franceses a Araraquara foi Fausto Castilho, então docente de filosofia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL) de Araraquara (encampada pela Unesp – Universidade Estadual Paulista, criada em 1976), que enviou a Sartre uma pergunta sobre a conciliação do existencialismo e marxismo, conforme argumentação exposta por Sartre em Critique de la raison dialectique, publicado naquele ano. Após contato telefônico, Sartre afirmou que somente poderia responder àquela indagação pessoalmente. Foi feito, então, o convite para a conferência e imediatamente aceito, contrariando Jorge Amado e Simone de Beauvoir, que achavam que o filósofo, no auge de sua carreira e popularidade, não deveria realizar uma conferência em uma faculdade com apenas dois anos de existência, em uma pouco conhecida cidade provinciana do interior paulista, com cerca de 80 mil habitantes, a 273 km da capital, e a convite de um jovem professor de 31 anos. 

Foi assim que, naquela ensolarada e quente tarde de domingo, minha cidade natal e minha Alma Mater receberam os ilustres visitantes, que fizeram a viagem da capital paulista a Araraquara em uma Kombi cedida pela faculdade e ficaram hospedados em uma fazenda da família Mesquita, dona do jornal O Estado de S. Paulo, que cobriu toda a visita de Sartre ao País. Naquela época, o jornal ainda apoiava a Revolução Cubana e o posicionamento de Sartre, pois Fidel Castro ainda não tinha declarado Cuba como um país comunista.

A conferência foi proferida no anfiteatro da FFCL, na Rua 3 (São Bento) – no atual prédio da Casa da Cultura “Luiz Antônio Martinez Correa” –, para um auditório lotado, com cerca de 100 pessoas, entre estudantes e intelectuais, alguns já famosos, outros que se destacariam nas décadas seguintes. Além de Simone de Beauvoir, Jorge Amado e Zélia Gattai, estavam presentes Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e então futuro presidente do Brasil, e sua esposa araraquarense e socióloga, Ruth Cardoso; Bento Prado Jr., professor da UFSCar; Jorge Nagle, professor da FFCL e então futuro Reitor da Unesp; Miriam Moreira Leite, professora da USP, e seu marido, Dante Moreira Leite, psicólogo e professor USP e FFCL; Antonio Candido, professor de Teoria Literária da USP; Gilda Mello e Souza, ensaísta e professora de Estética da USP; Michel Debrun, francês e professor-visitante da USP; o araraquarense José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo e criador do Teatro Oficina; Dante Tringali, professor de Latim da FFCL; José Aluysio Reis de Andrade, professor de Filosofia da FFCL; Nilo Scalzo, jornalista de O Estado de S. Paulo; além do professor Fausto Castilho, entre outras autoridades. A tradução simultânea da conferência foi realizada por Antonio Candido e Fernando Henrique Cardoso. 

Nesse mesmo dia, Sartre e Beauvoir tiveram um encontro no antigo Teatro Municipal da cidade de Araraquara, também na Rua 3, com estudantes, dirigentes sindicais, agricultores mobilizados em prol da reforma agrária, jornalistas e professores, mediado por vários intérpretes, entre eles Antonio Candido e Fernando Henrique Cardoso. 

A visita dos filósofos aterrorizou a Igreja Católica araraquarense, que temia as ideias comunistas do filósofo e sua forte ligação com a esquerda. Sartre foi pauta da rádio da cidade, que transmitiu, contra ele, uma série de pregações promovidas pela Igreja.

Para outros araraquarenses, 4 de setembro de 1960 foi o dia em que, no estádio da Fonte Luminosa, o time da Associação Ferroviária de Esportes derrotou o Santos Futebol Clube, em que jogava o Rei Pelé. Eu não estava lá, mas meu pai provavelmente sim, sentado na arquibancada com seu inseparável radinho de pilha colado ao ouvido. Com o estádio da Fonte Luminosa lotado, o time local venceu por 4 x 0. Como recorda o professor  José Aluysio de Andrade, naquele dia, os torcedores da Ferroviária, eufóricos com a vitória, protagonizaram, sem saber, um acontecimento curioso. Saíram pelas ruas comemorando, e quando, após o debate no Teatro Municipal, Sartre viu o aglomerado de pessoas no centro da cidade, pensou que aquela algazarra se devia à sua presença. 

Sartre permaneceu no Brasil até 1º. de novembro de 1960, prometendo voltar. Quatro anos depois, as ideias revolucionárias que defendeu seriam sufocadas pelo golpe militar no Brasil. E o filósofo que aceitou proferir a conferência na então pequena cidade paulista recusaria o Prêmio Nobel de Literatura.

A conferência foi gravada, transcrita e traduzida no livro A Conferência de Araraquara, publicado em 1986, pela editora Paz e Terra, em parceria com a Unesp. Em 2005, foi reeditado em edição bilíngue, com o título Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara, pela Editora Unesp, com tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 

Quando da passagem de Sartre e Beauvoir por minha cidade natal, eu ainda nem tinha aprendido a ler e escrever. Em 1972, quando ingressei no curso de Letras da FFCL que funcionava no prédio da Rua 3, tive aulas na sala-auditório em que, 12 anos antes, estiveram Sartre, Beauvoir, Jorge Amado e tão ilustres intelectuais, entre eles Dante Moreira Leite, professor de Psicologia da Educação, que foi o primeiro professor que conheci como aluna daquele curso e nunca me esqueço da pergunta de principiante atrevida que lhe fiz durante uma aula: “Professor, psicólogo também precisa de psicólogo?”. Depois que a FFCL foi transferida para o campus Universitário, em 1975, o prédio da Rua 3 passou a abrigar a Casa de Cultura “Luiz Antônio Martinez Correa”, e a sala foi batizada com o nome do filósofo francês. 

A inusitada e célebre conferência de Sartre em Araraquara, que foi destaque no panorama do pensamento brasileiro da época, conferiu fama ao anfitrião do ilustre casal e à única cidade do interior paulista regalada com sua visita. O “Dia de Sartre” em Araraquara, a “Morada do Sol”, foi também um dia de sorte para todos que participaram, ao vivo, do memorável evento, e os que, como eu, puderam e podem conhecer essa já mítica história, graças ao esforço de preservação da memória e, sobretudo, à publicação do livro, que perdura no tempo. Sem esquecer a também memorável coincidência dos caminhos cruzados naquela tarde de domingo, 4 de setembro de 1960: enquanto Sartre, um dos mais influentes pensadores do século XX, proferia sua conferência no centro da cidade, o Rei Pelé, o maior atleta de todos tempos, exibia-se na Fonte Luminosa, em jogo do Campeonato Paulista. Sartre foi aclamado, e Pelé, ofuscado pelo time local. 

O dia de Sartre, Beauvoir e Pelé foi, sem dúvida, um dia glorioso a ser sempre lembrado na "Morada do Sol" e no Brasil.

Maria Mortatti