“Il genio è la pazienza eterna” (“O gênio é a paciência eterna”), “La bellezza è la purificazione del superfluo” (“A beleza é a purificação do supérfluo”): assim escreveu Michelangelo Buonarroti (06.03.1475 – 18.02.1564), pintor, escultor, arquiteto, criador de obras-primas e uma das figuras centrais da Renascença italiana, o gigantesco artista que também é poeta.
De acordo com o historiador da arte Giulio Argan, Michelangelo dizia que não era literato, por modéstia, como também dissera que não era arquiteto nem pintor, e reconhecia que escrever lhe era muito custoso. Enquanto criava as obras-primas que o tornaram famoso e admirado desde sua época, participava, indiretamente, de debates sobre renovação da língua, literatura e artes figurativas que nos séculos XV e XVI estiveram no centro da cultura humanista. Foi também leitor de poesia popular e religiosa e dos poetas Francesco Petrarca (1304 – 1374) e Dante Alighieri (1265 – 1321), seus modelos literários. Além das mais de 500 cartas que escreveu para amigos e familiares, Michelangelo criou, entre 1502 e 1560, cerca de 300 poemas, a maioria sonetos, além de madrigais e outros de gênero indefinido. Com a poesia, era a “coisidade”, “a dureza cristalina das palavras-conceitos”, que lhe interessava trabalhar, buscando “um estado de absoluta unidade do espírito pelo qual a imagem visual implicava o conceito e a palavra, e o conceito e a palavra tinham a imediata e completa evidência da imagem visual.” Nos primeiros poemas, os temas estão relacionados com sua obra artística, e a poesia é uma projeção da atividade criativa do escultor. Depois predominam temas relacionados com o amor, como nos dedicados a Vittoria Colonna – notável mulher e poeta que, após anos de viuvez, tornou-se amiga de Michelangelo que tinha por ela intenso afeto e dúvidas sobre esse sentimento conflituoso –; e a Tommaso dei Cavalieri – nobre italiano, aluno de Michelangelo e um de seus amores. Nos últimos poemas, predominam os temas da morte, do pecado e da salvação individual, com tom amargo e angustiado, concretizando visões místicas do divino.
Michelangelo nunca se casou, e não foram documentados seus casos de amor nem com mulheres nem com homens. Em sua visão e seus conceitos neoplatônicos, o amor dá forma a seus objetos, é o modo de ser do sujeito e “não muda pelo fato de que o sujeito seja uma mulher ou um homem, uma pessoa real como Cavalieri ou Vittoria Colonna, ou imaginária como a mulher bela e cruel”, como destaca o historiador, nestes versos de Michelangelo:
“Dimmi di grazia, Amor, se gli occhi mei/
veggono ’l ver della beltà c’aspiro,/
o s’io l’ho dentro allor che, dov’io miro,/
veggio scolpito el viso di costei.”
(Dize-me sim, Amor, se os olhos meus/
veem de verdade a beleza a que aspiro/
ou se a carrego dentro, pois, onde mire,/
vejo esculpido o rosto dela...).
Muitos poemas foram escritos em folhas ou fragmentos de papel com desenhos ou esboços de seus trabalhos artísticos. Não chegou a publicá-los em vida, mas alguns circularam entre amigos. A primeira edição impressa, com o título Rime, de 1623, foi organizada por seu sobrinho-neto, Michelangelo, o Jovem, mas o editor fez alterações ou supressões de passagens, para apagar vestígios de ambivalência sexual. Elogiados por alguns e menosprezados por outros de sua época até o século XIX, os poemas foram republicados em 1897, por Karl Frey, com cronologia original e sem marcas de censura, tendo inspirado escritores e poetas como Thomas Mann e Rainer M. Rilke. Em 1960, Enzo Girardi organizou e publicou uma edição crítica, com restauração dos poemas de forma bem próxima aos originais A intensidade e a modernidade dos questionamentos de Michelangelo impressionaram poetas como Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale. Seguiram-se novas edições italianas e traduções em outros países, inclusive no Brasil. Atualmente, o livro, em italiano, com 302 textos – 80 sonetos completos, 100 madrigais e 50 epitáfios, além de outras composições e 42 fragmentos – encontra-se disponível em domínio público.
Descobri o poeta em uma edição brasileira, Michelangelo – poemas (Imago, 1994, tradução de Nilson Moulin, apresentação e notas de Andrea Lombardi e posfácio de Giulio Argan). Tão surpreendente descoberta da poesia esculpida na palavra-mármore me fez lembrar da famosa frase que Giorgio Vasari, historiador e biógrafo contemporâneo do artista, atribuiu-lhe, quando, terminada a escultura da estátua de Moisés, diante de sua beleza, bateu-lhe com um martelo e gritou: “Perché non parli?” Mas, sim: Moisés, A criação de Adão, Pietá, Davi, A Madona de Bruges, Rime e todas as obras-primas desse artista gigantesco continuam falando a linguagem da beleza e provocando êxtase em todos os sentidos, pois, como ele sintetiza sua poesia:
“Non há lottimo artista alcun concetto/
c’um marmo solo in sé non circunscriva/
com suo superchio...”
(“Não tem o grande artista nenhum conceito/
Que um mármore sozinho não circunscreva/
Com seu excesso...”.
“Il genio è la pazienza eterna”!
Maria Mortatti – 30.06.2023