A escritora e acadêmica Anna Maria Martins (1924 – 2020) lutou como uma mulher! Não me recordo o ano. Talvez 1992, quando, na época, trabalhávamos na indicação do escritor e crítico literário Fábio Lucas para o Prêmio Intelectual do Ano – Troféu Juca Pato, prêmio anual, conferido pela UBE – União Brasileira de Escritores. Outro dia, entrei em contato com sua filha, a escritora Ana Luísa Martins, na esperança que me ajudasse a lembrar o ano do acontecido. Ana Luísa, assustadíssima, disse-me: “Nossa, João, precisamos conversar e você me contar essa história! Típica da minha mãe. Ela deve ter escondido de mim (...).” Atendi, então, ao pedido e resolvi contar a história. Guardo-a desde a sua morte, em 26 de dezembro 2020. Era uma quarta-feira, certeza disso, dia de reunião de diretoria da UBE e, também, de uísque com pastel de queijo, no Bar do Franco, na Rua 24 de Maio, 250, 13º. andar, a poucos metros da Praça da República, no centro da capital paulista. Anna Maria Martins entrou agitada, eufórica e elétrica na sala de reuniões da entidade: “Scortecci, eu cometi um ato de loucura! Algo terrível! Não acredito que fiz isso! Não sei o que na hora passou na minha cabeça!” Resfolegou. Sentamo-nos, então. Calma! Água?”. Estava transtornada, com o pescoço vermelho – talvez ferido – e a maquiagem do rosto borrada. “O que aconteceu?” Perguntei-lhe. Anna começou, então, a falar: velozmente e misturando as palavras, fora do seu comum, de fala mansa, tranquila, pausada e lúcida. “Estava parada no semáforo, vindo para a UBE, quando, do nada, um marginal invadiu o carro pela janela do passageiro, agarrou-me pelo pescoço e tentou roubar o meu colar!”. “Levou o colar?” Quis saber. “Não.” Mostrou-me o colar de pérolas, ainda no pescoço e meio encoberto pela gola da blusa. Continuou: “Atraquei-me com ele e lutamos ferozmente!”. “Anna, ele poderia ter um revólver, uma faca, e ter matado você!” Argumentei. “Eu sei. Mas não sei o que passou na minha cabeça naquela hora! Cometi um ato de loucura! Quero ir embora! Você vai comigo até o estacionamento?” Era comum, após as atividades na UBE, já tarde da noite, que eu a acompanhasse até o estacionamento, que ficava na Praça da República e onde costumava deixar o carro. Fiz isso muitas vezes, escoltando Anna Maria e as escritoras: Ruth Rocha e Lygia Fagundes Telles. Quando penso nisso, até hoje, sinto frio na barriga, tamanha responsabilidade. Anna, antes de entrar no carro e ir embora, indagou-me, mais uma vez: “Scortecci, o que eu fiz?” Respondi: “Você lutou como uma mulher!” Engatou a marcha do carro – um Gol branco, acho - e acelerou. Naquela noite – talvez do ano de 1992 – pude confirmar a força, a coragem e a determinação de Anna Maria Martins. Delicada, guerreira e imortal. No ano de 1989, na Revista Númen, publicação da Scortecci Editora, declarou: “Embora ache que o compromisso precípuo do escritor é para com a literatura, considero que o intelectual não pode permanecer omisso em relação a fatos que estrangulem o ser humano. Mais precisamente, julgo ser a denúncia uma obrigação do escritor, toda vez que um indivíduo for aviltado em seus direitos básicos de sobrevivência. O escritor não se pode calar e jamais pode ser calado. Ele imprime para sua geração e para as posteriores seu testemunho, visão e interpretação dos fatos de sua época.”
João Scortecci