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“ELA EXISTE!” – SOBRE MORTE E RESSURREIÇÃO DO AUTOR / MARIA MORTATTI

"Gosto demais dos seus textos e da sua forma de falar sobre momentos históricos da alfabetização. (...) Encontrei muito apoio nos seus textos. Quando te encontrei na live, fiquei muito feliz. E pensei: nossa que máximo, ela existe! Rsrsrs Quando fazemos pesquisas, algumas vezes temos a inocência de que os autores que buscamos e nos debruçamos pra ler, estão só nas escritas textuais. (...) Quem sabe um dia eu tenha a oportunidade de te conhecer pessoalmente?" 

Quando recebi essa espontânea e tocante mensagem da professora R., lembrei-me da “noção de autor”, tema recorrente no debate contemporâneo sobre os desafios representados pelas transformações nos processos de criação, produção, edição, impressão, distribuição, circulação, mediação e leitura de textos. 

Entre os anos 1960 e 1970, a crítica à noção de autor ganhou rapidamente visibilidade e repercussão, com as provocativas reflexões dos filósofos franceses Roland Barthes (1915 – 1980) e Michel Foucault (1926 – 1984). No ensaio A morte do autor (1967), Barthes declara: “a morte do autor é o nascimento do leitor”; o autor “perde toda identidade, a começar pelo corpo que escreve”, e o leitor nasce como lugar-destino onde “se reúne a multiplicidade de escrituras” de um texto. Na conferência O que é um autor? (1969), Foucault problematiza a noção de autor, “momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, da literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências”, que, com a noção de obra, forma a “unidade primeira, sólida e fundamental”. 

Obviamente, a crítica de ambos se refere não ao escritor/“scriptor”, a pessoa que escreve, mas à figura do autor como indivíduo real, exterior ao texto em si, constituída nos séculos XVIII e XIX na Europa, associada à modernidade europeia e a uma visão individualista decorrente de mudanças tecnológicas, políticas, econômicas, filosóficas e estéticas com impactos nas relações sociais e culturais, desde o século XVI, como a invenção da prensa de tipos móveis, a revolução industrial, o capitalismo, o liberalismo, a filosofia da subjetividade, a estética do Romantismo – com o mito do gênio criador de obra original e o “biografismo” na crítica literária –, o estabelecimento de uma política literária com normas jurídicas relativas ao direito autoral e ao comércio do livro. Criticando essa tradição de atribuir à pessoa do autor e sua intenção a fonte de sentido da obra, Barthes destaca o nascimento do leitor também como fonte de sentido do texto e Foucault propõe a função autor como enunciador de discurso e “princípio de uma certa unidade da escrita”.

A noção de autor que ambos formularam provocativamente, há já quatro décadas, certamente hoje, na Era Digital, comporta outros e mais complexos desafios, devido às talvez então inimagináveis e aceleradas mudanças provocadas pelo advento da internet, mídias sociais, publicações em suporte digital e dispersão de cópias de um texto sempre aberto a múltiplas apropriações em sua multiplicidade de formas cada vez mais difíceis de apreender. Desde o final do século XX, a "revolução do texto eletrônico", nas palavras do historiador francês Roger Chartier, produz um passo suplementar na desmaterialização e a descorporalização da obra, a que estão associadas sua identidade específica e as noções de imitação, plágio, empréstimo. No início deste século, os avanços da Inteligência Artificial, com seus robôs treinados para produzir textos do tipo "redação nota 700 do ENEM", por meio de cópia-compilação de conteúdos disponíveis na internet, como uma “biblioteca sem muros” e obra sem autor , nem sempre sob “domínio público”, provocam também uma série de perplexidades, questionamentos, críticas e reações de proteção ao direito de autores e editoras, buscando-se aprimorar e adaptar a legislação para proteger a obra – em todas as formas (escritas, visuais, sonoras), suportes materiais e modos de ler –, a fim de garantir sua autenticidade e segurança de uso, como as licenças CopyleftDigital Right Management Creative Commons.  Talvez estejamos presenciando e também participando daquele “anonimato do murmúrio” prenunciado por Foucault: “Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do murmúrio.”

Não sei se a professora R. conhece os debates em torno da morte do autor e nascimento do leitor como partícipe na atribuição dos sentidos de um texto, mas sua mensagem contém a experiência viva da questão da autoria e da leitura. Ela não conhecia a “scriptora”, mas pôde ler e atribuir sentido aos textos que leu. Sua descoberta da “existência” – virtual – da autora empírica provavelmente não alterou de modo radical o conteúdo e a forma de ler. Talvez tenha acrescentado um rosto – espero que simpático, ao menos – que configure a voz que lhe fala nos textos. A função leitor não é uma decorrência natural de um texto a ser sacralizada, meramente substituindo-se a tirania do autor pela tirania do leitor. A multiplicidade limitada dos sentidos de um texto se encontra nos diferentes aspectos de sua configuração, envolvendo autor, leitor, motivos e finalidades, conteúdo, forma e suporte material, contexto e condições de produção, circulação e leitura. 

É esse enigma do texto que está representado na densa brevidade da mensagem da leitora autora. Porque ela aceitou ser escolhida e se deixou tocar pelos textos desta autora, porque teve ouvidos para ouvir, olhos para ler silenciosamente e palavras para compartilhar o prazer de ler – o “milagre fecundo de comunicação no seio da solidão” (Proust) –, reunindo a multiplicidade de escrituras e leituras de meus textos, R. me fez "ressurgir dos mortos” e existir para si, também como autora empírica e, agora, sua leitora. Sou lida. Logo, existo! Ela também.

Maria Mortatti - 04.04.2023