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A DÓCIL E O PERVERSO, POR FIÓDOR DOSTOIÉVSKI / MARIA MORTATTI

O escritor russo Fiódor Dostoiévski (11.11.1821 – 09.02.1881), cuja obra figura entre os monumentos da literatura universal, dispensa efemérides para ser lembrado, celebrado, lido e relido. Aclamado desde a publicação de seu primeiro romance, Gente pobre (1846), inserindo-se na tradição literária representada por outros grandes escritores seus contemporâneos, na Rússia czarista do século XIX, Dostoiévski transcende essa tradição, inaugurando o romance polifônico e fantástico realista. Em seus romances, novelas, contos, memórias – muitos deles escritos rapidamente, para saldar dívidas financeiras contraídas com o vício de jogador –, por meio de temas e personagens universais e atemporais, vasculhando cantos obscuros do ser humano, provoca um encontro com a beleza do desassossego e deixa marcas indeléveis nos que acolhem o desafio da leitura. 

Lembro-me bem do primeiro encontro com sua obra, há mais de quatro décadas, quando li Crime e Castigo, numa tradução portuguesa, por Adelino S. Rodrigues, de 1974, pela Editorial Minerva, Lisboa – comprada na paulistana Livraria Brasiliense. O desassossego foi se estendendo a outros de seus romances, em traduções brasileiras, que passaram a ocupar estantes de minha biblioteca e meu tempo de leitura, em circunstâncias por vezes inusitadas para a companhia desse russo: Noites brancas, durante a espera para um encontro romântico; A casa dos mortos, tomando sol na areia da praia durante férias de verão; Memórias do subsolo, numa das visitas à cidade natal; O jogador, num “dia dos pais”; O idiota, quando me sentia especialmente virtuosa; Os demônios e Os Irmãos Karamazov, em longo período de meditação e revisão de vida; e seus contos e novelas em intervalos da lida profissional... 

Pois foi num desses momentos que recentemente retomei a coletânea Contos reunidos (org. Fátima Bianchi, vários tradutores, Editora 34), com os 28 contos que Dostoiévski publicou entre 1846 e 1880. Entre eles, “Uma criatura dócil”, novela publicada originalmente no número de novembro de 1876 da revista Diário de um escritor, dirigida pelo autor. O enredo se baseia em notícia publicada naquele ano no jornal Golos (A Voz), de São Petersburgo, sobre o suicídio de uma jovem pobre e em desesperança quanto ao futuro, que se atirou do alto de um prédio abraçada a uma imagem da Virgem Maria. Na introdução da novela, o autor adverte: “Peço desculpas aos meus leitores por lhes oferecer desta vez apenas uma novela, em vez do Diário em sua forma habitual. Mas esta novela simplesmente me tomou a maior parte do mês. (...) Agora sobre a história em si. Intitulei-a 'fantástica', ainda que eu mesmo a considere realista no mais alto grau. Mas aqui de fato ocorre o fantástico, e justamente na própria forma da história, o que eu considero necessário esclarecer de antemão. Acontece que não se trata nem de um conto nem de memórias.”

A história fantástica realista é narrada por meio de monólogos do protagonista, o marido atormentado, buscando compreender o motivo do fracasso de seu “sistema” e justificar para si a culpa frente à irreparável morte da esposa, a criatura dócil e sem nome, vítima da perversidade dele. Esse protagonista também sem nome, com 41 anos de idade e dono de uma casa de penhores, casa-se com uma jovem de 16 anos, órfã e pobre, que vivia com tias tiranas e estava prometida a um comerciante rico. Embora a amasse, o penhorista se torna um marido perverso: concebe um sistema de severidade e silêncio para submetê-la, até que ela adivinhasse, compreendesse e caísse de joelhos a seus pés. Agradava-lhe ver a humilhação dela e a ideia da desigualdade entre ambos. Julgava que ele a tinha vencido e ela tinha sido vencida por ele. De início, a dócil se submeteu, mas foi aos poucos se inquietando, começam as brigas, ela se intromete nos negócios dele, sai sozinha apesar da proibição, busca descobrir segredos de seu passado, a vida conjugal acaba, ela se fecha em silêncio, adoece e, após períodos de melhora, apesar das tentativas do marido de reconquistá-la, atirando-se aos seus pés – “queria ser seu cachorrinho” – , ele já a tinha perdido. Ela comete suicídio, atirando-se da janela de seu quarto, agarrada à imagem da Virgem Maria. 

Publicada há 147 anos, "A criatura dócil" – "uma das mais vigorosas novelas de desespero da literatura mundial", segundo o escritor russo Leonid Grossman – compõe o projeto literário filosófico teológico humanista de Dostoiévski, que aspirava ao estudo do ser humano na sua essência, expressando amor e compaixão pelo sofrimento e humilhação do “homem sem importância”, tomando como inspiração fatos do cotidiano, fundindo fantasia e realidade e criando, na prosa literária, a polifonia – várias vozes, além da do narrador, conceito formulado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin – , que influenciou gerações seguintes de grandes escritores. Aclamado e estudado nos campos da literatura, filosofia, psicologia, psicanálise, entre outros, Dostoiévski continua marcando com beleza e desassossego a mim e a todos os que acolhem o desafio da leitura de sua obra. Imortal.

Maria Mortatti – 25.08.2023