“Como te chamas? Que idade tens? Onde estás? Não sei. Não sei quem és, mas eu te amo. Sem te conhecer compus este livro que te ofereço querendo fazer-te feliz. Pensa na desconhecida que de longe te escreveu estas páginas.”
O livro é Criança meu amor, de 1924. A “desconhecida” tinha, então, 23 anos de idade, diplomara-se professora pela Escola Normal do Distrito Federal em 1917, iniciara no magistério primário em 1918, já tinha publicado dois livros de poemas, Espectro (1919) e Nunca mais... e poemas dos poemas (1923), casara-se em 1922 com o artista plástico Fernando Correa Dias, a primeira das três filhas nascera em 1923 e a segunda, em 1924. A já não desconhecida naquela época é a poeta, professora, educadora, cronista, folclorista, dramaturga, jornalista, crítica literária, tradutora, pintora Cecília Meireles – Cecília Benevides de Carvalho Meirelles, que nasceu na cidade do Rio de Janeiro/DF em 7 de novembro de 1901, tirou uma letra "L" de seu sobrenome, para ficar mais "leve", como lhe recomendou um médium, e faleceu em decorrência de câncer no estômago, em 09 de novembro de 1964, com 63 anos de idade. É autora de vasta e variada obra escrita e também participou intensamente de movimentos de renovação educacional, assinou colunas jornalísticas sobre educação do ponto de vista da escola nova, foi uma dos 26 signatários do documento A reconstrução educacional no Brasil: Ao povo e ao governo: manifesto dos pioneiros da educação nova, de 1932, redigido por Fernando de Azevedo, fundadora da primeira biblioteca pública infantil do País, no Pavilhão Mourisco, no Distrito Federal, autora do livro Problemas da literatura infantil (1948/1951) e livros também para crianças, além de ter participado de várias comissões para organização da educação nacional. Foi tradutora de clássicos literários – como Emily Dickinson, Garcia Lorca, R. M. Rilke –, conferencista no Brasil e no exterior, seus livros e poemas foram traduzidos para vários idiomas, recebeu importantes prêmios e títulos nacionais e estrangeiros e sua obra conta com considerável fortuna crítica. Nem tudo, porém, foram flores: perdas e lutos, questionamentos masculinos e intrigas políticas também estavam presentes em sua vida. "Esta sou eu – a inúmera”, como define o eu lírico no poema “Compromisso”, do livro Mar absoluto e outros poemas (1945).
Criança meu amor, com ilustrações de Fernando Correa Dias, foi publicado em 1924, pela Editora Anuário do Brasil, adotado pela Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal e aprovado também pelo Conselho Superior de Ensino dos Estados de Minas Gerais e Pernambuco. Nas décadas seguintes, Cecília publicou outros livros de gênero "paradidático": A festa das letras (Globo, 1937), em parceria com Josué de Castro, como colaboração para campanha nacional de alimentação; Rute e Alberto resolveram ser turistas (Globo, 1939), adaptado para o ensino da língua portuguesa nos Estados Unidos da América do Norte. Ou isto ou aquilo, seu livro mais famoso de poemas para crianças e também para adultos, foi publicado em 1964, pela Giroflê.
O primeiro livro para leitura escolar escrito pela jovem poeta e professora fugia dos padrões de livros didáticos de leitura tradicionais, que, na maioria, continham textos de autores consagrados, mas não destinados a crianças. Nos 30 textos autorais do livro, em forma de prosa poética, apesar de ainda terem marcas da tradição – como os mandamentos que a criança deve seguir para ser boa –, Cecília consegue inovar em muitos aspectos, conciliando poesia e educação, em delicadas composições. Criança meu amor foi reeditado em 1927 e voltou a circular em 1977, no contexto de reforma educacional de 1971, ocasião em que se também iniciaram debates e programas de incentivo à leitura e produção de novos livros literatura infantil no Brasil. Eu já era leitora aficionada, desde a adolescência, da obra poética de Cecília, mas pouco conhecia de sua obra e atividades como educadora. Foi então que, conhecendo esse livro, pude ampliar a compreensão sobre a importância do conjunto de sua obra. A análise das relações entre literatura e educação em Criança meu amor resultou em meu primeiro artigo na carreira de pesquisadora, em 1980. O professor da disciplina do mestrado em Educação, Casemiro dos Reis Filho, gostou do texto que escrevi, recomendou publicação e comentou que conheceu Cecília Meireles: ela tinha olhos verdes lindos, e provocava suspiros elogiosos do educador Fernando de Azevedo, quando via passar na rua a "deusa de novembro", como a saudou o poeta Drummond. Desde então, além das incansáveis releituras de sua obra, ela faz parte dos estudos e pesquisas desta simples mortal, também de novembro.
O que registrei aqui é quase nada frente ao monumental e imortal legado que a conhecida, reconhecida e aclamada, a “inúmera” Cecília Meireles deixa para gerações de leitores, escritores e educadores, integrando o patrimônio literário e cultural do País. Mais prudente teria sido, talvez, iniciar com um esquivo “Cecília e sua obra dispensam apresentações”, a me poupar da possível acusação de entediante tom didático-professoral. Se assim fosse, melhor ainda teria sido nem começar. Mas eu perderia a oportunidade de ao menos, com certa dose de coragem, encerrar com as palavras que realmente importam, as dela mesma, a inesquecível autora professora-poeta/profeta, no texto de abertura de Criança meu amor. “Terás coragem de esquecê-la? (...) Dá-me um pouco do teu tesouro, oh criança! – Como? Perguntarás. Amando este livro, que é teu, procurando entendê-lo e procurando guardá-lo na memória do teu coração (...)."
Maria Mortatti