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LAUTRÉAMONT, "OS CANTOS DE MALDOROR" E A "ESCRITA DA CRUELDADE” / MARIA MORTATTI

Para Joaquim Brasil Fontes Junior (in memoriam)

Pouco ainda se sabe... – mais ou menos assim começa a maioria dos textos com informações, estudos, resenhas, comentários sobre vida e obra do poeta uruguaio-francês Isidore Lucien Ducasse (04.04.1846 – 24.11.1870), conhecido como Conde de Lautréamont, autor do poema em prosa Les chants de Maldoror (Os cantos de Maldoror), de dois livretos Poésies I e Poésies II e de correspondência publicada sob o título de Lettres

Com poucas variações, nem todas confirmadas e muitas contestadas, sabe-se que Isidore Ducasse nasceu na cidade de Montevideo, Uruguai, na época em que estava sitiada por exércitos a serviço do ditador argentino D. Juan Manuel Rosas, que apoiava Manuel Oribe, contra Fructuoso Rivera. Era filho de François Ducasse – natural de Tarbes, no Altos Pirineus franceses, e escrivão-chanceler do Consulado Geral da França em Montevidéu – e de Jacquette Célestine Davezac, nascida perto de Tarbes, que morreu em 9 de dezembro de 1847 em circunstâncias misteriosas. Com 13 anos e meio de idade, Isidore Ducasse foi para Tarbes, estudou no Liceu Imperial, depois teve aulas na cidade de Pau e se tornou amigo de Georges Duzet, filho de seu tutor. Ao término dos estudos, visitou o Uruguai, retornou à França, estabeleceu-se em Paris e passou a morar em hotéis elegantes. Morreu no quarto do hotel Faubourg-Montmartre, com 24 anos de idade, em circunstâncias não informadas – provavelmente vítima de tuberculose, segundo seus biógrafos –, quando Paris estava sitiada pelos exércitos prussianos. Foi sepultado no mesmo dia, provavelmente em vala comum, no antigo cemitério do Norte, hoje recoberto por um imóvel. O único retrato mais confiável do poeta – em um foto-cartão de visita possivelmente feito em Tarbes em 1867 – foi encontrado em 1977, com descendentes de Georges Duzet, por Jean-Jacques Lefrère, biógrafo do poeta. Até então, havia apenas retratos imaginários, como os assinados por Félix Valloton, em 1896, e por Salvador Dalí, no início do século XX. 

A publicação de sua obra mais famosa, o poema em prosa Les chants de Maldoror, composto de seis cantos com 60 estrofes não numeradas, foi iniciada em agosto de 1868, com a impressão, na França, de um livreto contendo apenas o “Canto I” e assinado por três asteriscos, sem nome do autor. Em 1869, também em publicação anônima, foi impresso na Bélgica, mas não distribuído. Nesse país, em agosto de 1869, foi impressa a obra completa, com os seis cantos, assinada com o pseudônimo Conde de Lautréamont, sem referência ao editor e que também não pôde ser comercializada durante sua vida, porque, segundo alguns críticos, os editores temiam processos jurídicos por imoralidade, como o então recentemente ocorrido contra Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Ducasse não conheceu o sucesso em vida, mas, após sua morte, começou a ser descoberto e admirado. Em 1870, os livretos Poésies I e Poésies II foram editados em Paris e assinados por Isidore Ducasse. Em 1890, seus livros foram reeditados, receberam críticas favoráveis, foram conquistando admiração de leitores, o autor foi redescoberto e admirado pelos surrealistas, como André Breton e Salvador Dalí, inspirou vanguardas artísticas do século XX e continua causando admiração e perplexidade, com sua literatura marcada pela “mistura impura de gêneros” – lírico, épico e dramático –, em diálogo com “toda a herança literária do Ocidente, de Homero até os contemporâneos do poeta uruguaio, passando por Dante e Mílton, sem falar na mídia jornalística (que nascia naquele momento) e em toda a ciência da época – medicina, física, história natural – às vezes colhida em manuais de divulgação”, nas palavras do professor, ensaísta e tradutor Joaquim Brasil Fontes.

Em Les chants de Maldoror, que o autor classifica como “incandescente”, o personagem principal, Maldoror – palavra cuja origem permanece misteriosa, mas provavelmente deriva da junção de “mal” e “horror”, em espanhol – é uma terrível criatura esquelética, armada com um estilete e inimiga do Criador, que dedica sua vida ao mal e cuja violência de palavras e de ações, fantasias cruéis e ameaças ao leitor evocam o Marquês de Sade e a “literatura do mal”. A crueldade do personagem e os mistérios sobre a vida do autor fizeram proliferarem histórias sobre ele na França e no Uruguai, que se tornaram lendas sobre um Conde de Lautréamont sobrenatural e maldito, inventadas de certo modo por ele mesmo, que escreveu em Os cantos de Maldoror: "Meu aniquilamento será completo" e em Poesias: "Não deixarei memórias", contribuindo para enigmas persistentes, apesar das biografias sobre ele escritas no século XX, como lembra a professora e crítica literária Leyla Perrone-Moysés. Esse escritor maldito, com uma obra hermética e fecunda, continua suscitando especulações, estudos e pesquisas. 

No Brasil, a primeira tradução de Os cantos de Maldoror é a do poeta, crítico e tradutor Claudio Jorge Willer (1940 – 2023), publicada em 1970, pela Vertente, com 2a. edição pela Max Limonad, em 1986. Em 1997, Willer publicou a obra completa de Lautréamont, pela Iluminuras, com 4ª. edição em 2014. Em 2017, foi lançada a tradução de Os cantos de Maldoror (Editora da Unicamp), pelo professor, ensaísta e tradutor Joaquim Brasil Fontes Júnior (1939 – 2019), que, além de obras autorais, traduziu a poesia de Safos de Lebos, Mallarmé, Eurípides, Sêneca, Racine e Baudelaire. Conquistou o 3o. lugar do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, de 1992, com o ensaio Eros, tecelão de mitos, e o Prêmio Jabuti de 2008, com a tradução de Hipólito e Fedra: três tragédias. Joaquim foi meu orientador de mestrado em Educação na Universidade Estadual de Campinas, nos anos 1980. Em 2017, dois anos antes de ele falecer, perguntei-lhe se era ele o autor do parecer anônimo que recomendou a publicação, pela Editora da Unicamp, em 1991, de meu livro Em sobressaltos: formação de professora (3a. ed. em 2019, pela Oficina Universitária). O estilo e o conteúdo do parecer – um belo ensaio sobre o livro –pareciam ter sido escritos por algum erudito conhecedor de literatura clássica, cujo nome por décadas eu tentava, em vão, descobrir, pois gostaria de usar como prefácio à 3a. edição. Joaquim não pôde aceitar o convite e justificou, com suas inesquecíveis delicadeza e generosidade: estava envolvido outros projetos criativos.  Contou-me, entusiasmado, sobre suas então recentes publicações – o enigmático Nigredo: estudos de morte e dulia (Cultura e Barbárie, 2017) e a tradução de Os cantos de Maldoror. E me presenteou com exemplares dos livros autografados e uma poética, corajosa e enigmática constatação: “traduzir Lautréamont é entrar no coração da escrita da crueldade”.

Maria Mortatti - 23.08.2023