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ANTONIO CANDIDO, DIREITO À LITERATURA E POLÍTICA CULTURAL DEMOCRÁTICA/ MARIA MORTATTI

“(...) a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. (...) Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” 
Esse é um dos mais conhecidos trechos do ensaio “O direito à literatura”, do professor, crítico literário, escritor e sociólogo Antonio Candido de Mello e Souza (24.07.1918 – 12.05.2017). Retomando e ampliando reflexões de seu artigo “A literatura e a formação do homem”, de 1972, o ensaio foi apresentado como conferência em 1988 na Sala de Estudantes da Faculdade de Direito da USP, em curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo – que Antonio Candido integrava – e, depois incorporado ao seu livro "Vários escritos". Articulando uma concepção de literatura como bem incompressível com função humanizadora a uma expressão da cultura brasileira e uma visão de política cultural democrática, esse ensaio representa também uma síntese integradora de seu método crítico, em que articula dialeticamente a relação entre literatura e sociedade, interpretável por meio da interação autor-obra-público constituída dentro do texto.

Nascido no Rio de Janeiro, Antonio Candido se mudou para a cidade de São Paulo e ingressou, em 1937, nos cursos de Direito e de Ciências Sociais, ambos da Universidade de São Paulo. Não concluiu o de Direito, porque em 1942 foi nomeado assistente do professor Fernando de Azevedo (1894 – 1974) na cadeira de Sociologia II, da Faculdade de Filosofia da USP. Nos anos 1940, integrou o Partido Socialista Brasileiro; em 1941, participou da fundação da revista Clima, com, entre outros, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, com quem se casou; em 1943 passou a colaborar com o jornal Folha da Manhã, em que publicou artigos e resenhas, como as dos primeiros livros de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1945, obteve o título de livre-docente em literatura brasileira, com a tese Introdução ao Método crítico de Silvio Romero; e, em 1954, o título de doutor em Ciências Sociais, com a tese Parceiros do Rio Bonito. Entre 1958 e 1960, foi professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (depois incorporada à Unesp); em 1959, foi publicado o livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos; em 1961, passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP; e, em 1974, tornou-se professor titular. Aposentou-se em 1978, mas orientou trabalhos de pós-graduação até 1992. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.  Sua extensa obra foi reeditada pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel, e atualmente, pela editora Todavia. É professor emérito da USP e da Unesp, e doutor honoris causa da Unicamp e recebeu importantes prêmios, como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1965 e 1993; o Prêmio Machado de Assis, em 1993; o Prêmio Anísio Teixeira, em 1996; o Prêmio Camões, em 1998; e o Troféu Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, em 2008, ocasião em que também recebeu, da bacharel em Direito e escritora Lygia Fagundes Telles, a láurea de Associado Benemérito da Associação de Antigos Alunos.

Seu inquestionável legado se estende para diferentes campos da vida nacional e sucessivas gerações de professores, críticos literários, sociólogos e, entre outros, os responsáveis por políticas culturais. Está presente também em minha formação intelectual, tanto como leitora de sua obra, que se tornou referência para a atuação como professora e pesquisadora, quanto de suas marcas na memória e na história da cidade natal. Sua esposa, Gilda de Mello e Souza (1919 – 2005), passou a infância em Araraquara, interior paulista, onde seu pai e seu tio-avô, Pio Lourenço Correa, tinham fazendas. Pio morava na chácara Sapucaia, onde Mário de Andrade, primo de Gilda, escreveu Macunaíma, em 1926. Antonio Candido esteve várias vezes na cidade, em atividades familiares e acadêmicas. A mais memorável foi sua atuação, com Fernando Henrique Cardoso, na tradução simultânea da famosa conferência do filósofo francês Jean Paul Sartre, em 1960, na então recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Também de sua relação com a cidade, deixou registros no livro epistolar Pio & Mário – Diálogo da vida inteira (Sesc São Paulo; Ouro sobre Azul, 2009), em que finalizou o projeto de sua esposa, reunindo 204 cartas trocadas entre Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa durante 1917 e 1945.

Ao longo de seus quase cem anos de vida, Antonio Candido participou diretamente de momentos decisivos da história nacional, produziu extensa obra com livros e ensaios que se tornaram clássicos da crítica literária e do pensamento social brasileiro e formou gerações de estudantes, professores e críticos literários. Em entrevista que concedeu em 2011, definiu-se como o último “sobrevivente” de sua geração de intelectuais do século XX, aos quais coube o “dever político” do debate sobre a formação literária, cultural e política do País. Sem dúvida, seu legado é expressão desse dever político, de que o ensaio “O direito à literatura” acabou se tornando uma espécie de síntese “popular” e fundamento para uma política cultural democrática. Esse direito, Antonio Candido não apenas o tematizou, mas também praticou como professor e crítico literário. Produzindo e divulgando conhecimento literário como um bem comum e um direito humano, mostrou em sua obra como “(…) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza” e, por isso, “(...) pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo.” 

Maria Mortatti

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Obs: Este texto é síntese de meu ensaio “A literatura e a formação de uma mulher: momentos decisivos com Antonio Candido”, publicado no e-book gratuito Entre a literatura e o ensino: a formação do leitor, com prefácio de Marisa Lajolo (Editora Unesp, 2018).