Denis Diderot (05.10.1713 – 31.07.1784), proeminente pensador do racionalismo do Século das Luzes, esteve à frente de um movimento de ideias que abriram caminho para a Revolução Francesa e fundamentaram a modernidade filosófica, política, científica, literária e artística ocidental. Consagrou-se como grande filósofo e escritor que fez da literatura seu ofício, além de editor de algumas de suas obras, financiadas com os escassos recursos próprios. Com 31 anos de idade, iniciou-se no mundo das letras como tradutor. Em 1847, foi preso após a publicação de Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient (Carta sobre os cegos para uso por aqueles que veem), o que contribuiu para torná-lo conhecido. Escreveu e publicou ensaios filosóficos, artigos de crítica, romances, diálogos, peças de teatro, contos, fábulas. Foi também idealizador, editor – com Jean le Rond D'Alembert – e colaborador/autor de vários verbetes da sua obra mais famosa Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (Enciclopédia, ou dicionário racional das ciências, artes e profissões). Com o objetivo de "mudar a maneira como as pessoas pensam" e buscando resumir todo o conhecimento humano disponível até então o projeto reuniu os principais pensadores iluministas da época, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu. A obra – que rendeu glória para os autores e fortuna para os editores – foi iniciada em 1850 e finalizada em 1772, com a publicação dos últimos dos 28 volumes, após a morte de Diderot, por ataque de aplopexia, cinco meses depois da morte da amante, Sophie Volland.
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DIDEROT E O COMÉRCIO DO LIVRO NO SÉCULO DAS LUZES / MARIA MORTATTI
Em 1763, com 51 anos de idade e já consagrado como filósofo e escritor, Diderot escreveu a famosa Lettre sur le commerce de la librarie (Carta sobre o comércio do livro). Dirigida a Antoine Gabriel de Sartine, Diretor do Ofício de Livreiros, em Paris, a carta (em forma de memorial) foi encomendada pelo editor André Le Breton, síndico da comunidade dos livreiros parisienses. Após revisão e "ajustes" feitos por Breton – principal editor da Enciclopedia –, a carta circulou entre a comunidade de livreiros, mas o texto original de Diderot só foi publicado em 1861.
Considerando a Carta como um "um excerto sobre a liberdade de imprensa", em que "expõe a história dos regulamentos do mercado livreiro" e o que deve ser conservado ou suprimido, Diderot apresenta e discute questões relativas à política literária, como o direito de cópia e de propriedade literária, esclarecendo as práticas do mercado editorial então vigentes, como ele sintetiza no título original: Carta histórica e política endereçada a um magistrado sobre o comércio do livro, sua condição antiga e presente, seus regimentos, seus privilégios, as permissões tácitas, os censores, os vendedores ambulantes, a travessia das pontes do Sena e outros temas relativos à política literária.
Os livreiros parisienses assumiam, na época, a função de editores e por vezes também de impressores, definindo-se o livreiro-editor ou gráfico-editor pelo seu comércio. Esse novo tipo de atividade se constituiu a partir do século XVI com a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg, que facilitou a edição e a difusão da publicação impressa e em escala – em gradativa substituição à manuscrita, com número limitado de cópias – e se disseminou associadamente a outras mudanças políticas, sociais e culturais, em contexto em que mais pessoas começavam a se alfabetizar, tornando-se potenciais leitores. Novas e mais rentáveis formas de comércio despertaram o interesse dos editores por adquirirem obras originais e garantirem a proteção por meio dos “privilégios” vigentes, sob a forma de uma autorização de direito exclusivo e perpétuo concedida pelo rei para publicarem as obras adquiridas dos autores.
A motivação mais imediata da encomenda feita a Diderot foi a preocupação dos livreiros franceses com a possível anulação ou supressão de seus privilégios editoriais, após decisão do Conselho Real, em 1761, concedendo às descendentes de Jean de La Fontaine o privilégio das edições de suas Fábulas. Preocupavam-se também com os efeitos da lei inglesa de 1710, o Copyright Act, considerada a primeira que estabeleceu a garantia do direito individual sobre uma obra impressa.
Diderot defende o argumento que o autor é dono de sua obra e a considera um bem alienável. O livreiro-editor tem, portanto, o direito de adquiri-la e se torna também ele proprietário da obra. Segundo Roger Chartier, em A aventura do livro do leitor ao navegador, Diderot compreendeu esse “caminho tortuoso” e “(...) em lugar de aparecer, como de hábito, como arauto das liberdades e ao mesmo tempo como homem hostil aos monopólios e privilégios, ele se faz defensor dos privilégios das livrarias. Ele compreendeu que podia incorporar nessa estratégia de defesa dos livreiros – não obstante fossem bem maldosos com ele – a afirmação, altamente reivindicada, da propriedade do autor sobre sua obra. Assim, ele utiliza a argumentação dos livreiros-editores, para dela fazer o próprio fundamento da reivindicação do autor-proprietário.”
Escrita há 260 anos e publicada quase cem anos depois, a Carta sobre o comércio do livro – pela pena de Denis Diderot – contribuiu decisivamente para a definição de uma política literária, na qual se ressaltava a figura do autor-proprietário fundada na teoria do direito natural e na estética da originalidade, iluminando debates posteriores até os dias atuais sobre a relação entre escritores, editores e livreiros e proteção do direito do autor e editor, a fim de garantir a autenticidade da obra e segurança de uso em todas as formas (escritas, visuais, sonoras), suportes materiais, modos de ler e outros temas relativos à politica literária e cultural.
Maria Mortatti