Júlia Lopes de Almeida não se tornou "imortal", mas sua obra continua viva e, desde as décadas finais do século passado, vem sendo cada vez mais lembrada justamente por ter sido apagada da história da Academia Brasileira de Letras e dos manuais de história da literatura brasileira. Não é caso isolado entre escritoras, mas certas singularidades lançam luzes sobre uma ineludível injustiça motivada pelo simples fato de ser mulher.
Filha de imigrantes portugueses – os professores Valentim José Silveira Lopes e Antonia Adelina do Amaral Pereira Lopes, proprietários de um liceu feminino –, a escritora, cronista e dramaturga Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (24.09.1862 – 30.05.1934) nasceu na cidade do Rio de Janeiro e, estimulada pelo ambiente cultural em que cresceu, sempre demonstrou interesse pela literatura. Mudou-se com a família em 1870, para a cidade de Campinas/SP, onde morou até os 23 anos de idade. Em 1885, passando um período na cidade do Rio de Janeiro, ampliou contatos no ambiente cultural e literário da época e, a convite do poeta e jornalista Olavo Bilac (1865 –1918), integrou o corpo de redatores da revista literária A Semana, conheceu o poeta e dramaturgo luso-brasileiro Filinto de Almeida (1857 – 1945), com quem se casou em 1887, em Lisboa, e depois tiveram três filhos. O casal regressou ao Brasil, em 1888, e, após a proclamação da República, Filinto de Almeida assumiu a função de redator-chefe de O Estado de S. Paulo, e o casal se mudou para a cidade de São Paulo, onde permaneceu até 1895, relacionando-se com a intelectualidade paulista e sua crença na mudança social e cultural do país por meio da educação, da cultura, da leitura, do livro. Os contatos e relações de Júlia Lopes de Almeida com intelectuais, escritores e editores nas cidades brasileiras e portuguesas em que morou foram importantes para a publicação e divulgação de seus livros e reconhecimento, em vida, de sua obra. Depois de viagens para Europa, Buenos Aires, África, entre outros, Júlia Lopes de Almeida morreu no Rio de Janeiro, com 72 anos de idade, vítima de malária.
Começou sua carreira literária publicando folhetins e contos em A Gazeta de Campinas. Em 1886, publicou seus primeiros livros: Traços e Iluminuras (em Lisboa); e, em parceria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira, Contos Infantis: em verso e prosa – para uso das escolas primárias, pela Laemmert & Cia. (RJ), que é apontado pela pesquisadora Nelly Novaes Coelho como precursor da literatura infantil brasileira e também faz parte de meu acervo e de minhas pesquisas desde os anos 1990. Entre 1886 e 1932, a escritora publicou mais de 40 títulos, entre romances – a maioria em folhetins, depois em livro –, contos, crônicas, artigos de jornal, peças de teatro e textos para crianças. Além da colaboração em revistas e jornais, foi a escritora mais publicada entre fins do século XIX e início do século XX. Em contexto adverso para as mulheres, sobretudo para a profissionalização como escritoras, pois escrever era atividade destinada aos homens, ela conquistou sucesso editorial e reconhecimento, sem deixar de conciliar essa atividade pública com as de mãe e esposa e sua formação liberal, com causas femininas e abolicionista.
Júlia Lopes de Almeida foi a única mulher a participar do grupo de escritores e intelectuais que, por iniciativa do escritor Lúcio de Mendonça (1854 –1909), reuniu-se em sete sessões preparatórias para a fundação, em 20.07.1897, da Academia Brasileira de Letras (ABL). Na última sessão, o escritor Machado de Assis (1839 – 1908) foi aclamado presidente, o estatuto da ABL, inspirado na Académie Française de Lettres, estabeleceu a composição em 40 membros efetivos e perpétuos e 20 correspondentes estrangeiros e foi criado o lema "Ad immortalitatem" (“Para a imortalidade”), origem da classificação de seus membros como “imortais”. Em artigo de O Estado de S. Paulo, de dezembro de 1896, Lúcio de Mendonça propusera o nome de Júlia Lopes de Almeida para ocupar a Cadeira 3, o que não foi aceito pela maioria dos primeiros membros da ABL, pois, embora na época ela já fosse escritora bastante conhecida e respeitada pela crítica, era mulher... Decidiram, então, que a vaga seria ocupada pelo marido, Filinto de Almeida, na posição de fundador, e ele passou a ser considerado por alguns o “acadêmico consorte”, como relata a pesquisadora Michele Asmar Fanini, que também atribui a esse fato o esquecimento da escritora, após sua morte até aproximadamente os anos 1980, quando começou a ser redescoberta e estudada, especialmente nos campos da educação e dos estudos feministas.
Oitenta anos depois, em 1977, a ABL admitiu a eleição de uma mulher: a escritora Rachel de Queiroz (1910 – 2003), que ocupou a Cadeira 5. Depois dela, somente outras sete. Muitos daqueles fundadores da ABL morreram para a memória literária brasileira. Em julho de 2017, na comemoração dos 120 anos da "Casa de Machado de Assis", foi realizada a conferência “Cadeira 41”, com a qual Júlia Lopes de Almeida foi homenageada e seu nome foi restituído como membro e fundadora da Academia Brasileira de Letras. Uma tardia reparação simbólica do apagamento da singular escritora, cujos nome e obra continuam vivos, justamente por não ter sido aceita como "imortal” pelo simples fato de ser mulher.
Maria Mortatti