O pernambucano Gilberto Freyre (15.03.1900 – 18.07.1987), um dos mais importantes sociólogos do século XX, também foi antropólogo, historiador social, escreveu livros e ensaios de interpretação do Brasil, foi jornalista, poeta e pintor, criou instituições, como a Fundação Joaquim Nabuco e a Fundação Gilberto Freyre. Cursou graduação e doutorado em Ciências Sociais na Universidade de Columbia (EUA), viajou à Europa, retornou ao Brasil, onde concluiu e publicou o clássico controverso e polêmico Casa-grande & senzala – Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1933), seu livro mais conhecido e publicado em vários países, que lhe rendeu apreciações polêmicas, tais como as de anarquista e reacionário, pornográfico e conservador, e acusações de romantizar a escravidão e propor a tese da "democracia racial", e, por isso, aconselhou-se queimá-lo (o livro, claro), mas também foi classificado pelo crítico Antonio Candido como uma das maiores obras do século no Brasil. É autor ainda de dezenas de livros, dirigiu jornais e colaborou em periódicos brasileiros e estrangeiros. Atuou em funções comissionadas, foi eleito deputado federal constituinte pela UDN, em 1946, e membro do Conselho Federal de Cultura desde a sua criação. Apesar das polêmicas e controvérsias em torno de sua obra, Freyre é o intelectual mais premiado do Brasil, além dos importantes prêmios e honrarias que recebeu no exterior.
Ao longo de suas intensas atividades e produção intelectual, Gilberto Freyre também escreveu diários, cujos manuscritos foram localizados no Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre, em que foi transformada, conforme seu desejo, a casa grande do Engenho Dois Irmãos, no bairro de Santo Antônio de Apipucos, no Recife – que ele adquiriu, depois que sua casa foi saqueada e incendiada durante a Revolução de 1930 –, e para a qual se mudou em 1941, com a esposa Maria Magdalena Guedes Pereira e onde viveram com os filhos Sonia e Fernando. Os diários estão publicados no livro De menino a homem: de mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos: diário íntimo seguido de recordações pessoais em tom confidencial semelhante ao de diários (Global, 2010), com apresentação da antropóloga Fátima Quintas, álbum fotográfico, biobibliografia, índice onomástico e anexos com textos do autor. Nessa obra autobiográfica e memorialística, encontra-se também uma nova edição de Tempo morto e outros tempos, com trechos de diários de adolescência e mocidade (1915-1930) e o das décadas seguintes, como indicado no título da publicação. Em tom marcadamente reflexivo, os relatos se desenvolvem em torno da autorreiterada condição de “despedaçado”: “Recomeços de vida despedaçada: depois de Stanford”; “A década quarenta: acontecimentos decisivos na vida de um brasileiro reajustado” e “Da década cinquenta a sessenta e às seguintes: um homem recuperado após ter sido quase destruído”. Nesses diários, encontram-se confissões intelectuais e pessoais de Freyre, algo como “a vida passada a limpo”, num exercício da vocação confessional, em que se revelam: contradições de seu pensamento e atuação, com a confessada "infidelidade metodológica" – “votos que nunca fiz de castidade sociológica” –; pessoas de sua intensa rede de sociabilidade, como, além do irmão Ulysses, os amigos Manuel Bandeira e José Lins do Rego; opiniões a respeito de personalidades nacionais e internacionais e acontecimentos políticos; angústias e desejos pessoais. Ouve-se a voz de um homem que se fala, refletindo sobre suas experiências pessoais e intelectuais, os momentos políticos do tempo em que viveu e o “esforço heroico, da parte de um Freyre, mais despedaçado que o outro, no sentido de dar início àqueles recomeços de vida mutilada”, mas que também expõe, sem pejo nem temor de escandalizar, sensações marcantes da vida de um homem sensual, como o relato de detalhes da “recordação imperecível” da “surpreendente baronesa sexy”, de seios "incisivamente provocantes", que, num apartamento de Copacabana, “proporcionou ao jovem que [ele] era uma experiência única.”
Pois foi mergulhada na vida íntima desse controverso menino-homem que passei o dia, depois que consegui, por um triz, aparar com as duas mãos o pesado e luxuoso volume de capa dura, com 223 páginas, quando ele, certamente tentando me chamar, estava a cair – ou a jogar-se? ou a fugir? – da prateleira de autobiografias da estante de minha biblioteca.
Maria Mortatti