Foi no final dos anos 1960, na biblioteca pública que descobri Lygia Fagundes Telles (19.04.1918 – 03.04.2022). Nosso primeiro encontro foi com Ciranda de Pedra, publicado em 1954, ano em que nasceu seu único filho, o cineasta Goffredo Telles Neto. O mesmo ano em que nasci. Talvez a coincidência tenha me influenciado na leitura desse “romance de formação” que exerceu sobre mim encantamento e profundo impacto. Acompanhar a jornada de autoconhecimento da protagonista Virgínia contribuiu para a leitora adolescente nomear e dar forma escrita à profusão de sentimentos na busca de identidade em meio a relações familiares conflituosas. Nos anos e décadas seguintes, fui comprando e lendo outros romances e contos de Lygia, que me acompanham até hoje. Quando soube de seu falecimento, foi inevitável buscá-la nas estantes da biblioteca para rememorar nossos encontros, folheando, relendo trechos e anotações que fiz em cada momento da vida. Depois do daquele “primeiro livro” lido na adolescência, retomei Verão no aquário (1964) e reencontrei a jovem Raíza e sua relação conflituosa com a mãe, escritora reclusa, como alegoria do mundo limitado e sufocante em que vivem as personagens, provocando-me à busca das necessidades e possibilidades de confrontar a interdição aos anseios de liberdade e rompimento das paredes do aquário. Depois, foram As meninas (1973) – Ana Clara, Lia e Lorena – a me chamarem com suas vozes de jovens universitárias, misturando-se e encadeando-se nas visões distintas das relações afetivas e familiares e tensões políticas daquele período da ditadura militar no Brasil. Ouvi, então, a frase “– Entendi. Entendi tudo – ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu”, do protagonista de “O menino”, conto do livro Antes do baile verde (1970), e o impacto da revelação de algo que, embora já intuído, não se podia, até então, nomear, talvez por não ter se completado o tempo para a compreensão inevitável da infância perdida, representada com tanta beleza e concisão. Repentinamente, o menino e as meninas iluminaram a leitura longínqua do romance As horas nuas (1989) e do conto “Boa noite, Maria”, do livro A noite escura e mais eu (1995). No romance, a protagonista Rosa Ambrósio, atriz decadente acompanhada de seu gato, vivendo só e infeliz, revive na lembrança suas paixões, seus fracassos, num balanço de vida com encontros e desencontros, num enredo sem começo nem fim. No conto, a estonteante descrição da solidão da protagonista Maria, uma mulher de 65 anos, seus sonhos e frustrações, seu amor por um homem mais novo, e o desfecho em eutanásia. Assustei-me, confesso. Quando, há cerca de três décadas, li As horas... e “Bom dia...”, talvez não tenha conseguido compreender as impactantes sutileza e sensibilidade com que Lygia aborda também o envelhecimento e a solidão. Continuei a folhear outros livros seus e, aos poucos, fui me reencontrando com a grandeza de sua obra e, ao mesmo tempo, com seu lugar na vida desta leitora. Ao final de algumas horas de inquietantes reencontros, compreendi que por meio da leitura da obra de Lygia, eu fui nomeando e configurando momentos de minha história de formação humana e estética. Não apenas porque de certo modo eu me reconhecia nas protagonistas femininas e nos enredos que ela criou, mas sobretudo porque me fez compreender, talvez agora com um pouco mais de clareza, as coisas estranhas, insondáveis e aconchegantes que ela escreveu e estão guardadas na memória do coração. O primeiro impulso foi, então, agradecer-lhe por tantas mulheres a quem deu vida, voz e vez, como Virgínia, Raíza, Ana Clara, Lia, Lorena, Rosa e... Maria, e, por meio delas, ter me recordado a cada momento que “o ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável” e "o amor é indisciplinado só na aparência, na casca... lá nas profundezas ele é de uma ordem e de uma harmonia só comparável à abóboda celeste." Mas logo veio a angústia de constatar que, por mais que desejasse, muito pouco poderia dizer ou acrescentar, com apenas nossa intimidade de leitura, ao que já se disse e ainda se pode e deve dizer sobre a obra e o legado da longeva “dama da literatura brasileira”, cujo inegável reconhecimento em vida – aclamada por leitores e críticos literários, com livros traduzidos para vários idiomas, laureada com todos os prêmios importantes do Brasil e com o Prêmio Camões –, culminou com sua indicação – a primeira de uma escritora brasileira – para o Nobel de Literatura. E foi então que, num lapso da imobilização entre desejo e angústia, ela me despertou com uma saudação de esperança: “Bom dia, Maria! É hora de continuar!”. E complementou: “É mesmo verdade que a arte é a negação da morte. Através da arte você consegue não negar a morte propriamente, mas consegue, como um cavaleiro, pular o obstáculo — este, enorme — e continuar." Tudo tem o seu tempo e há tempo para tudo. Seis décadas se passaram desde aquele primeiro encontro. Entendi quase tudo. Apesar das limitações, é tempo de lutar “com as palavras” para ao menos retribuir – com um pedido de perdão pelo modesto e atabalhoado fluxo de lembranças – aos que saem de braço dado conosco em noites e dias escuros. Bom dia, Lygia!
Maria Mortatti