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DOM QUIXOTE, A ENGENHOSA OBRA DE CERVANTES / MARIA MORTATTI

Obra fundadora do romance moderno no Ocidente, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha) foi escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (29.09.1547 –23.04.1616), filho de um modesto cirurgião e uma nobre empobrecida. O livro foi publicado em duas partes: a primeira, com 52 capítulos, lançada em 1605, foi supostamente escrita durante os anos em que Cervantes passou na prisão, acusado injustamente de desvio de verbas na condição de coletor de impostos em Madri. A segunda parte, com 74 capítulos – em que há referências diretas a várias passagens da primeira — foi lançada em 1615, quando o autor já era reconhecido por seu talento e pelo sucesso da parte inicial do romance, que teve uma versão apócrifa de continuação, denunciada jocosamente na segunda parte de seu romance.  

Dom Quixote representou uma revolução nos padrões literários da época, tanto por parodiar as novelas de cavalaria medievais por meio dos recursos narrativos que nelas se utilizavam, quanto na construção da saga de dois dos personagens mais célebres da literatura ocidental, Dom Quixote e Sancho Pança. Um engenhoso e divertido jogo entre ficção e realidade se encontra na imaginação do protagonista, na história narrada e na forma de narrar, envolvendo também o leitor. O prólogo se inicia com uma bem-humorada ironia/advertência provavelmente sobre a extensão da obra e o necessário tempo de ócio para a leitura: "Desocupado leitor". O narrador informa que se trata de compilação do relato manuscrito de Cide Hamete Benengeli, um historiador árabe muçulmano que, apesar de fictício, é apresentado como o verdadeiro autor da maior parte da obra. Alonso Quijano, um pacato e medíocre fidalgo de 50 anos, lia tantos livros de cavalaria e com tanta afeição, que abandonou seus afazeres e a administração dos bens, vendeu muitos trechos de suas terras para comprar livros e os juntou em sua casa. E assim, de “pouco dormir e tanto ler, se lhe secou o cérebro e chegou a perder o juízo” e decidiu sair pelo mundo como cavaleiro andante para consertar as injustiças. Inventou seu novo nome, Dom Quixote, tratou de ser armado cavaleiro e de conseguir um escudeiro, Sancho Pança – a quem Quixote promete ser governador de uma ilha –, um cavalo, Rocinante, e uma donzela a quem dedicar seus feitos, Dulcineia Del Toboso. Depois de viver muitas aventuras perigosas, contra inimigos que só existiam na sua imaginação, e de ouvir muitos apelos para abandonar suas loucuras, no desfecho da segunda parte da narrativa, Dom Quixote finalmente é convencido de que estava louco, volta para casa e morre.

Desde o lançamento da primeira parte, o livro foi um sucesso. A primeira tradução para o inglês data de 1612. Atualmente, figura entre os 10 livros mais traduzidos no mundo, para mais de 145 idiomas. Em nosso idioma, há duas traduções por portugueses: a primeira dos Viscondes de Castilho e Azevedo, em publicada em Lisboa no final do século XIX – publicada em 1978 no Brasil pela Abril Cultural, como volume n.1 da coleção Obras Primas –, e a de Aquilino Ribeiro, de 1954. A primeira feita por brasileiros é a de Almir de Andrade e Milton Amado, pela José Olympio, de 1958, seguida de outras quatro. Dom Quixote consta também de lista dos 100 livros da literatura que mudaram o mundo, e, em 2002, foi eleito a melhor obra de ficção do mundo, pelos editores dos Clubes do Livro Noruegueses. Teve inúmeras adaptações para crianças e jovens, histórias em quadrinhos, desenhos animados, peças de teatro, musicais e filmes, que contribuíram para popularizar e imortalizar principais episódios do enredo e a dupla de protagonistas. Para isso, contribuíram também ilustrações de importantes artistas, especialmente as produzidas em 1863 pelo mais bem-sucedido ilustrador francês de livros de meados do século XIX, Paul Gustave Doré (1832 – 1883), as quais se tornaram as mais marcantes representações da obra. 

Conheci Quixote – o personagem, nos anos 1960, por volta dos nove anos de idade, lendo uma adaptação em livro infantil de que me lembro muito pouco, exceto que tinha várias ilustrações coloridas, entre elas a da cena da luta do cavaleiro andante contra os moinhos de vento, que me intrigou e fascinou. Quando li a versão integral do romance, na edição da Abril Cultural com 609 páginas e ilustrações de Gustave Doré, reencontrei aquela cena no Capítulo VIII – “Do bom sucesso que teve o valoroso Dom Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordações”. Confundindo trinta ou quarenta moinhos de vento com gigantes, Quixote decide enfrentá-los sozinho e, apesar da advertência de Sancho, ataca um deles e a pá o derruba com seu cavalo. Quando socorrido pelo escudeiro, insiste que não era ilusão sua, mas obra do mago Friston, que tinha transformado os gigantes em moinho para impedir sua glória. Ao vê-lo machucado depois da luta, Sancho o chama de “Cavaleiro da triste figura”, alcunha que muito agradou o amo. A cena do moinho de vento é uma das imortalizadas nos traços de Doré.

Depois, nos anos 1980, durante o mestrado, analisei matrizes literárias da literatura infantil, estudei sobre o autor, a época e a recepção da obra e me detive no Capítulo VI – “Do donairoso e grande exame que o padre e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo”, onde é narrado o episódio da loucura do Quixote causada pelo excesso de leitura. O padre e o barbeiro vão examinando e apontando, com comentários salpicados de ironia, os livros que deviam ou não ser expurgados de sua biblioteca. Os "acusados" foram jogados no pátio e queimados pela ama, cena também ilustrada por Doré.

Nas décadas seguintes, para outras pesquisas sobre história da educação, da literatura e do livro, reli novamente e me detive nas representações da época sobre livro, processos de escrita, impressão e divulgação, leitura, especialmente os narrados e descritos na segunda parte, no Capítulo LXII – “Que trata da aventura da cabeça encantada com outras ninharias que não podem deixar de se contar”. Depois de Quixote e seus acompanhantes passarem por locais inusitados, chegam a uma oficina tipográfica em Barcelona, onde lhe são apresentados detalhes dos processos de impressão, correção, tradução de livros, entre outros. 

"Sucedeu, pois, que, indo por uma rua, levantou os olhos Dom Quixote e viu escrito numa porta em letras muito grandes, “aqui se imprimem livros”; e ficou mito satisfeito, porque nunca vira imprensa alguma e desejava saber como era. Entrou na imprensa com todo o seu acompanhamento e viu num sítio uns homens a fazerem tiragem, noutro as emendas, noutro a comporem e noutro a paginarem, e finalmente aquele maquinismo todo que nas imprensas grandes se mostra." (p. 564)

Com um tradutor que trabalhava ali, Quixote se informou sobre detalhes da atividade da tipografia e da tradução, tais como: que livros alcançavam fama e mereciam ser traduzidos e para que público, se o “privilégio” (direito autoral) era do autor ou vendido a algum livreiro, e o tradutor menciona um livro  impresso por sua conta com tiragem de dois mil exemplares, a seis reais cada um. Ali, Quixote viu também que estavam corrigindo outro livro, cujo título era Segunda parte do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, composto por um cidadão vizinho de Tordesilhas.” (p. 565), e que seria a continuidade apócrifa do seu Quixote. Não há ilustrações de Doré nesse capítulo. Mas uma ideia aproximada de uma tipografia da época pode ser vista no Museu Quixote, em Ciudad Real, Espanha. Uma das salas reproduz o ambiente de uma gráfica de Madri do início do século XVII, época em que foi realizada a primeira impressão do livro de Cervantes.

Depois reli muitas vezes e ainda o releio, na edição da Abril ou em uma edição espanhola comemorativa fac-similar da edição de 1840, em dois volumes. A cada leitura, revela-se novo, inesperado, inédito, com novas gargalhadas, novas anotações em palavras e frases que tinham passado despercebidas anteriormente. 

A ampla repercussão de Dom Quixote de La Mancha gerou uma multiplicidade de interpretações críticas, nem sempre consensuais: exaltação ao idealismo e à amizade, à romântica e obstinada busca de realização de sonhos impossíveis; síntese de um heroísmo fracassado e exemplar; caracterização de um herói da ironia e do niilismo. Certo é que todos os que se aventuram a ler ou reler a obra costumam encontrar menos respostas do que novas e instigantes perguntas, que remetem à grandeza do romance e sua permanência no tempo, justamente por trazer ao centro da cena a condição humana. Para o escritor e ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), autor do enigmático conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, a obra de Cervantes sempre “ganha póstumas batalhas contra seus tradutores”. E nós, leitores, estamos sempre em confronto e ocupados com essa gigantesca e inexaurível obra-prima, que, conforme definição do escritor cubano-italiano Italo Calvino (1923 – 1985), é um clássico: nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Maria Mortatti