Interessado por teatro e literatura desde o tempo de estudante, com 15 anos de idade escreveu seu primeiro romance, apaixonou-se por uma mulher casada, 11 anos mais velha do que ele, e só lhe declarou o amor 30 anos depois, mas, embora viúva, ela não quis se casar; e teve também uma ligação amorosa passageira com outra mulher. Com a herança recebida do pai, médico, pôde se dedicar a escrever. Abandonou cedo os estudos de Direito, viajou para a África e Oriente Próximo, depois se retirou para seu sítio em Croisset, dedicando os 30 últimos anos de sua vida à literatura, em quase total solidão, mas sempre em contato com escritores e intelectuais. Em 1875, vendeu vários bens para evitar a falência do marido de sua sobrinha e passou a viver de salário como conservador da Biblioteca Mazarine. Morreu provavelmente em decorrência de um AVC.
Sua vida foi a de um homem para quem só a literatura existia. Buscava obsessivamente a perfeição, gastando, por vezes, dias na redação de uma página, lendo-a várias vezes, repetindo-a em voz alta, até encontrar a forma perfeita. Leitor insaciável e pesquisador incansável, livros foram também temas e “personagens” em sua obra, do começo ao fim da vida, como exemplarmente: no primeiro conto publicado na juventude, “Bibliomania” (1836), no romance de maior sucesso, Madame Bovary (1857), e no romance inacabado, Bouvard e Pécuchet (1881).
Para escrever o conto “Bibliomania” (1836), publicado na revista Le Colibri, Flaubert – então com 15 anos de idade – inspirou-se no relato dos crimes cometidos por um livreiro de Barcelona, que tinha sido publicado meses antes na Gazette des Tribunaux, com o título “O crime do livreiro Catalão”; embora Flaubert não soubesse, o relato foi considerado uma invenção literária atribuída aos escritores Prosper Merimé ou Chales Nodeir. No conto de Flaubert, o livreiro Giácomo, que vivia solitário em uma rua estreita de Barcelona, mal sabia ler, parecia um velho acabado, apesar de ter 30 anos de idade, era apaixonado e obcecado por livros raros. “Amava a ciência como um cego”: seu prazer era perambular à noite entre as estantes de sua biblioteca, folheando, manuseando, examinando capa e ilustrações, cheirando a tinta de seus “filhos preferidos”, os exemplares únicos de livros e manuscritos raros. Para possuí-los, sacrificava a saúde, o sono, as emoções, o dinheiro, a alma, chegando a cometer assassinatos cruéis, até que, para não entregar seus “filhos amados”, entregou-se, ele mesmo, à morte.
Madame Bovary, inspirado em um caso de adultério seguido de suicídio da mulher, foi iniciado em 1851, começou a ser publicado em capítulos em 1856, na Revue de Paris, e foi publicado em livro em 1857. Considerado pioneiro entre os romances realistas, por sua originalidade e ousadia ao tratar temas polêmicos para a época, o livro lhe acarretou um processo por “ofensa à moral pública e religiosa”, durante o qual, quando lhe perguntaram em quem se inspirara para compor a personagem com tanta veracidade, Flaubert respondeu com a célebre frase “Emma Bovary c'est moi” (“Emma Bovary sou eu”). Foi absolvido, e o livro despertou grande interesse. Criada no campo e educada em convento, a jovem Emma, sonhadora, bonita e requintada, aprendeu a ver a vida lendo livros de literatura romântica e sentimental, que alimentaram seus sonhos de uma vida burguesa. Casou-se com o médico interiorano Charles Bovary, teve uma filha, mas logo se entediou com a vida de casada e, cada vez mais infeliz, buscou no adultério uma forma de liberdade e felicidade, assumindo dívidas enormes com seus casos amorosos, até que, definitivamente decepcionada, cometeu suicídio, ingerindo arsênico. Quando, posteriormente, Charles descobriu o adultério, morreu de tristeza.
Bouvard e Pécuchet (1881, post mortem), iniciado com pesquisas em 1871, as quais o escritor foi complementando, nos anos seguintes, com cerca de 1.500 livros, é um exame de todas as ciências, como um amontoado de saber, que se manifesta a dois espíritos medíocres e simples. Dois copistas que trabalhavam em Paris se encontraram por acaso, ficaram amigos e descobriram ter em comum o sonho de mudar de vida e o desejo de saber, experimentar e entender tudo. Com a herança de um deles e as economias do outro, compraram uma fazenda, deixaram Paris, adquiriram muitos livros e iniciaram uma série de estudos, buscando abarcar todos os conhecimentos da humanidade. Dedicaram-se a jardinagem, agricultura, química, medicina, astronomia, arqueologia, história, literatura, política, higiene, magnetismo feitiçaria, filosofia, religião, até que, desiludidos e desesperados, voltaram à atividade de copistas. Abriram, então, os livros que tinham lido e, seguindo a ordem natural de seus estudos, os “dois homenzinhos” passaram a transcrever de forma minuciosa as passagens escolhidas por eles nos tratados, manuais e enciclopédias, “iniciando uma série assustadora de disparate, de ignorância” e caracterizando a obra de Flaubert como “a grande ironia de um pensador maravilhoso que constata, a todo tempo, a eterna e universal estupidez humana”, nas palavras do escritor Guy de Maupassant, contemporâneo e amigo de Flaubert.
Esse livro-biblioteca-enciclopédia ficou inacabado: a parte publicada é apenas a primeira de um extenso plano, que seria possivelmente complementado com outra obra inacabada, o Dictionnaire des idées reçues ou Catalogue des opinions chic (Dicionário de frases feitas ou Catálogo de ideias chiques), publicado postumamente em 1913. Sabendo de suas limitações humanas para uma obra desse porte, Flaubert escreveu aos amigos: “Temo que o término do homem chegue antes do livro – isso seria um belo final de capítulo.” E “assim que o havia escrito, numa manhã, ele caiu fulminado pelo trabalho, como um Titã muito audacioso que tivesse tentado subir alto demais.” (Guy de Maupassant)
Maria Mortatti – 01.04.2023