Viajando ao redor do meu escritório, estacionei na estante de autobiografias, biografias e memórias. O segundo livro que me chamou foi A idade do serrote (Editora Sabiá, 1968), do mineiro universal Murilo (Monteiro) Mendes (13.05.1901 – 13.08.1975) poeta, sobretudo, e também prosador e crítico de artes, que transitou do catolicismo – a que se converteu após a morte do amigo e pintor Ismael Nery –, ao surrealismo, foi laureado com o Prêmio Graça Aranha da Academia Brasileira de Letras, em 1930, por seu primeiro livro Poemas, e com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina (considerado o Nobel da poesia), em 1972 – época em que exercia a função de professor de literatura brasileira na Universidade de Roma –, pela antologia poética Poesia Libertá, organizada por Ruggero Jacobbi e publicada pela editora italiana Academia Sansoni, tornando-se o primeiro brasileiro a receber essa honraria e consagrando-se como um expoente da intelectualidade modernista europeia.
Contam seus biógrafos, que o menino nascido em Juiz de Fora/MG, que recebeu formação tradicional, com as mais severas normas da moral cristã, aprendeu cedo a ler e escrever, era tão inventador de histórias e travessuras, que um de seus parentes chegou a levá-lo a uma sessão espírita para libertá-lo. Sempre rebelde à disciplina coercitiva, mas sem agressividade, não se adaptava bem à rotina e à hierarquia das escolas que frequentou, mas era excelente aluno nas matérias preferidas, Português e Francês. Sua “vida secreta” de poeta se iniciou aos nove anos de idade, quando viu a passagem do cometa Halley, e aprendeu a rimar e metrificar com seu vizinho Belmiro, cuja biblioteca imensa o menino frequentava. Com 15 anos, falsificando a idade, ingressou na Faculdade de Farmácia de Juiz de Fora, porque estava muito interessado em uma aluna, e, depois de um ano de bom aproveitamento, abandonou o curso porque ela deixou a escola. Em 1917, foi cursar o secundário na cidade de Niterói, época em que escreveu com mais frequência, mas uma noite fugiu do colégio para ver o bailarino Nijinski dançar, até que escapou definitivamente. Inconformado com a instabilidade do filho – “ofício de poeta não alimenta ninguém” –, o pai tentou orientá-lo para caminhos práticos da vida e ele trabalhou temporariamente como telegrafista, prático de farmácia, funcionário do cartório do pai e, depois, como professor de francês em um colégio de onde se desligou, porque um padre professor tentou roubar-lhe a namorada. O irmão mais velho o levou para o Rio de Janeiro, para trabalhar com ele na Diretoria do Patrimônio Nacional e depois em vários empregos, sem uma vocação definida. Nessa época, conheceu o poeta e pintor Ismael Nery, de quem se tornou amigo. Gastava grande parte de seu salário com livros e discos e morava em uma pensão no Botafogo, onde fazia sessões musicais, com amigos, para ouvirem Mozart e Bach, seus compositores preferidos. Mais tarde, depois de se recuperar de tuberculose, conseguiu emprego como inspetor federal do ensino secundário e, em seguida, como escrivão de cartório. Em 1930, consagrou-se como poeta, ao receber o Prêmio Graça Aranha por seu primeiro livro de poesia e conseguiu a redenção junto à família. Nessa época, conheceu escritores e poetas, como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Drummond, Oswald de Andrade, Raul Bopp e, em 1947, casou-se com a também poeta Maria da Saudade Cortezão, que se tornou seu amor definitivo e não tiveram filhos. Em 1952, já também crítico literário influente, iniciou viagens a países europeus como conferencista, continuou escrevendo e publicando no Brasil, e, finalmente contratado pelo Departamento Cultural do Itamaraty, instalou-se em 1957 na Itália, como professor de literatura brasileira na Universidade de Roma. Tornou-se conhecido na Europa como poeta e teve vários de seus livros traduzidos para outros idiomas, afirmando-se também como crítico de arte. Conheceu ainda importantes escritores e intelectuais europeus, mas não deixou de acompanhar o movimento literário brasileiro e continuou escrevendo, apesar de publicar pouco, por causa de dificuldades de contato com editoras brasileiras. Em 1968, com a publicação de A idade do serrote, passou a ocupar lugar de destaque também na literatura memorialística e autobiográfica brasileira. Em 1972, com o Prêmio Etna-Taormina, seu nome foi elevado à cena internacional e sua obra se tornou objeto de extensa fortuna crítica no Brasil e no exterior.
Conheci-o por meio de sua poesia que li durante o curso de Letras, em Araraquara/SP, no início dos anos 1970. Seus poemas ficaram “nos arredores do que vai acontecer” e hoje se me apresentam nos livros cujos versos sublinhei: “Minha terra tem macieiras da Califórnia/onde cantam gaturamos de Veneza.”; “A matéria é forte e absoluta/Sem ela não há poesia"; “Ainda não estamos habituados com o mundo/ Nascer é muito comprido”; “Não se trata de ser ou não ser,/Trata-se de ser e não ser.” E foi com substancioso prazer que hoje reli a insólita e bem-humorada autobiografia da infância e da adolescência do autor, na “idade do serrote”, em que o narrador adulto – já com 67 anos de idade e oito anos antes de falecer –, em prosa sensível e enxuta, tenta recapturar o tempo vivido pelo menino personagem, nos breves episódios das primeiras descobertas e sensações: do nascimento, da morte, do sexo, das letras, do cosmo. “A multiplicação dos pais”; “O jardim-pomar da casa paterna, limite traçado ao meu incipiente saber. O sabor das frutas. A árvore da ciência do bem e do mal ao meu alcance”; “As babás. A noite obscura do corpo. Histórias, parlendas, orações. Etelvina. Sebastiana.”; “Lili de Oliveira senta-me nos seus joelhos. O fogo sobre no meu corpo.”; “O circo”; “Os primeiros carnavais”; “As primeiras letras”; “Cedo a iniciação às Parcas: vejo morrer um primo na casa paterna.”; “Desdêmona e Ipólita, as ídolas deitadas. De origem europeia.”; “O voyeur precoce, o curioso. Sempre que podia, espiando formas no buraco da fechadura. Que horizonte!”; “O grande sonho: ir do Brasil à China a cavalo”; “Passagem do cometa Halley. A subversão da vista. A primeira ideia do cosmo”.
Murilo Mendes – que no poema “Mapa”, de 1930, afirmava “Não me inscrevo em nenhuma teoria” e que, aos 70 anos de idade, sentia-se “cada vez mais universal e mineiro” – continua cumprindo sua única “vocação neste mundo, a da poesia como uma totalidade”, e nos recorda que “nascer é muito comprido”, que se trata de “ser e não ser” e que “a memória é uma construção do futuro mais do que do passado”.
Maria Mortatti