Lembro como se fosse hoje. Era uma daquelas manhãs luminosas de verão da cidade natal. “Além do mais, o tempo estava ideal.” Não poderia haver dia tão perfeito para a descompromissada leitura de férias dos contos da escritora Katherine Mansfield, nome literário de Kathleen Mansfield Beauchamp, que nasceu na Nova Zelândia, em 14.10.1888, morou em Londres por alguns anos e morreu de hemorragia pulmonar, decorrente de tuberculose, aos 34 anos de idade, em 09.01.1923, em Fontainebleau, na França, onde passou os últimos anos, para tratamento de saúde. Em Londres, viveu de modo livre e rebelde. Participou do Bloomsbury, círculo de artistas e intelectuais britânicos, entre os quais Virginia Woolf – que editou, pela Hogarth Press, o primeiro livro de Mansfield–, John Maynard Keynes, E. M. Forster e Lytton Strachey, e se envolveu em relações amorosas e sexuais tumultuadas. Em três semanas casou-se e se separou, engravidou e sofreu aborto, contraiu gonorreia, os problemas pulmonares começaram, a mãe a levou para reabilitação de seis meses em uma pequena cidade termal na Alemanha, onde sofreu um aborto e escreveu seu primeiro livro de contos. Retornando a Londres, iniciou relação com o editor John Middleton Murry, com quem se casou. Sua saúde piorou e começou a escrever avidamente sobre os instantes do cotidiano, sobre a falta de liberdade sexual das mulheres que sofriam consequências da liberdade dos homens, sobre a solidão e a morte.
Escreveu seu primeiro conto aos nove anos de idade. Durante a vida, publicou três livros de contos: In a german pension (Numa pensão alemã) (1911), Bliss (Felicidade) (1920) e The garden-party: and other stories (A festa no jardim e outras histórias) (1922), além de contos em pequenas edições e em revistas literárias. Após a morte de Mansfield, Murry editou e publicou textos dela, reunidos de publicações "avulsas", além de cartas e seus diários – mais de cinco dezenas de cadernos contendo desde contos inacabados e projetos de escrita até anotações pessoais. Em seu testamento de 1922, Mansfield pediu que o mínimo possível fosse publicado e o máximo possível fosse queimado... Seus contos, com narrativas curtas e enxutas, usando o recurso do fluxo de consciência, das reticências e da lacônica ironia, abandonando a estrutura fechada e o final surpreendente, caracterizam a versão moderna do conto, como aponta o escritor argentino Ricardo Piglia, a exemplo de James Joyce e Anton Tchekhov, este um dos escritores preferidos de Mansfield. Conta-se que, após ler "Bliss", Virginia Woolf confessou sentir inveja de Mansfield; sua Mrs. Dalloway, de 1925, evoca Bertha Young, protagonista daquele conto da neozelandesa. Clarice Lispector, ao ler esse livro, em tradução brasileira de 1940, exclamou: “Mas esse livro sou eu!”. Vinicius de Moraes dedicou um soneto para Mansfield. E Ana Cristina Cesar também traduziu e comentou o conto "Bliss".
Relendo hoje – cem anos depois do falecimento da escritora – aqueles contos publicados no livro Aula de canto (tradução de Edla Van Stein e Eduardo Brandão, Global, 1987), lembrei da inesquecível aula de conto... e de vida no jardim de minha mãe, há 30 anos, quando Katherine Mansfield se me revelou: com a professora de canto, Miss Meadow, que, do “desespero (...) cravado fundo no coração” termina com a voz cobrindo “todas as outras – cheia, profunda, ardente, expressiva”; com a menina Laura, em “Festa no Jardim”, só conseguindo dizer à enlutada e pobre família vizinha a quem levava os restos da comida da festa: “Perdoe o meu chapéu, sim?”; e das últimas palavras da protagonista de "Bliss", Bertha Young, mulher inglesa, burguesa, de 30 anos, que, “de repente, ao dobrar uma esquina, [...] é invadida por uma sensação de êxtase – absoluto êxtase!" e, ao final, pergunta: “O que vai acontecer agora?!”
Maria Mortatti – 27.05.2023