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AO BRUXO DO COSME VELHO, NA NOITE MAIS LONGA DO ANO / MARIA MORTATTI

Reza a sabedoria popular espanhola que bruxas existem, mesmo que não se acredite nelas. Reza a sabedoria literária brasileira que, num sobrado da Rua Cosme Velho, n.18, na cidade do Rio de Janeiro, morava um escritor que certa vez, quando queimava algumas cartas em um caldeirão, foi visto pelos vizinhos que passaram a chamá-lo de “bruxo”. Não sei se é fato, mas o apelido “pegou”. Conta-se que, talvez sabendo do acontecido, um crítico literário gaúcho acrescentou ao apelido um adjunto adverbial e criou um epíteto, que foi utilizado por um poeta gaúcho e depois por um poeta mineiro, que o popularizou. Isso está comprovado. O crítico literário é Moysés Vellinho (1902 – 1980), o poeta gaúcho é Augusto Meyer (1902 – 1970), o mineiro é Drummond (1902 – 1987) e o consagrado com o epíteto os leitores já sabem: é o escritor Joaquim Maria Machado de Assis (21.06.1839 – 29.09.1908). 

Eu não sabia de nada disso, quando ele entrou em minha casa na Rua São Bento, em Araraquara – SP. Mas sei que o fato se deu por volta do ano de 1963, quando eu tinha entre 8 e 9 anos de idade. Está registrado na memória e em uma única foto já amarelada. Ao fundo, uma estante de madeira com um aparelho de TV (em preto e branco) e uma coleção de livros de capas arroseadas. Sentadas no sofá revestido de plástico – última moda de pequenina classe média na época –, quatro crianças vestidas com uniforme do grupo escolar, recém-banhadas, cabelos bem penteados. Eu, ao centro, com um livro aberto sobre o colo, em imponente pose de leitora, ladeada pelo irmão e duas irmãs, com olhares dirigidos para o livro e sorrisos marotos nos lábios. Acho que foi tirada por minha mãe para registrar, com a devida pompa, a custosa aquisição, paga à prestação, suponho. Ela era professora primária e, não sendo exatamente amante da leitura, foi talvez para incentivar os filhos a ler, ou para enfeitar a estante com solenes lombadas, que comprara os livros de um vendedor domiciliar, no dia anterior. O que eu ostentava na foto era um dos 12 volumes da coleção composta por 10 romances e duas compilações de contos de Machado de Assis, capa dura, formato 14 x 21 cm, papel resistente, encadernação costurada, todos prefaciados e revisados por H. Pereira da Silva, editados pela Sedegra – Sociedade Editora e Gráfica, com endereço no Rio de Janeiro, e datados de 1962. Foram os primeiros livros luxuosos que tive em mãos legitimamente – anos antes fora um exemplar clandestino de A Divina Comédia, em versão integral, com tradução de Xavier Pinheiro. A coleção machadiana era acompanhada por um brinde: 10 volumes miniaturizados de romances de José de Alencar, em capa dura e com as qualidades gráficas dos de Machado, mas impressos pelas Oficinas Gráficas da Livraria Fittipaldi Editora, no Rio de Janeiro. 

Aos poucos, fui lendo e descobrindo quem era o contista, poeta, cronista, teatrólogo, romancista, crítico, ensaísta, tradutor, autor daqueles luxuosos livros de capas arroseadas. Comecei a lê-los alguns anos depois. Primeiro os contos, depois os romances da “fase romântica” e, no auge da adolescência, os três romances que me deixaram atônita: Quincas BorbaMemórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Foi no curso de Letras que compreendi que tinha em mãos parte da obra do grande, senão o maior escritor brasileiro. Aqueles livros já estavam, então, definitivamente em minha estante, disponíveis para os momentos de solidão, de lazer e de trabalho. Apresentei alguns contos e romances aos alunos nas aulas de literatura; analisei alguns deles em trabalhos de graduação e pós-graduação – ah! a memorável análise do conto “A casa velha”, na disciplina de mestrado com Roberto Schwarz –; Memórias póstumas... foi uma das inspirações para a tese de doutorado; em momentos de indignação, lembro-me da lucidez de Simão Bacamarte, da máxima de Quincas Borba – “Ao vencedor as batatas” –, dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu, do “Quando jurei era verdade”, de Genoveva em “Noite de almirante”, do triunfo da linha em “Um apólogo” e de tantos outras irônicas, amargas e pessimistas denúncias de nossas fragilidades, a marca da grandeza do implacável leitor da alma humana.

Do epíteto e sua origem, também só vim a saber muito depois, acho que quando conheci o poema de Drummond “A um bruxo, com amor” (1958), retratação de sua crítica de juventude: “Em certa casa da Rua Cosme Velho/(que se abre na memória)/venho visitar-te/(...) Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.” E se hoje, dia de solstício de inverno e noite mais longa do ano, relembro aquele dia em que o Bruxo do Cosme Velho entrou pela primeira vez em minha casa – acompanhado por José de Alencar, seu patrono na Academia Brasileira de Letras –, é porque de tal modo ele enfeitiçou a menina da foto, que se incorporou à minha história e continua me recebendo em sua casa, onde "os pensamentos idos e vividos/perdem o amarelo/de novo interrogando o céu e a noite", para, com ele, ler e reler – e, quem sabe, também escrever? – o livro incompleto da minha vida.

Maria Mortatti