“Felicidade clandestina” é um conto talvez dos mais conhecidos de Clarice Lispector (10.12.1920 – 09.12.1977). Publicado originalmente como crônica, no Caderno B do Jornal do Brasil – em que a autora colaborou semanalmente, entre 1967 e 1972 – integra a coletânea homônima, lançada em 1971, pela editora Sabiá, contendo outras 24 narrativas breves, algumas também anteriormente publicadas, outras escritas para o livro. Lá estão textos emblemáticos de Clarice, além de “Felicidade clandestina”, como “O ovo e a galinha”. “Os desastres de Sofia”, “Uma amizade sincera”.
Narrada em primeira pessoa, com tom autobiográfico, a história se passa na cidade de Recife/PE, onde Clarice morou na infância. A protagonista, uma menina devoradora de histórias, mas com poucas posses, vivia implorando emprestados – sem sucesso – à menina filha de dono de livraria, os livros que ela não lia, submetendo a protagonista a humilhações que ela nem notava, tal sua ânsia de ler. A crueldade e sadismo da menina era uma forma de vingança das outras imperdoavelmente bonitinhas. O máximo de crueldade da menina foi quando informou que possuía As reinações de Narizinho, de Lobato: Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. Mas o plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. Por dias e dias seguidos, prometia emprestar, mas todas as vezes em que a protagonista ia buscar a resposta era a mesma: já tinha emprestado para outra menina. Até que a mãe da menina cruel descobriu o que acontecia, entendeu a crueldade da filha, ordenou que emprestasse o livro e disse à protagonista que podia ficar com ele pelo tempo que quisesse. Isso é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. O que se seguiu foram momentos de “êxtase puríssimo”, num sugestivo jogo de sedução, inenarrável, um dos mais belos trechos da literatura: a menina cortejando o livro, com olhares e toques, leituras salteadas, distanciamentos propositais, reencontros furtivos. E o surpreendente desfecho clariceano: Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Desde a primeira vez que li – acho que era uma cópia avulsa do conto – lembrei-me de Clarice quando, com seu primeiro salário de jornalista, ao comprar um exemplar de Bliss (Felicidade), de Katherine Mansfield, exclamou: Mas esse livro sou eu!. E também exclamei estonteada com a leitura do conto: aquela história era eu, como tantas outras que ela escreveu e me acompanham desde a juventude, com impacto perene de palavras vivas, ardentes: o golpe da graça que se chama paixão; Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome; eu a inliberta; Sim, minha força está na solidão; Viver não é coragem, saber que se vive é coragem.
Quando, finalmente, consegui adquirir um exemplar – da edição da Nova Fronteira, de 1987 –, havia orgulho e pudor em mim. Eu era também uma rainha delicada. Sentada na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, perguntava a Clarice: como posso dizer o êxtase puríssimo que você me proporcionou e pelo tempo que eu quiser? Reli inúmeras vezes. Não, não é um elogio da leitura, apenas. Nem apenas dessa amizade sincera que o livro e a leitura representam, mas dos clandestinos desejo, posse, encontro que simbolizam na história. Da felicidade sempre clandestina. Supérfluas palavras essas poucas. Tudo já está sentido e dito por ela mesma. Tentei escrever inúmeras vezes, tantas quantas reli o conto. Criei as mais falsas dificuldades. Desisti, retomei, ia desistindo pela última vez, quando me lembrei do método intuitivo de escrita de Clarice – mas Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho – e de seu desinteresse por gêneros literários, quando se referiu às suas “crônicas” no Jornal do Brasil: Isto é apenas. Não entra em gêneros.
Como demorei a não entender! Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Isto que esperei ou me esperou por mais de quatro décadas e só poderia ser escrito com as palavras-vida: Escrevo simplesmente. Como quem vive. Isto é o que não entendo. Apenas sinto. Escrever isto é uma felicidade clandestina que Clarice me proporcionou, no tempo que eu quisesse e do modo que eu pudesse vivê-la.
Maria Mortatti