“Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respirar."
Conhecida como Pagu – apelido que lhe deu o modernista Raul Bopp no poema “Coco de Pagu”, de 1928 –, era Zazá, para a família; Patsy, a colaboradora do Brás Jornal nos anos 1920; Mara Lobo, a autora militante do romance Parque industrial, de 1933; Léoní, a militante comunista em Paris em 1934/35; Solange Sohl, a poeta “estreante” com “Natureza morta”, em 1938; Ariel, a cronista de revista A noite, em 1942; King Shelter, o escritor de pulp fiction na revista Detective, em 1944; Gim, a crítica de TV, em A Tribuna, de Santos, em 1961/62; além de outras dez e possivelmente outras mais, ainda inéditas;
de normalista – formada pela Escola Normal de São Paulo – a desenhista, declamadora, cartunista, poeta, romancista, cronista, jornalista, tradutora, militante política e cultural, atriz e diretora de teatro, seus inúmeros pseudônimos evocam o prenúncio da jovem poeta em O álbum de Pagu – nascimento, vida, paixão e morte, de 1929: “Sou a única atriz./É difícil para uma mulher/interpretar uma peça toda./A peça é a minha vida,/meu ato solo”;
da cidade interiorana de São João da Boa Vista, onde nasceu Patrícia Hehder Galvão, em 09.06.1910, para a capital paulista, daí para o mundo – Buenos Aires, Estados Unidos da América do Norte, Japão, China, Manchúria, União Soviética, França e outros países da Europa –, depois, repatriada, de volta a São Paulo, e, por fim, estabelecida na cidade litorânea de Santos, onde, após duas tentativas de suicídio – em 1949 e 1962 –, morreu de câncer de pulmão, em 12.12.1962, com 52 anos de idade;
da bela, sedutora e transgressora – que fumava em público, usava roupas transparentes e dizia palavrões – à militante política e ativista cultural, com intensa rede de relações e amizade com artistas, escritores, intelectuais brasileiros e estrangeiros, como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milliet, Lygia Fagundes Telles, Jorge Luis Borges, Victoria Ocampo, Eduardo Mallea, Freud, os surrealistas franceses, além de líderes políticos, como Luís Carlos Prestes e o último imperador chinês, Pu Yi;
da família burguesa e conservadora à vida proletária e à difusão no Brasil da vanguarda artística mundial, talvez a primeira presa política brasileira, introdutora da soja no país e a primeira a apresentar e traduzir trecho de Ulisses, de James Joyce, e de dezenas de outros autores até então inéditos no Brasil, como Mallarmé, Kafka, Apollinaire, Faulkner, Katherine Mansfield, Henry Miller, Ionesco;
da “musa do modernismo” e “esposa de Oswald de Andrade” – com quem foi casada entre 1930 e 1934 e teve um filho, Rudá de Andrade – e esposa do crítico de arte e jornalista Geraldo Ferraz entre 1941 e 1962 – com quem também teve um filho, Geraldo Galvão Ferraz – à protagonista de uma vida incansável, multifacetada e corajosa em relação ao lugar imposto à mulher em sua época, na vida privada e pública: nos costumes, no sexo, no casamento, na maternidade, na literatura, na militância política, no ativismo cultural;
de seu quintal-“uma cidade”, no poema do Álbum de Pagu, às páginas da história da literatura, da militância política e do feminismo no Brasil, como tema de livros, dicionário de personalidades de esquerda, acervos de documentação política, estudos acadêmicos, crítica literária, peça de teatro, minissérie de TV, enredo de escola de samba, revista acadêmica, núcleo de estudos, instituto, ong de direitos das mulheres, do filme Eternamente Pagu (1987), de Norma Bengell, do livro Pagu: vida-obra, organizado pelo poeta Augusto de Campos (Brasiliense, 1982; reedição pela Companhia das Letras, 2014), do documentário Pagu – livre na imaginação, no espaço e no tempo (2001), dirigido por Rudá Andrade, do site Viva Pagu, de Lucia M Teixeira Furlani, com colaboração de Geraldo Galvão Ferraz, e da canção Pagu, de 2000, de Rita Lee e Zélia Duncan;
da fama como Pagu, lançada com o poema de Raul Bopp, e o esquecimento nos anos 1950 até após a morte, à redescoberta e ao resgate de sua vida e obra no final dos anos 1970, por outro poeta, Augusto de Campos, no contexto de maior circulação das ideias feministas no Brasil e de abertura política, após a ditadura militar de 1964, e nas últimas décadas homenageada como revolucionária, rebelde, inconformada, vanguardista e feminista;
tão fragmentada quanto densa e singular demais para seu tempo, Pagu teve de esperar o terceiro milênio para, nas palavras de Augusto de Campos, ser “desmistificada” e “remitificada”, enfatizando-se “não a face superficial de sua atividade, mas a densidade maior de sua aventura intelectual”, para definir o lugar nas letras nacionais de Patrícia Galvão, a una atriz a interpretar todos os papéis que escolheu para a peça de sua vida e que cometeu, sem arrependimento, “o crime sagrado de ser divergente”, ciente de sua “(...) submissão absoluta. Não ao homem. Ao amor.” e intransigente na defesa do direito da mulher a sonhar e viver em liberdade: “Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respirar."
Maria Mortatti – 14.05.2023