O polímata Mário de Andrade (São Paulo, 09.10.1893 – 25.02.1945), poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo, figura central do movimento modernista de 1922, desde os 14 anos de idade costumava visitar seus parentes na cidade de Araraquara, no interior paulista. Era primo de Zulmira Moraes Rocha, sobrinha e esposa de Pio Lourenço Correa (1975 – 1957), fazendeiro, filólogo autodidata, amante de livros, vereador, político influente e autor de Álbum de Araraquara ( 1915) e Monografia da palavra Araraquara (1924).
No refúgio araraquarense de Mário, a Chácara Sapucaia, o Tio Pio – como o escritor o chamava – mandou construir um casarão para ele e a esposa se refugiarem durante a epidemia de febre amarela que assolou a cidade entre 1895 e 1897. Por causa de uma depressão decorrente da morte precoce do irmão, Mário se refugiou na Sapucaia em dezembro de 1926 e, com anotações de pesquisas sobre a cultura e o povo brasileiros, durante “seis dias ininterruptos de rede, cigarras e cigarros”, entre os dias 16 e 23 daquele mês, escreveu a primeira versão de sua obra-prima, Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, autodefinida como “rapsódia” e publicada em 1928.
Embora se tenha notícia de que, na Sala Pio Lourenço Corrêa da Biblioteca Pública “Mario de Andrade” de Araraquara, está a escrivaninha em que Mário escreveu Macunaíma – integrando a doação feita pela esposa de Pio, em 1957, da biblioteca particular do filólogo e outras obras raras –, conta-se também que a primeira versão do romance foi escrita na banheira francesa instalada no casarão, pois Pio exigia que todos em sua casa dormissem logo após o anoitecer, especialmente Mário, que estava adoentado. Antes de ir para a cama, os hóspedes tomavam banho, e o escritor ficava por último para escapar da ordem e aproveitar alguns momentos de silêncio e privacidade.
De gerações diferentes, Mário, um modernista, e Pio, um tradicionalista, tornaram-se grandes amigos. Debatiam assuntos como cultura brasileira, tradições indígenas e portuguesas e trocaram farta correspondência, entre 1917 e 1945, reunida por Gilda de Mello e Souza e compilada por Antônio Cândido no livro Pio & Mário – Diálogo da vida inteira (Sesc SP/Ouro sobre Azul, 2009)
Com a morte de Pio e Zulmira – que não tiveram filhos –, a propriedade foi herdada por Renato Rocha, irmão de Gilda de Mello e Sousa e afilhado de Pio, iniciando-se o loteamento do terreno. Os herdeiros ficaram com a Sapucaia até os anos 1960, quando foi adquirida pelo casal de docentes da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (encampada pela Unesp - Universidade Estadual Paulista, em 1976): Waldemar SAffioti (1922 – 1999), químico, autor de livros didáticos e vereador, e Heleieth Saffioti (1934 – 2010) socióloga marxista e militante feminista. Após a morte do marido e sem herdeiros, Heleieth doou a propriedade à Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp – Araraquara, com a condição de que a área fosse transformada em centro cultural. O Centro Cultural Professores Waldemar e Heleith Safiotti, situado no bairro do Carmo, é uma grande área verde, repleta de árvores centenárias com mais de 70 espécies frutíferas e ornamentais, aberto à visitação púbica. Em 2014, a chácara foi tombada como patrimônio histórico de Araraquara, com gestão pela FCLAr.
Conheci grande parte da obra literária de Mário, quando, ainda jovem, frequentava a Biblioteca Pública “Mário de Andrade” de Araraquara e depois, no início dos anos 1970, como estudante de Letras na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Li e reli Macunaíma, em exemplar que adquiri na Livraria Acadêmica da cidade, além de Roteiro de Macunaíma, de M. Cavalcanti Proença. Ouvia, então, muitas histórias sobre a passagem de Mário e a gênese do romance na chácara de Pio. Mas, até eu me mudar de lá, em 1978, não tinha ideia da riqueza preservada nesse patrimônio histórico de minha cidade natal, considerado “o berço de Macunaíma”. Somente fui conhecer a Sapucaia no final dos anos 2000, quando a visitei como docente e pesquisadora vinculada à Unesp – campus de Marília. Lá estava o casarão, imponente na parte elevada do terreno, com parte da construção circundada por um avarandado coberto. O quarto, o armário, as cadeiras, a escrivaninha de Mário estavam lá. A banheira francesa também – e funcionando. Tenho certeza de que vi Mário escrevendo nas folhas de papel sobre uma barra de madeira apoiada nos dois lados da icônica peça sanitária, depois caminhando pelo assoalho de madeira do corredor e da sala de estar até a varanda, onde se encontrou com Pio e, deitados em redes, entre cigarros e cigarras, discorreram sobre etimologia de palavras da língua tupi. Escutando-os com atenção, aprendi: “Macunaíma”, de “maku” (“mau”), e “-ima”, sufixo aumentativo, significando o “grande mau”, na mitologia indígena da Amazônia Ocidental era um ser prodigioso, capaz de transformar pessoas e animais em pedra, pelo simples prazer do feitiço; “Sapucaia” significa “olho que abre”/“fruto que faz saltar o olho”, pois ao se abrir a “tampa” do fruto dessa árvore ele fica com formato de um olho; e “Sapucaí”, rio das sapucaias, isto é, rio que canta, rio que grita, em alusão às árvores que, quando fustigadas pelos ventos, produzem silvos semelhantes a gemidos. Olhei, então, para a mata ao redor e vi, nas mãos do herói sem nenhum caráter, a muiraquitã que ele ganhara de Ci e fora roubada por Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente. Como olho saltado do fruto da sapucaia e ostentando o talismã recuperado, Macunaíma me provocava a pesquisar sobre sua gênese na cidade em que nascemos, com diferença de quase três décadas.
Dois anos depois da versão de Araraquara e seis anos depois da Semana de Arte Moderna, o romance foi publicado numa edição paga pelo autor com papel inferior para que a tiragem fosse maior – 800 exemplares. Teve segunda edição em 1937 e a terceira, em 1944, com 3 mil exemplares. Até o fim da vida de Mário, apesar de alguns elogios, não tinha obtido sucesso de público nem da crítica. Em carta ao amigo e escritor Fernando Sabino (1923 – 2004), datada de 16 de fevereiro de 1942, desalentado com a recepção do livro, Mário escreveu: “(...) a vida é uma luta e nesse jogo do Macunaíma perdi de 1 a 0: eu errei. Macunaíma é uma ‘obra-prima’ que falhou”. A partir de 1969, o livro teve novas tiragens anuais, adaptação para cinema e teatro, traduções para o italiano, francês, inglês, alemão, tema de estudos e pesquisas e até de enredo de escola de samba carioca, quando ainda não existia o Sambódromo da Marquês de Sapucaí.
Se estivesse vivo, o polímata – que, quando escrevo esta crônica, estaria completando 130 anos de idade – teria acompanhado, certamente com alegria, a exitosa trajetória de sua obra, em especial o romance parido há 97 anos naquela banheira francesa araraquarense. Macunaíma se tornou alegoria da identidade nacional, celebrado e consagrado como sua mais importante obra de ficção e um clássico de leitura obrigatória. Mário de Andrade, o segundo autor brasileiro mais estudado, conquistou lugar de honra no panteão literário e cultural brasileiro. E a Sapucaia se tornou um inegável legado histórico e cultural da cidade e do País.
Maria Mortatti