“Ler é uma maneira suave de esperar”: com esse conselho do saudoso professor de literatura portuguesa, Jorge Cury (1932 – 2019), iniciei o descanso no feriado. Para prosear e usufruir do direito ao ócio criativo, convidei companheiras da minha biblioteca.
Com O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo (Intrínseca), Irene Vallejo me provocou recordações sobre a invenção do alfabeto, da escrita, do livro, da biblioteca e as extraordinárias transformações na memória, na linguagem, no ato criativo, em nossas relações com o saber e com o passado: “Toda e qualquer sociedade aspira a permanecer e ser lembrada.” (p.) Virei a página e esbarrei n’A ridícula ideia de nunca mais te ver (Todavia), de Rosa Montero, com o diário de Mme. Curie, em que ela dá a conhecer seu luto pela morte do marido Pierre: “Nunca, antes de conhecer-te, eu havia visto um homem como tu e desde então jamais vi um ser humano tão perfeito. (...) A dor é surda, mas segue viva.” (p.) Virei a página e Annie Ernaux me chamou para O acontecimento (Fósforo): “Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior.” (p. ) O livro escorregou-me das mãos e esbarrou em dois outros sobre a escrivaninha: Três novelas femininas (Zahar), de Stefan Zweig, e O cavaleiro inexistente (Companhia das Letras), de Italo Calvino.
Folheando-os, encontrei as instigantes protagonistas: a mulher eternamente apaixonada, de “Carta de uma desconhecida”, do escritor alemão; e Irmã Teodora/guerreira Bradamante, a intrépida personagem narradora da novela de cavalaria às avessas, do cubano-italiano. Aquela é a anônima que deixa uma carta póstuma ao escritor a quem amou a vida inteira, mas de quem ele nunca tomou conhecimento, embora com ela tivesse copulado três vezes, sem a reconhecer: “Nada existia se não estivesse relacionado a você, nada em minha existência fazia sentido se não estivesse ligado a você. (...) Eu estava sempre perto de você, sempre à espera e em movimento, mas você não tinha mais consciência disso do que da tensão da mola no relógio em seu bolso, contando no escuro as horas para você, acompanhando seus passos com um palpitar inaudível e merecendo apenas uma vez em milhões de segundos um olhar apressado seu.” (p. 107) A outra é Teodora, que me acolheu em sua clausura: “Escrevo no convento... me cabe representar a maior loucura dos mortais, a paixão amorosa ... o que não sei trato de imaginar... Aqui no convento, a cada uma se dá a sua penitência, seu modo de ganhar a salvação eterna. A mim tocou esta de escrever histórias: é dura, muito dura. Lá fora, é um verão ensolarado... Eu também poderia estar lá no meio, e em boa companhia, com meus jovens pares, algumas criadas e flâmulas. Mas a nossa santa vocação quer que se anteponha às alegrias perecíveis do mundo alguma coisa que permaneça... De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.” (p. 61)
Quando me dei conta, o feriado já se dissipava. Essas mulheres tinham me envolvido num turbilhão de palavras, folhas desordenadas, páginas reviradas. Não resisti: terminei o dia registrando no teclado alfanumérico do computador as suas-minhas histórias, por hábito ou penitência ou vocação ou desejo de permanência. Quando a noite findava, Borges me alertou: eu já tinha escrito, à la Pierre Menard, umas noventa e nove linhas de minha "Carta de Teodora à mulher desconhecida". Foi então que, revelando-se como a guerreira Bradamante, Irmã Teodora me chamou à sensata realidade. Apaguei minha atrevida novelinha e virei a página em busca do reino a ser conquistado: “Livro, agora você chega ao fim... Quando vim me trancar aqui estava desesperada de amor por Agiulfo [o cavaleiro inexistente], agora queimo pelo jovem e apaixonado Rambaldo. Por isso, minha pena se pôs a correr. Corria ao encontro dele; sabia que não tardaria a chegar. A página tem o seu bem só quando é virada e há vida por trás que impulsiona e desordena todas as folhas do livro. ... De narradora no passado, e do presente que me tomava a mão nos trechos conturbados, aqui está, ó futuro, saltei na sela de seu cavalo. Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado, você, precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser conquistado, futuro...” (p. 114-115)
Quando finalmente o feriado chegou ao fim, mirei o futuro, virei a página e anotei o conselho daquelas mulheres: escrever o vivido é uma maneira dura, muito dura, de aspirar ao infinito. E sem nenhuma garantia de que o amor seja imortal e a alma se salve.
Maria Mortatti