“Escucho con mis ojos a los muertos” (“Escuto com meus olhos os mortos”) é um conhecido verso de Francisco de Quevedo (14.09.1580 – 08.09.1645), poeta, escritor e político espanhol do Século de Ouro. Nascido em Madri, recebeu formação humanística, foi secretário-geral do Duque de Osuna, após cuja destituição Quevedo foi desterrado pelo sucessor sob acusação de traição, confiscaram-lhe os livros e foi levado para a prisão no convento de São Marcos de Leão, onde permaneceu entre 1639 e 1644, com saúde debilitada por tuberculose óssea; após libertado, retirou-se para a localidade de Torre de Juan Abad e morreu pouco tempo depois, no convento dos padres Dominicanos de Villanueva de los Infantes. Quevedo se dedicou a escrever, com notável domínio da língua castelhana, extensa obra em quase todos os gêneros de sua época. Na poesia, sonetos eruditos, satíricos e burlescos, sobre o tempo, a morte e o amor, com imagens características do conceptismo e do cultismo barroco, opondo-se ao estilo do poeta Luís de Gongora, seu contemporâneo, contra o qual escreveu sátiras mordazes; e na prosa, obras satírico-morais, festivas, tratados políticos, obras teológicas, filosóficas e morais, peças de teatro, além de cartas e traduções de clássicos gregos. Apesar da fama em vida, a maioria dos poemas circulava em cópias manuscritas, e suas letrillas foram difundidas anonimamente por menestréis. Sua obra poética foi editada por José González de Salas e publicada postumamente em dois volumes: El Parnaso Español e Monte en dos cumbres dividido (1648). Figura principal do Barroco espanhol, que muitas vezes escandalizava com seus escritos, Quevedo foi também personagem de peças e romances, e sua obra satírica influenciou muitos outros poetas, como Gregório de Matos, no Brasil Colônia.
Durante sua prisão no Monastério de São Marcos, Quevedo se dedicou à leitura, como relata na Carta moral e instructiva, escrita ao amigo Adán de la Parra: “(...) leio em bons e maus autores; porque não há livro, por mais desprezível que seja, que não tenha alguma coisa boa (...). Catulo tem seus erros, Marco Fábio Quintiliano suas arrogâncias, Cícero algum absurdo, Sêneca bastante confusão; e finalmente, Homero sua cegueira, e o satírico Juvenal seus delírios; Egecias não carece de alguns conceitos, Sidônio tem sutilezas médias, Ennodius está correto em algumas comparações e Aristarco, apesar de tão insípido, é adequado em muitos exemplos. Procuro aproveitar tanto os maus para não os seguir, como os bons para tentar imitá-los.” (Tradução livre) A poesia como “imitatio”(“imitação”) de modelos antigos, os greco-romanos, consagrados artisticamente era uma das principais características e um procedimento básico da arte e da literatura renascentista e do Século de Ouro na Espanha. O objetivo não era copiar, mas assimilar o modelo, apropriar-se dele e buscar ultrapassá-lo, criando-se um diálogo entre o autor e os que o precederam e ele buscava superar. Esse foi o procedimento de Quevedo em muitos poemas, e a imagem do diálogo com a literatura clássica, ele a formulou, por exemplo, neste soneto: “Retirado en la paz de estos desiertos/con pocos, pero doctos libros juntos,/vivo en conversación con los defuntos/y escucho con mis ojos a los muertos.//Si no siempre entendidos, siempre abiertos,/o enmiendan o fecundan mis asuntos,/y en músicos callados contrapuntos/al sueño de la vida hablan despiertos.//Las grandes almas que la muerte ausenta,/de injurias de los años, vengadora,/libra, ¡oh gran don Iosef!, docta la emprenta.//En fuga irreparable huye la hora,/pero aquella el mejor cálculo cuenta/que en la lección y estudio nos mejora.!”(“Retirado na paz destes desertos/Com poucos, mas doutos livros juntos/Vivo em conversação com os defuntos/E escuto com meus olhos os mortos.//Se não sempre compreendidos, sempre abertos,/ou alteram ou fecundam meus assuntos,/e em contrapontos de músicos silenciosos/ao sonho da vida falam despertos.//As grandes almas que a morte ausenta,/das injúrias dos anos, vingadora,/liberta, oh! grande don Iosef!, a sábia impressão.//Em fuga irreparável a hora foge,/mas aquela o melhor cálculo estima/que na lição e no estudo nos melhora.”) (Tradução livre)
Aos meus olhos, assim fala Quevedo: nesse soneto, encontra-se um tratado poético sobre a arte da leitura e uma declaração de amor ao livro, não o objeto físico, em si, mas sobretudo o lugar do encontro à distância, no tempo ou no espaço, com os mortos e vivos, quando abrimos os livros e escutamos com os olhos a alma impressa nas páginas que nos fala no silêncio de um diálogo genuíno e fecundo. Ao ler, também nos inscrevemos na história de leitura do livro e dele nos apropriamos, vencendo a morte. Uma sedutora metáfora da relação amorosa em que os autores estão sempre à mão. Basta escolhê-los ou ser por eles escolhida. Basta ter olhos para escutar.
Maria Mortatti