“Marie ai nun, si sui de France” (“Maria é meu nome, eu sou de França”) – é tudo o que se sabe sobre a poetisa anglo-normanda a quem se atribui a autoria de três manuscritos medievais que circularam entre c.1160 e 1215: Lais – coletânea de 12 poemas narrativos; Fábulas – tradução/versão em versos, a partir do inglês, de 102 fábulas de Esopo, nas quais ela introduz um prólogo, explicando a importância da instrução moral; e a tradução, diretamente do latim, do longo poema Purgatório de São Patrício, do monge Henrique de Saltrey. Recentemente, alguns estudiosos lhe atribuem também um texto sobre a vida de Santa Audrey de Ely.
O primeiro a se referir a ela como Marie de France – como ficou conhecida desde então – foi o historiador francês do século XVI, Claude Fauchet, no livro Coletânea sobre a origem da língua e da poesia francesas, de 1581. Pela falta de registros históricos, há especulações sobre se tratar de pseudônimo ou de outras mulheres de mesmo nome, mas, em seus escritos, assinados com Marie, há evidências que nasceu na França, viveu por muito tempo na Inglaterra, falava várias línguas, conhecia o latim, provavelmente havia lido os clássicos e estudou em convento, como outras mulheres aristocráticas na sua época, especialmente no século XII, em que a poesia feminina floresceu: mulheres (trobairitz) compunham narrativas poéticas, canções e lais e encantavam as cortes, como faziam os trovadores.
Sua obra mais conhecida, desde sua época até hoje, é a coletânea (c. 1170) de 12 lais – palavra de origem celta que designa uma composição poética curta, em versos, para ser cantada ao som de harpa ou rota (instrumento antigo de corda). Colocou em versos de oito sílabas rimados aos pares – conforme os padrões então em voga – alguns dos lais que ouvira de menestréis bretões, como ela mesma afirma nos preâmbulos da maioria de seus lais. Escreveu-os em Francien, dialeto medieval falado na região de Île-de-France, conhecido e amplamente lido nos círculos aristocráticos. Em seus lais, revelam-se a longa elaboração artística, a vasta cultura da autora e sua fina sensibilidade na descrição de personagens e ambientes, misturando-se motivos folclóricos das tradições orais dos celtas, influência de textos latinos, traços fantásticos e características básicas do amor cortês, criado nos cortes francesas no século XII, como um código de conduta sobre a forma de amar e demonstrar um tipo de amor impossível, entre uma mulher, casada com o senhor, e um cavaleiro, vassalo da corte, em que este idealiza a dama como um ser superior, inalcançável e quase divino, caracterizando uma relação de vassalagem amorosa. Mas, nos lais de Marie de France, as personagens femininas são protagonistas fortes, mostrando como as mulheres lutaram e às vezes encontraram formas para contornar o confinamento das cortes e espaço para a expressão e realização pessoais, embora frequentemente o amor esteja associado ao sofrimento e envolva relacionamento adúltero.
Por meio de sua poesia, a literatura europeia passou a envolver os contos dos bardos galeses e bretões (incluindo histórias de fadas e do ciclo arturiano, como Lancelot e Guinevere e Tristão e Isolda), influenciando o desenvolvimento do romance medieval/novela de cavalaria. Existem muitas cópias manuscritas de seus lais, em várias línguas, como francês, italiano, inglês, alemão e Old Norse – lingua escandínava utilizada até o século XV. Em português, há tradução, em prosa, por Antonio L. Furtado, com prefácio de Marina Colasanti (Vozes, 2001). Sua obra influenciou também escritores como o inglês Geoffrey Chaucer, no século XIV; sobre ela, a poeta inglesa Matilda Betham escreveu o longo poema The lay of Marie (1816) e a escritora norte-americana Lauren Groff, o romance Matrix (2021).
Marie de France, a primeira poetisa francesa, a primeira mulher a escrever, em versos, sobre o amor cortês e do ponto de vista da compreensão e da experiência femininas, "a Safo de seu século" – conforme o historiador francês oitocentista J. de Roquefort –, com seu pioneirismo e influência na literatura europeia, contribuiu também para dar voz às mulheres na história: “Quem recebeu de Deus ciência/e o dom de falar com boa eloquência,/não se deve calar nem esconder,/antes deve mostrar-se voluntariamente./Quando um grande bem se faz ouvir,/Então primeiro ele começa a florir,/e quando elogiado é por muitos,/então desabrocham suas flores.”
Maria Mortatti