A palavra “marginalia” – de origem latina, relacionada com margem/borda – designa o conjunto de anotações manuscritas, à tinta ou a lápis, nos espaços em branco de um livro. Embora essa prática seja antiga, a fixação do termo com esse sentido é atribuída ao poeta, ensaísta e crítico literário inglês T. S. Coleridge (1772 – 1834), que fez anotações, de modo intenso e sistemático, na maioria dos livros que leu, tendo-se tornado referência no assunto. No século XIX, a palavra e vocábulos correlatos – como “marginal” e “marginalidade” – derivados daquela mesma raiz latina, passaram a ser utilizados em sentido figurado, com acepções específicas relacionadas a outros contextos, para designar, por exemplo, a condição de pessoas e grupos que não se integram ou são excluídas de sistemas social ou literário, como no título do livro de crônicas do escritor brasileiro Lima Barreto, publicado postumamente, e na denominação do movimento poético e cultural Marginália, nos anos 1970, no Brasil.
No sentido original, as anotações que constituem a marginalia são marcas do diálogo do leitor com o autor de um livro impresso ou manuscrito. Podem constar em margens e entrelinhas das páginas, folhas de guarda, capas e, por vezes, até sobrepostas a trechos do texto. Podem estar registradas na forma de comentários, anotações, críticas, explicações, rabiscos, iluminuras e até zombarias. E podem ser feitas pelo leitor ou mesmo pelo autor, quando ele se torna leitor ou revisor de seu texto. Nesses diálogos marginais, por motivos diversos, como a escassez de papel, o leitor assume o papel de escritor, com finalidades e funções variadas, como anotação, esclarecimento, correção, recomendação. Nos manuscritos bíblicos, por exemplo, encontram-se na margem notas para uso litúrgico, com indicação de divisões dos textos ou correções ou remissão a outros textos e ao contexto do escrito. Nos manuscritos clássicos, as anotações se referem a explicações ou traduções. Segundo estudiosos do assunto, porém, a marginalia de T. S. Coleridge, publicada post mortem em seis volumes, é incomparável em termos de alcance, variedade, profundidade e finalidade. As milhares de anotações, cuja extensão varia de uma palavra a ensaios, abordam livros de autores famosos, como Platão, Petrarca, Rabelais, Shakespeare, e assuntos variados, como filosofia, literatura, religião, política, história, biografia e escrita de viagens para ciência e medicina. Outros escritores e intelectuais são também famosos na utilização dessa prática, como o escritor português Fernando Pessoa e os brasileiros Mário de Andrade e Osman Lins, cujas bibliotecas pessoais têm sido objeto de estudo e pesquisa.
Embora, para alguns, esse tipo de anotação desqualifique e desvalorize a obra, para outros, mesmo estando, quanto à localização espacial, separadas da “mancha” na página, esses rastros dos leitores integram a história de leitura do livro, e o conteúdo marginal ganha visibilidade e dignidade, valorizando a obra e dando margem a múltiplos estudos em áreas, como literatura, crítica genética, biografia, psicologia, sociologia, estudos culturais, biblioteconomia de obras raras e especiais. Quando se trata de anotações do autor nos seus textos matrizes, a leitura anotada contribui também para a compreensão de aspectos de sua vida, seu processo criativo e sua obra, além da dos autores que lia e de informações sobre a vida literária e o contexto histórico, social e cultural de sua época. Por extensão, muitas dessas características e finalidades podem ser aplicadas também ao texto em suporte digital, quando disponíveis ferramentas de anotação. Provavelmente, porém, pelo fato de circularem em ambientes digitais e serem feitas em ambientes privados, tornam-se mais difíceis o acesso a elas e sua perenidade para futuros estudos.
Recentemente me lembrei do assunto, quando, por acaso, consultei exemplar de um de meus livros do acervo da biblioteca da universidade onde leciono. Ao observar anotações a lápis com comentários, sublinhados, setas, pontos de interrogação, rabiscos por distração ou tédio, entre outras rastros de leitura, a curiosidade se estendeu aos demais títulos de minha autoria, que indico para meus alunos. Em vários deles, encontrei anotações – anônimas, claro –, com comentários e dúvidas que não tinha ouvido de nenhum deles. Apesar de intrigada, não lhes perguntei o motivo desses diálogos à margem da sala de aula... Mas certamente merece estudo detalhado esse tipo de diálogo em que o leitor prefere se movimentar silenciosamente nos limites espaciais do papel, mesmo quando o autor empírico está acessível, provocando-o a se colocar como leitor, em inversão momentânea de papéis. Talvez a força da palavra escrita seja mesmo irresistível, e o papel do leitor que escreve ao lado do autor represente uma discreta mas original e poderosa forma de transgressão de limites, neste caso salvaguardada pela interação à distância. Apropriando-se dos espaços em branco, exercendo o papel de autor da marginalia, o leitor impõe sua palavra, que fica inscrita nas páginas da história do livro.
Maria Mortatti