A publicação de sua obra mais famosa, o poema em prosa Les chants de Maldoror, composto de seis cantos com 60 estrofes não numeradas, foi iniciada em agosto de 1868, com a impressão, na França, de um livreto contendo apenas o “Canto I” e assinado por três asteriscos, sem nome do autor. Em 1869, também em publicação anônima, foi impresso na Bélgica, mas não distribuído. Nesse país, em agosto de 1869, foi impressa a obra completa, com os seis cantos, assinada com o pseudônimo Conde de Lautréamont, sem referência ao editor e que também não pôde ser comercializada durante sua vida, porque, segundo alguns críticos, os editores temiam processos jurídicos por imoralidade, como o então recentemente ocorrido contra Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Ducasse não conheceu o sucesso em vida, mas, após sua morte, começou a ser descoberto e admirado. Em 1870, os livretos Poésies I e Poésies II foram editados em Paris e assinados por Isidore Ducasse. Em 1890, seus livros foram reeditados, receberam críticas favoráveis, foram conquistando admiração de leitores, o autor foi redescoberto e admirado pelos surrealistas, como André Breton e Salvador Dalí, inspirou vanguardas artísticas do século XX e continua causando admiração e perplexidade, com sua literatura marcada pela “mistura impura de gêneros” – lírico, épico e dramático –, em diálogo com “toda a herança literária do Ocidente, de Homero até os contemporâneos do poeta uruguaio, passando por Dante e Mílton, sem falar na mídia jornalística (que nascia naquele momento) e em toda a ciência da época – medicina, física, história natural – às vezes colhida em manuais de divulgação”, nas palavras do professor, ensaísta e tradutor Joaquim Brasil Fontes.
Em Les chants de Maldoror, que o autor classifica como “incandescente”, o personagem principal, Maldoror – palavra cuja origem permanece misteriosa, mas provavelmente deriva da junção de “mal” e “horror”, em espanhol – é uma terrível criatura esquelética, armada com um estilete e inimiga do Criador, que dedica sua vida ao mal e cuja violência de palavras e de ações, fantasias cruéis e ameaças ao leitor evocam o Marquês de Sade e a “literatura do mal”. A crueldade do personagem e os mistérios sobre a vida do autor fizeram proliferarem histórias sobre ele na França e no Uruguai, que se tornaram lendas sobre um Conde de Lautréamont sobrenatural e maldito, inventadas de certo modo por ele mesmo, que escreveu em Os cantos de Maldoror: "Meu aniquilamento será completo" e em Poesias: "Não deixarei memórias", contribuindo para enigmas persistentes, apesar das biografias sobre ele escritas no século XX, como lembra a professora e crítica literária Leyla Perrone-Moysés. Esse escritor maldito, com uma obra hermética e fecunda, continua suscitando especulações, estudos e pesquisas.
No Brasil, a primeira tradução de Os cantos de Maldoror é a do poeta, crítico e tradutor Claudio Jorge Willer (1940 – 2023), publicada em 1970, pela Vertente, com 2a. edição pela Max Limonad, em 1986. Em 1997, Willer publicou a obra completa de Lautréamont, pela Iluminuras, com 4ª. edição em 2014. Em 2017, foi lançada a tradução de Os cantos de Maldoror (Editora da Unicamp), pelo professor, ensaísta e tradutor Joaquim Brasil Fontes Júnior (1939 – 2019), que, além de obras autorais, traduziu a poesia de Safos de Lebos, Mallarmé, Eurípides, Sêneca, Racine e Baudelaire. Conquistou o 3o. lugar do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, de 1992, com o ensaio Eros, tecelão de mitos, e o Prêmio Jabuti de 2008, com a tradução de Hipólito e Fedra: três tragédias. Joaquim foi meu orientador de mestrado em Educação na Universidade Estadual de Campinas, nos anos 1980. Em 2017, dois anos antes de ele falecer, perguntei-lhe se era ele o autor do parecer anônimo que recomendou a publicação, pela Editora da Unicamp, em 1991, de meu livro Em sobressaltos: formação de professora (3a. ed. em 2019, pela Oficina Universitária). O estilo e o conteúdo do parecer – um belo ensaio sobre o livro –pareciam ter sido escritos por algum erudito conhecedor de literatura clássica, cujo nome por décadas eu tentava, em vão, descobrir, pois gostaria de usar como prefácio à 3a. edição. Joaquim não pôde aceitar o convite e justificou, com suas inesquecíveis delicadeza e generosidade: estava envolvido outros projetos criativos. Contou-me, entusiasmado, sobre suas então recentes publicações – o enigmático Nigredo: estudos de morte e dulia (Cultura e Barbárie, 2017) e a tradução de Os cantos de Maldoror. E me presenteou com exemplares dos livros autografados e uma poética, corajosa e enigmática constatação: “traduzir Lautréamont é entrar no coração da escrita da crueldade”.
Maria Mortatti - 23.08.2023