Entre as formas de adaptação de obras literárias para novo meio ou linguagem, como a roteirização para teatro e cinema ou mesmo a modificação do texto, simplificando-o ou reduzindo sua extensão, para adequá-lo a novas finalidades, funções e público previsto, encontram-se aquelas destinadas a crianças e jovens. Essa prática está na origem da literatura infantil, nos séculos XVII e XVIII na Europa. Com finalidades pedagógicas, culturais e editoriais de adequação às características de novo público leitor então emergente, as crianças – burguesas –, esse tipo de literatura estava associado ao contexto de transformações políticas e sociais do período, como a expansão da alfabetização e da escola, os avanços na pedagogia, a disseminação do livro impresso e novo conceito de infância. Originada do latim “infantia” – “meninice”, “dificuldade em explicar-se” – e “infans” – “mudo”, “que não fala” –, a palavra “infância” começava a ganhar novo sentido na modernidade europeia, já não mais designando um “adulto em miniatura”, mas um ser em formação, que necessitava ser educado e instruído,
Esse gênero literário recente na história ocidental se constituiu a partir de duas principais fontes: histórias da tradição oral, transcritas e compiladas – como as de Charles Perrault (1628 – 1703), na França, considerado o “pai da literatura infantil”; Jacob (1785 – 1863) e Wilhelm (1786 – 1859) Grimm, na Alemanha; e Hans Christian Andersen (1805 – 1875) na Dinamarca, um dos primeiros a criar textos especificamente para crianças; e textos escritos originariamente para adultos, selecionados e adaptados, como uma forma de censura – controle, restrição, proibição, expurgo, conforme critérios e preceitos morais, religiosos ou políticos – por parte dos que tinham a incumbência de educar, colocando a forma agradável dos textos, como biografias de santos, fábulas, contos e romances de cavalaria, a serviço do útil, os ensinamentos morais e a formação religiosa.
Modelo de adaptação desse tipo foram as edições francesas “Ad usum Delphini” (“Para uso do Delfim”), expressão latina que designa a coleção de clássicos gregos e latinos destinados à educação de Luís de Bourbon (1661 – 1711), primogênito e herdeiro do rei Luís XIV da França. A coleção foi realizada e editada sob a supervisão dos eclesiásticos Pierre Daniel Huet (1630 – 1721) e Charles de Saint Maur, duque de Montausier (1610 –1690), responsáveis pela educação do príncipe herdeiro da França. A coleção com 64 volumes, criados entre 1670 e 1698, era composta de textos clássicos, como os de Homero, Aristófanes, Plauto, Terêncio, Ovídio, Juvenal, e do Antigo Testamento, entre outros – que foram censurados/expurgados de passagens consideradas inadequadas, inconvenientes ou escandalosas para a educação do Delfim. Escritos em latim, com a contribuição de 39 estudiosos, os volumes continham a inscrição “In usum serenissimi Delphini”, incluíam paráfrase nas margens ou abaixo em prosa latina mais simples, notas extensas sobre palavras e linhas específicas, principalmente sobre história, mito, geografia ou ciências naturais, e índices. Os textos foram reimpressos e utilizados também em escolas da época, e o modelo de educação desse novo tipo de livro reservado a público aristocrático se disseminou para outros países da Europa e para os Estados Unidos da América do Norte. A coleção se tornou popular também entre leitores interessados em literatura clássica, e muitos volumes foram reimpressos várias vezes até meados do século XIX.
Por analogia, a expressão “Ad usum Delphini” passou a ser utilizada em referência a textos que foram censurados/expurgados por conterem passagens consideradas impróprias para crianças e jovens – prática comum também nesse tipo de produção por brasileiros, a partir do século XIX – ou para indicar, com sentido pejorativo, qualquer obra expurgada de passagens consideradas reprováveis ou, ainda, simplificada e “mutilada” para atender a interesses comerciais ou pedagógicos, entre outros. Prática semelhante, conhecida como “edição bowdleriana”, foi utilizada pelo médico inglês Thomas Bowdler (1754-1825), que, em 1818, editou a coleção infantil The Family Shakespeare, omitindo tudo o que, em sua a opinião, “pudesse causar justa ofensa à mente religiosa e virtuosa” ou não era “correto para ser lido por um cavalheiro em frente de uma senhora”. Por extensão, evocam a prática contemporânea de censura, por parte de editores, dos chamados “conteúdos sensíveis” em obras literárias para crianças, jovens e adultos, seja por meio do “cancelamento”/“apagamento” do autor, seja por meio da supressão ou reescrita/"retoque" de trechos considerados reprováveis ou preconceituosos em relação, por exemplo, a gênero, etnia ou raça, como vem ocorrendo com livros da escritora britânica Agatha Christie (1890 – 1976) e do escritor brasileiro Monteiro Lobato (1898 – 1948).
Maria Mortatti