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EROS E PSIQUÊ, A BELA E A FERA: METAMORFOSES DE UM MITO / MARIA MORTATTI

Do conto A Bela e a Fera há inúmeras versões e adaptações orais e escritas, em livros, peças de teatro, filmes e – a mais popular – a do desenho animado de 1992, produzido pelos Estúdios Disney. Com variações conforme o contexto cultural, finalidade e público de cada época, permanece o enredo básico: uma jovem bela e de bom coração, para salvar o pai de seus revezes financeiros, aceita voluntariamente se casar com um ser animalesco e rico. Vive experiências fantásticas como refém no castelo do noivo, até provar do amor puro, com que redime o amado da maldição animalesca que lhe tinha sido imposta, revelando-se nele o lindo príncipe, com quem ela se casa e salva a família da ruína. Esse enredo se relaciona com fontes históricas – dizem ter existido mesmo um homem tão feio que todas as mulheres temiam –; com fontes folclóricas e literárias de contos do tipo “animal bridegrooms” (noivos animalescos); e com fontes literárias originais, que remontam ao século XVIII, na França, ou, ainda, a seus antecedentes na mitologia grega, como o mais famoso deles, a história de Eros e Psiqué, contada pelo escritor e filósofo latino Lucio Apuleio (sec. II d.C.), no livro Metamorphoseon libri XI (Metamorfoses – 11 livros), renomeado de O asno de ouro, por Santo Agostinho, no século XVIII. 

A primeira versão moderna de A Bela e a Fera é a da escritora francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, Madame de Villeneuve (1685/1695 – 1755), que registrou a história que dizem ter ela ouvido de uma criada na versão do escritor italiano Gianfrancesco Straparola (c.1480 – c.1557), cuja fonte, por sua vez, parece ter sido Novelæ, coleção de histórias em latim, publicada em 1520 pelo escritor napolitano Girolamo Morlini. La Belle et la Bête – título da versão francesa por Madame Villeneuve – foi publicado em 1740, no livro La jeune américaine ou Les contes marins (A jovem americana ou Os contos marinhos), voltado à aristocracia parisiense que frequentava os salões literários, onde era habitual contarem histórias desse tipo, mesclando elementos medievais e aristocráticos, eróticos e moralizantes. A versão de Madame Villeneuve foi reeditada várias vezes, mas a história se tornou famosa na versão resumida e adaptada para crianças, escrita por outra francesa, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, Madame de Beaumont (1711 – 1776), e publicada no manual pedagógico Le Magasin des Enfants, em 1756, quando a autora trabalhava em Londres, como preceptora de famílias da aristocracia inglesa. Nessa versão, escrita para meninas e provavelmente para mães e preceptoras, a história é mais simples, com enredo linear e poucas páginas, mas com acentuado tom moralizante, educativo e religioso.

Quanto ao mito grego original, trata-se da história de Eros (Cupido, deus do amor, da paixão e do erotismo) e Psiquê (Alma), a mais bela filha de um rei, a quem a Afrodite (deusa do amor, da beleza e da sexualidade), por inveja, pede a seu filho Eros que a atinja com uma flecha para ela se apaixonar pelo ser mais desprezível. Mas a flecha o atinge acidentalmente, ele se apaixona e é castigado com a transformação em fera e será salvo pelo amor de Psiquê, que, não tendo se apaixonado por nenhum outro e forçada a casar com Apolo, desespera-se, é deixada sobre uma colina e levada pelo vento Zéfiro ao palácio da fera. Depois de desencontros com Eros, que não se podia mostrar, e vencendo pacientemente as provações impostas por Afrodite, Psiquê se torna imortal e se une a Eros. O mito foi registrado e difundido por Apuleio, em O asno de ouro, em que o personagem relata suas burlescas e fantásticas aventuras e as que ele ouve ou testemunha, depois de ter tomado uma poção e se transformado em asno, mas permanecendo com a razão humana. Esse mito foi se metamorfoseando: além de adaptações por outros escritores, como Boccaccio, Cervantes, Fernando Pessoa, e das variações folclóricas, o mito passou aos contos de fadas e se imortalizou na versão de A Bela e a Fera, de Madame de Beaumont, escrita há 267 anos, que se tornou um clássico da literatura infantil, matriz para muitas ou quase todas as inúmeras versões e adaptações, até hoje e as que virão. Os deuses sabem o que fazem. As flechadas de Eros são sempre certeiras. Psiquê é paciente e persistente. O mito do amor que salva é imortal.

Maria Mortatti