Meu primeiro encontro com Dante Alighieri (1265 – 14.09.1321) e sua obra-prima, A divina comédia (1321), aconteceu em meados do século XX, pelas mãos do pintor, gravador, escultor e desenhista francês Paul Gustave Doré (06.01.1832 – 23.01.1883), um dos mais bem-sucedidos ilustradores de livros em meados do século XIX.
Com 15 anos de idade, Doré publicou seu primeiro álbum de desenhos. Nas três décadas seguintes, colaborou em jornais e revistas, criou esculturas, quadros e mais de 9 mil gravuras para as 3 mil edições de obras da literatura ocidental. Segundo Dan Malan, seu biógrafo, Doré teve uma vida próspera, ganhou muito dinheiro com suas ilustrações, conquistou reconhecimento e fama e teve romances com as mulheres mais famosas do século XIX, como a atriz Sarah Bernhardt e a cantora lírica Adelina Patti. Ilustrou livros até sua morte, em Paris, em 1883, com 51 anos e pobre, deixando incompletas as ilustrações para uma obra de Shakespeare.
Gustave Doré, o ilustrador mais prolífico e popular de todos os tempos, destacou-se com a xilogravura. Esboçava os desenhos, e o entalhe em madeira era feito por uma equipe de aproximadamente 40 gravadores para serem reproduzidos, com tinta e prensa em papel, possibilitando também reprodução em escala. Alguns dos gravadores assinavam as ilustrações com Doré.
Entre as obras literárias que ilustrou, encontram-se edições francesas e inglesas de clássicos da literatura ocidental, como: A divina comédia, de Dante Alighieri; poemas de Lord Byron; Gargântua e Pantagruel, de Rabelais; “Contos jocosos”, de Balzac; Nouveaux contes de fées, de Condessa de Ségur; Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes; Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo; Münchhausen, de Gottfried A. Bürger; Fábulas, de Jean de La Fontaine; “O Corvo”, de Edgar A. Poe; Paraíso perdido, de John Milton,; "A balada do velho marinheiro", de S. T. Coleridge; os contos “Barba-Azul”, “Cinderela”, “Gato das Botas”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Pequeno Polegar”, de Charles Perrault. Ilustrou também a Bíblia, em edição inglesa, e foi contratado, a convite do jornalista inglês Blanchard Jerrold, para ilustrar o livro Londres: uma peregrinação. Esse livro e a Bíblia foram um sucesso de vendas na Inglaterra, valorizando ainda mais seu trabalho e rendendo muito dinheiro.
Com sua intensa e ágil forma de trabalho e com seu talento e paixão em recriar a forma humana, dando corpo à imaginação dos escritores e conteúdo ao imaginário dos leitores, Doré estabeleceu o padrão para a expressão artística dos clássicos literários. As imagens que criou para os personagens influenciaram leitores, artistas, diretores de teatro e cinema. Muitas pessoas não sabem de sua existência nem de seu nome, mas suas gravuras estão em todos os cantos, como os emblemáticos Quixote e Sancho Pança, e, para mim, também as inesquecíveis figuras humanas de A divina comédia.
Dividida em três partes – "Inferno", "Purgatório" e "Paraíso" –, cada uma com 33 cantos, mais a introdução, o poema dantesco é composto por 100 cantos, com 4.233 versos. A primeira edição foi publicada em Florença, em 1481, ilustrada com xilogravuras feitas com base nos desenhos do aclamado pintor florentino renascentista Sandro Botticelli (1445-1510), autor de célebres obras, como "Nascimento de Vênus". Quase 400 anos depois, com aproximadamente 25 anos de idade, Doré começou a trabalhar nas ilustrações do "Inferno". Não encontrando editor disposto a publicar, pagou com recursos próprios e a obra foi publicada em 1861, com grande sucesso. Em 1868, terminou as ilustrações do Purgatório e do Paraíso e publicou a obra completa com todas as ilustrações.
No Brasil, uma das primeiras traduções integrais de A divina comédia, mantendo os tercetos dantescos, é a do poeta José Pedro Xavier Pinheiro (1822 – 1887). Ao ler a tradução do Canto XXV do "Inferno", feita por Machado de Assis e publicada em 1874, no jornal O Globo, o poeta a elogiou pessoalmente em encontro com o escritor-tradutor e foi por ele incentivado a traduzi-la inteira. Xavier Pinheiro trabalhou intensamente durante os sete anos seguintes, mas faleceu sem ver a tradução publicada. Seu filho, Jacintho Ribeiro dos Santos, depois de muito empenho, conseguiu publicar os três volumes em 1907, com segunda edição pela Typ. da Empr. Litter. E. Typographica, em 1916, na qual inseriu as ilustrações de Doré. Essa tradução foi reeditada em 1958, pela Gráfica e Editora Edigraf Limitada (SP), em volume único com 350 páginas e 136 gravuras em preto e branco do ilustrador francês, em edição de luxo, formato 24 cm x 32 cm, lombada vermelha, capa dura ilustrada em cores, com o busto de Dante ao centro, circundado por detalhes de ilustrações internas. Essa versão é a mais conhecida e, talvez, a mais lida, estando disponível na internet em domínio público.
Uma de minhas tias, professora primária, comprou um exemplar dessa reedição de 1958 e o mantinha bem guardado na prateleira inferior da estante de livros que ficava na sala de jantar de sua casa. As prateleiras tinham tampo basculante de vidro transparente, deixando os livros vivíveis e disponíveis, exceto aquela com tampo de madeira, fechadura e que estava sempre trancada. Por volta de 1961, com seis/sete anos de idade, encontrei-a semiaberta e, não havendo nenhum adulto por perto, vasculhei seus segredos, com excitante curiosidade. Foi, então, que aquele livro enorme e pesado, de lombada vermelha e capa dura me chamou e não resisti. Com as mãos trêmulas e o coração disparado, peguei-o cuidadosamente, sentei-me no chão, aconcheguei-o entre as pernas cruzadas e comecei a folheá-lo com a ansiedade de iniciante em leitura. Mas não tive tempo de me deter nas palavras. Nas ilustrações em tons de preto e branco, sombrias e assustadoras, vi pela primeira vez, nos cantos do "Inferno" e com detalhes até então inimagináveis, corpos nus de homens e mulheres, expressões de terror e cenas de castigos cruéis. Detive-me em algumas, observando os detalhes, e fechei-o, apressada, antes que fosse flagrada com o livro proibido. Voltei outras vezes, mas, talvez com a curiosidade momentaneamente satisfeita, acabei me esquecendo dele. Lembrei-me anos depois, quando comprei um exemplar em edição de bolso, bilíngue, pela Ediouro, e lá estava aquela tradução de Xavier Pinheiro com as ilustrações de Doré.
Foi assim que desvendei o que nunca tinha sido um segredo. Mesmo sem saber que tinha em mãos uma obra-prima do célebre poeta fundador da língua italiana e com as gravuras do talentoso e mais bem-sucedido ilustrador francês, aquele furtivo primeiro encontro da menina com Dante conduzida pelas mãos de Doré deu corpo e conteúdo à imaginação e marcou indelevelmente minha formação estética e erótica. Outras edições de A divina comédia me chegaram às mãos, algumas sem ilustrações, infelizmente. Mas aquela obra rara – que consegui reaver tempos depois do falecimento de minha tia – ocupa lugar nobre e bem visível na estante de minha biblioteca. Dante sempre ao alcance dos olhos e das mãos.
Maria Mortatti