Em As mil e uma noites estão reunidas histórias originadas de tradições orais populares principalmente persas e árabes. Sem autoria definida ou versão definitiva, a obra está organizada em torno da narrativa inicial, funcionando como moldura do conjunto de histórias, que se reproduzem ao infinito. O poderoso sultão Shahriar, depois de descobrir a traição de sua esposa com um escravo, ordenou ao grão-vizir que a executasse e decidiu que a cada noite desposaria uma mulher, mandando matá-la na manhã seguinte. Uma das duas filhas do grão-vizir, Sherazade – inteligente, instruída e culta, que lera e estudara cuidadosamente livros e escritos de toda espécie –, comunicou ao pai sua decisão de ser casar com o sultão. Seu plano para libertar a si e às mulheres do reino era contar histórias durante a noite e, ao amanhecer, interrompê-las no clímax, aguçando a curiosidade do sultão pela continuação. Com suas histórias, habilmente encadeadas e encaixadas uma na outra, em mise en abyme, com temas fantásticos de contos populares, como gênios, bruxas, rainhas, príncipes, mercadores, anedotas, encontros amorosos, fatos obscenos, conquistou a confiança e o amor do sultão, que desistiu de executá-la. Assim, Sherazade sobreviveu por infinitas mil e uma noites e se tornou a única esposa do sultão, salvando-se e às mulheres do reino.
As histórias foram compiladas e difundidas em língua árabe no século IX e se tornaram populares a partir da tradução do livro para o idioma francês, por Antoine Galland, no século XVII, depois para o inglês e alemão, seguindo-se traduções para o russo, italiano, espanhol e outros inúmeros idiomas. Marcadas pelo contexto social e cultural, com supressões de trechos obscenos, recriações e acréscimo de histórias, controvérsias e disputas sobre origem, autoria e autenticidade, as traduções constituem também a história inconclusa do livro, que se tornou um clássico da literatura mundial, com adaptações em livros, cinema, teatro e outras linguagens artísticas, além de muitos trabalhos acadêmicos que analisam diversos aspectos desse livro. No Brasil, no século XIX, foram publicadas traduções indiretas de alguns contos; no século XX, traduções indiretas do livro baseadas na tradução francesa de Galland, seguidas de outras baseadas na tradução francesa de Joseph-Charles Mardrus, como a brasileira por Cecília Meireles, em 1928; e, mais recentemente, tradução brasileira diretamente do árabe, por Mamede Mustafa Jarouche.
A primeira tradução de As mil e uma noites diretamente do original em árabe para o idioma português foi realizada por D. Pedro II (02.12.1825 – 05.12.1891), último Imperador do Brasil, cujo reinado, apesar das polêmicas e controvérsias, foi marcado por vitórias políticas para a nação, por sua popularidade e sua reputação como incentivador e patrocinador das ciências, das artes, da cultura e da educação, tendo conquistado admiração de literatos, cientistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros, com quem manteve estreito contato. Com vocação para “consagrar-se às letras e às ciências”, o polímata Pedro de Alcântara era leitor e estudioso interessado em diversas ciências e apaixonado pelo estudo de línguas – falava e escrevia com fluência latim, francês, alemão, inglês, italiano, espanhol, grego, árabe, hebraico, sânscrito, chinês, provençal e tupi –; também escrevia diários, poesia e traduziu clássicos da literatura universal. Apenas três obras suas foram publicadas: a tradução de Prometeu acorrentado, de Ésquilo, e de Poesia hebraico-provençais do ritual israelita Comtadin, e o livro Poesias, com poemas originais e traduções, dedicado aos netos. Sua tradução de As mil e uma noites foi baseada na edição árabe de Breslau, publicada em 1825 e 1843, com 12 volumes, considerada a primeira versão completa do livro, apesar de pouco confiável em relação aos manuscritos incorporados. Iniciada provavelmente em 1890, a tradução de Pedro II se encerrou (inconclusa) – com apenas 84 noites traduzidas – um mês antes de sua morte em Paris, onde se exilou com a família, após a proclamação da República. Os manuscritos dessa tradução e outros, incluindo seus diários, encontram-se arquivados e preservados no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Não conheço a tradução das Noites do imperador, mas ela me parece familiar. Talvez porque evoque outras histórias encadeadas, fazendo-me imaginar que ele já a estivesse planejando quando de sua visita à minha cidade natal, Araraquara – SP, em 6 de novembro de 1886, exatos 68 anos antes de eu nascer. O grande acontecimento foi noticiado no Jornal do Commercio (RJ), está registrado no Album de Araraquara – 1915 e até hoje é relembrado por memorialistas como marco na história da cidade. Desde sua chegada à estação ferroviária, a população acorreu para aclamar o ilustríssimo visitante. D. Pedro II e sua comitiva percorreram as ruas de paralelepídedos, com calçadas e casas enfeitadas, visitaram igreja, escolas, prédios públicos, o gabinete de leitura – para o qual ele doou 100$000, além de igual quantia para os pobres – e saborearam o magnífico almoço que lhes foi oferecido na casa do Dr. Margarido da Silva, onde as mulheres importantes fizeram sala para a Imperatriz Teresa Cristina. Nesse dia, o imperador também foi homenageado com seu nome em rua principal e com o lançamento do primeiro número do jornal O município de Araraquara. Em 2017, foi homenageado no calendário oficial de eventos do município, com o "Dia do Imperador".
Tantas lembranças me fizeram evocar as leituras de infância de versões de alguns contos e da tradução do livro que li quando adulta. Mas essas são outras histórias para outra crônica, que, em minha versão pessoal de As mil e uma noites, vão se encadeando a cada noite na história inconclusa desse livro infinito.
Maria Mortatti