Por circunstâncias geracionais, não estudei língua e literatura alemãs no curso de Letras. O currículo tinha sido reorganizado anos antes de meu ingresso, em 1971, e optei por língua inglesa e respectivas literaturas. Por sorte igualmente geracional, porém, pude conhecer clássicos da literatura alemã nas traduções do berlinense naturalizado brasileiro,
Herbert Caro (1906 – 1991). Minha estreia nessa seara germânica se deu nos anos 1980/1990 com suas traduções, pela Nova Fronteira, dos monumentais romances de um dos maiores representantes da literatura alemã, Thomas Mann (06.06.1875 – 12.08.1955). Li, então, com ávido prazer, na sequência indicada por um amigo:
A montanha mágica, de 1924 – entre os 100 livros do século XX, segundo o jornal
Le Monde – romance de formação (
Bildungsroman), em que o protagonista Hans Castorp, ao visitar um primo em sanatório nos Alpes suíços, descobre-se doente também e acaba lá ficando por anos. Longe dos problemas da planície, na convivência com diferentes tipos humanos, vai amadurecendo e ampliando a reflexão sobre a vida, a morte e o amor, em busca de liberdade e da defesa do humanismo;
Doutor Fausto – a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo, de 1947, no qual é descrito também o ambiente cultural, musical de sua época e os acontecimentos políticos de ascensão do nazismo na Alemanha entre 1943 e 1946, por meio da história de Leverkühn, que vende a alma ao demônio, em troca de viver o suficiente para realizar sua grande e ousada obra musical, embora com a condição de que nunca poderia amar; e
Os Buddenbrooks – decadência de uma família – publicado em 1901, em que é narrada a saga familiar, entre 1835 e 1877, de quatro gerações de comerciantes de Lübeck, cidade natal do escritor.
Depois daqueles primeiros milhares de páginas, tornei-me leitora aficionada de sua obra e fui descobrindo detalhes de sua biografia: os anos de formação na Alemanha, como filho do cônsul e comerciante Thomas Johann Heinrich Mann e da brasileira Julia da Silva Bruhns-Mann; o casamento com Katharina Pringsheim Mann, em 1905, com quem teve seis filhos; o caminho até a defesa intransigente da democracia, após uma fase conservadora e nacionalista em que se opôs conflituosamente ao irmão mais velho, o escritor Heinrich Mann; a extensa e notável obra literária que produziu desde a juventude e lhe rendeu reconhecimento e fama; o autoexílio nos Estados Unidos da América do Norte fugindo da perseguição nazista na Alemanha; a perseguição macarthista, quando passou a criticar ostensivamente os crimes nazistas e explicitar simpatia pelo comunismo; o refúgio na Suíça, onde faleceu de câncer pulmonar, aos 80 anos de idade; e o diário íntimo publicado, com sua autorização, 22 anos depois, em que revela aspectos da vida privada não tão coincidentes com a imagem pública que construiu.
A história da união vitalícia desta leitora araraquarense-brasileira com a obra do Nobel de Literatura de 1929 – aqui apenas sumariada – está registrada em memórias das leituras, releituras e adaptações cinematográficas de Morte em Veneza (de 1971, por Luchino Visconti, com o Adagietto, de Mahler) e Doutor Fausto (de 1982, por Franz Seitzo); em epígrafes e citações em alguns de meus livros; e no nome de minha filha, Júlia, que escolhi em homenagem à fascinante mãe paratiense-brasileira que infundiu nos filhos o amor pela literatura e nos presenteou com o universal Thomas Mann e sua peremptória afirmação: "Onde estou é a Alemanha".
Maria Mortatti