Não me lembro exatamente em que circunstâncias conheci a poeta norte-americana Emily Dickinson (Amherst, Massachusetts, EUA, 10.12.1830 – 15.05.1886). Mas não me esqueço deste estonteante poema com o qual nasceram para mim sua obra e sua vida: “A word is dead/When it is said,/Some say./I say it just/Begins to live/That day.” (“Uma palavra morre/Quando é falada/Alguém dizia,/Eu digo que ela nasce/Exatamente/Nesse dia.”) (Trad. Idelma R. Faria, Hucitec, 1986).
De família protestante calvinista e abastada, apesar de ter frequentado escolas para meninas, Dickinson dizia que sua verdadeira educação se deu na biblioteca da família, com William Shakespeare, John Keats, Robert Browning, Alfred Tennyson, Ralph W. Emerson, George Eliot, Elizabeth Barrett Browning e as irmãs Brontë. Não assumiu a fé religiosa e não se casou. Escolheu como forma de vida a reclusão e a poesia. Passava a maior parte do tempo em seu quarto na casa na cidade rural de Amherst, onde nasceu, morreu e onde escreveu a maior parte de seus poemas, tendo convivido apenas com familiares e pessoas próximas, além de amigos e amigas com quem trocou farta correspondência. Entre 1858 e 1862, chegou a escrever obsessivamente, em média um poema por dia, adotou a cor branca para suas roupas e se recusou até a receber visitas. Quando enviou alguns poemas para T. W. Higginson, colaborador de revista Atlantic Monthly, abolicionista e defensor dos direitos das mulheres, ele a aconselhou a não publicar e sugeriu que ela adaptasse seus versos “descontrolados” à ortodoxia das regras de ritmo e metro dos ideais românticos da época e, indiretamente, às regras que definiam o lugar social e cultural da mulher. Inflexível em seus princípios poéticos, Dickinson não concordou com o julgamento e, durante a vida, apesar de ter mostrado alguns a familiares e amigos, publicou apenas 7 ou 8 poemas (alguns anonimamente) e uma carta. Após sua morte, com 56 anos de idade, em decorrência de nefrite, familiares encontraram, além de uma profusão de cartas – extensão de sua obra poética –, cerca de 1.800 poemas, entre eles 40 fascículos – livretos costurados à mão – nos quais estão mais de 800 poemas.
Pela originalidade de sua lírica moderna, com poemas sem título, marcados pela concisão, versos livres, rimas predominantemente toantes e intenso labor formal, tratando com ironia e densidade de temas triviais e transcendentais, como a morte, a solidão, o amor, o arrebatamento, a fé religiosa, dando voz às experiências humanas e a seu mundo interior, transformando pensamento em poesia, Dickinson, que era considerada pelos contemporâneos estranha e excêntrica, conhecida em sua comunidade como “A grande reclusa” e o “Mito de Amherst”, foi também inovadora, ousada e determinada, transgredindo padrões literários, culturais e sociais.
E foi justamente Higginson – que em 1862 aconselhara Dickinson a não publicar seus poemas e com quem ela manteve correspondência até o final da vida – que, em 1890, após a morte da poeta, publicou parte de sua obra em Poems and letters (1890), coorganizado por Mabel Loomis Todd, com imediato sucesso popular. Após disputas familiares, em 1914 foi publicada outra edição, elogiada por críticos literários, tendo contribuído para o reconhecimento e o interesse crescente por sua obra também em outros países, nas décadas iniciais do século XX, quando se disseminava o movimento modernista. Somente em 1955, porém, foi publicada uma edição com sua obra poética completa, seguindo-se outras publicações, com enfoques em alguns aspectos, como os manuscritos originais. No Brasil, o poeta Manuel Bandeira foi um dos primeiros tradutores de Dickinson. Em 1928, traduziu “Beleza e verdade” – título inexistente no original – e, nos anos 1940, traduziu outros quatro poemas. Ao longo do século XX, ela foi se tornando conhecida e celebrada com outras traduções, como as de Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles – que fez a segunda e uma das melhores traduções do poema “I died for Beauty” ("Eu morri pela beleza”) –, além das contidas em textos de críticos literários e em antologias comemorativas do centenário de seu nascimento. Como aquele poema – hoje com mais de duas dezenas de traduções –, que inicialmente ouvi em conversa com amigos e depois encontrei em antologias publicadas nos anos 1980 e seguintes.
A obra da fascinante poeta que fez de sua vida cotidiana a poesia, de sua casa um santuário poético e que de seu quarto avistou e alcançou o mundo, está preservada em textos e imagens no Emily Dickinson Museum disponível na internet para visita virtual. Seu legado poético recomeça a viver todo dia em que sua palavra é dita, ouvida ou lida. Eu digo também: justamente nesse dia. E todos os dias em que, com estas mãos que ela não pode ver, abro seus livros e recebo sua “carta para o mundo”: “This is my letter to the World/That never wrote to Me – /The simple News that Nature told – /With tender Majesty//Her Message is committed/To hands I cannot see – /For love of Her – Sweet – countrymen – /Judge tenderly – of Me.” (Em tradução livre: “Esta é minha carta para o mundo/Que nunca escreveu para mim – /As simples notícias que a natureza conta – /Com suave majestade//Sua mensagem, eu a confio/A mãos que não posso ver – /Por amor a ela – doces – conterrâneos – /Julguem-me ternamente”).
Maria Mortatti