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SOBRE FARSAS, ASNOS E CAVALOS: A INÊS PEREIRA, DE GIL VICENTE / MARIA MORTATTI

“Mais quero asno que me leve do que cavalo que me derrube” é um ditado popular utilizado como motivo/argumento da Farsa de Inês Pereira, escrita pelo poeta e dramaturgo português Gil Vicente (c.1465 – c.1536) e representada “ao muito alto e mui poderoso rei D. João III, no Convento, em Tomar: era do Senhor de 1523”. O argumento lhe foi proposto, por “certos homens de bom saber”, como desafio para escrever uma farsa e, assim, provar sua “inocência” e a autenticidade de suas peças aos que o acusavam de farsante e plagiador das peças do poeta e dramaturgo espanhol Juan del Encina (1468 – 1529).

Farsa é um tipo de peça teatral breve, que se desenvolveu principalmente na França, entre os séculos X e XVI, com monólogos cômicos, situações ridículas e grosseiras, caricaturas e predomínio de enganos, equívocos, astúcia e mistificação. A maioria delas se originavam da tradição oral e eram transmitidas oralmente. Depois da invenção da prensa de tipos móveis, por Gutenberg, os primeiros impressores faziam cópias para vender, aproveitando a popularidade do gênero. Algumas, porém, foram orginalmente registradas por escrito, como Le garçon et l'Aveugle (século XIII), a primeira farsa francesa escrita, e La farce de Maître Pathelin, escrita por volta de 1457. Entre 1440 e 1560, foram escritas mais de uma centena, e esse gênero influenciou dramaturgos do século XVII, como Shakespeare e Molière, e dos séculos seguintes. Em língua portuguesa, Gil Vicente, mestre do teatro medieval e da análise do comportamento humano, buscando, por meio da ridicularização dos costumes, corrigir os hábitos e vícios da sociedade, também escreveu farsas – algumas denominadas de "autos", pelo filho que reuniu sua obra. A de Inês Pereira é uma das mais famosas.

Inês Pereira – a protagonista dessa farsa vicentina –, quando solteira, era infeliz, porque não conseguia realizar o sonho de se casar com um homem discreto, galanteador e que soubesse “tanger”. Recusa a proposta intermediada pela alcoviteira, Lianor Vaz, de se casar com Pero Márquez, um bom moço, rico, mas pobre de espírito. Aceita, depois, a proposta de se casar com o Escudeiro, Brás da Mata, um impostor que os dois judeus, Latão e Vidal, apresentaram-lhe como portador de todos as qualidades com que ela sonhara. Mas ele a maltrata, tornando-a prisioneira, abandona-a, morre em batalha, e ela descobre que não era o que sonhara. Depois de enviuvar, casa-se com Pero Márquez – seu primeiro pretendente –, homem “manso” que a deixa livre, e ela, então, torna-se amante do Ermitão, cópia perfeita do Escudeiro. Enfim, ela se sente feliz e é literalmente carregada nos ombros pelo marido, quando atravessam o rio para ela se encontrar com o amante. Enquanto ele a carrega, repete o refrão que ela o ensina a entoar: “Pois assim se fazem as cousas”. 

De certo modo surpreendente para a moralidade da época – e sobretudo para a jovem estudante de Letras nos anos 1970, quando li a farsa na compilação Obras-primas do teatro vicentino, por Segismundo Spina (Difel) –, o desfecho enfatiza o lugar da mulher representada por Gil Vicente: ela não é punida pelo adultério; ao contrário, pela comicidade com que é representado o marido traído, ressaltam-se o protagonismo e a astúcia da mulher que, afinal, consegue o que sonhara. Assim, Gil Vicente provou que não era farsante, e a farsa imortalizou Inês Pereira, que, no ano em que escrevo este texto, completa cinco séculos de existência literária. Assim se fazem as coisas e a arte que dura no tempo, porque contém verdades sempre atuais a provocar a reflexão sobre a vida de mulheres e homens e – por que não? – também sobre asnos astutos e cavalos pobres de espírito.

Maria Mortatti – 09.08.2023