O mês de agosto de 2023, provavelmente, ficará na história do livro impresso no Brasil. No dia 31 de julho de 2023, por meio de matéria publicada na Folha de S. Paulo, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, comandada por Renato Feder, comunicou que “SP abre mão de verba para material didático e usará só livro digital a partir do 6º ano” e que o governo estadual não aderiu ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC) e utilizará material didático produzido pela Secretaria de Educação do Estado. A notícia caiu como uma bomba em toda a cadeia do livro. Alunos, educadores, escolas, editoras, gráficas, livrarias e papeleiros – por meio das respectivas entidades e associações – protestaram e, numa mobilização jamais vista, foram à luta.
De acordo com a matéria, a gestão do Governador do Estado de São Paulo Tarcísio de Freitas estava abrindo mão de participar do PNLD, em que os livros didáticos são comprados com verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) do MEC e distribuídos gratuitamente às escola públicas. E ainda que, a partir de 2024, na rede de ensino paulista, a partir do 6º ano do ensino fundamental, seria utilizado apenas conteúdo didático digital, não mais o livro impresso.
A justificativa dada pelo Secretário Renato Feder foi que buscava manter "a coerência pedagógica", algo assim. Com a decisão, o governo paulista estava abrindo mão de um montante de cerca de R$ 120 milhões, referentes aos livros didáticos impressos que mais de 1,4 milhão de alunos deixarão de receber no próximo ano. Considerando todos os componentes curriculares, mais de 10 milhões de livros deixarão de ser impressos e distribuídos na rede estadual de ensino paulista.
Segue síntese dos acontecimentos em ordem cronológica, compilados de matérias da Folha de S. Paulo, que cobriu o "imbróglio" com propriedade e credibilidade. Cabe a observação: O Estado de São Paulo, Valor Econômico e outros órgãos da imprensa também foram pontuais e coerentes na cobertura do assunto.
Folha de S. Paulo – 2 de agosto de 2023: Renato Feder, Secretário da Educação do Estado de São Paulo, declarou que os livros didáticos “escolhidos” pelo MEC “perderam conteúdo, profundidade e estão superficiais” e que os alunos da rede pública paulista receberão 20 mil celulares, que foram “apreendidos” pela Receita Federal e doados ao governo paulista para esse fim.
Folha de S. Paulo – 2 de agosto de 2023: O deputado estadual Carlos Giannazi acionou o Ministério Público Estadual contra a decisão do governo paulista de utilizar somente livro digital a partir do 6º ano do ensino fundamental. No ofício endereçado ao Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, o deputado afirma que a decisão é "absurda", "vai na contramão de vários estudos" e "amplia o uso de tela na infância e adolescência – causador de muitos transtornos de ansiedade – e outros tantos pelo uso excessivo da tecnologia". A Secretaria da Educação respondeu que "permanece ativa no Programa Nacional do Livro e do Material Didático para a distribuição de livros literários."
Folha de S. Paulo – 3 de agosto de 2023: “Sem TV ou computador nas salas, professores têm que imprimir livro digital do governo de SP.” "A Secretaria reconhece que ainda trabalha para que todas as escolas tenham a infraestrutura necessária para usar esse material." A Folha teve acesso ao material, que consiste em uma série de slides com conteúdo das disciplinas e atividades a serem desenvolvidas em sala de aula. O material deveria ser apresentado aos alunos em aparelhos de TV, lousas digitais ou projetor. Como não há esses equipamentos em todas as salas de aula, os professores têm sido instruídos a imprimir os slides e entregar aos estudantes, para que possam acompanhar as aulas.
Folha de S. Paulo – 3 de agosto de 2023: “Ministério Público decide investigar decisão do governo Tarcísio de usar só livro digital nas escolas”. A promotora Fernanda Cassiano cobrou explicações da Secretaria da Educação e questionou o impacto negativo pedagógico e na saúde. Ao abrir o inquérito, a promotora questionou o fato de que, com essa decisão, o governo optou por abrir mão de R$ 120 milhões que receberia do PNLD. Essa é a primeira vez em que o estado de São Paulo fica fora do programa federal destinado a comprar livros didáticos para os estados com verbas do FNDE e distribui-los gratuitamente às escolas públicas. A promotora Fernanda Cassiano cobrou também uma resposta sobre os impactos pedagógicos da adoção de obras apenas digitais e sobre os prejuízos do uso excessivo de tecnologia na infância e na adolescência. Para especialistas, livros digitais não favorecem a retenção de conteúdos de ensino da mesma forma que os impressos, além de levar crianças e adolescentes a exposição ainda maior à tela.
Folha de S. Paulo – 4 de agosto de 2023: “Material didático do governo de SP é raso e pouco confiável, dizem autores de livros didáticos”, conforme relatório produzido pela Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale). Essas e outras críticas contidas no relatório foram encaminhadas pela reportagem da Folha à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que respondeu que elas "estão descontextualizadas, são parciais e desconsideram que as aulas se relacionam com conteúdos que serão desenvolvidos em aulas futuras, inclusive de forma interdisciplinar, conforme práticas consagradas de planejamento escolar".
Folha de S. Paulo – 4 de agosto de 2023: “MEC vai cobrar governo Tarcísio sobre livros comprados e prevê confusão na rede de SP”. “Uso das obras já adquiridas é obrigatório, afirma pasta federal”. A decisão do governo de Tarcísio de Freitas não foi precedida de discussão com gestores e professores. Conforme a Folha apurou, é atribuída exclusivamente ao Secretário da Educação, Renato Feder, a decisão de abandonar o PNLD. Nem mesmo a Coordenadoria Pedagógica (Coped) vinculada a essa pasta foi acionada para realizar quaisquer estudos sobre o impacto, assim como o assunto não foi levado às escolas ou diretorias de ensino. O MEC vai oficiar o governo Tarcísio sobre essa obrigatoriedade, uma vez que as compras já foram realizadas no primeiro semestre de 2023. Foi somente em 20 de julho de 2023 que Renato Feder formalizou o abandono do programa para os anos finais do ensino fundamental. Técnicos da área de coordenação pedagógica das escolas estaduais paulistas dizem ter sido pegos de surpresa com o anúncio dessa decisão. Eles não foram consultados pelo Secretário da Educação sobre o impacto para a organização das escolas ou se o material produzido pela Secretaria é suficiente para contemplar todas as necessidades pedagógicas dos alunos. Um mês antes de Feder formalizar o abandono do programa, o coordenador da Coped, Renato Dias, reunira-se com diretores de ensino para orientar e elaborar um cronograma com as escolas para a escolha do material didático do PNLD 2024.
Folha de S. Paulo – 4 de agosto de 2023: “Ensino sem papel” – "Medida que abandona livro didático impresso em SP é abrupta e pouco transparente." Há muito açodamento e pouca transparência. Uma política que impactará 1,4 milhão de estudantes paulistas no ensino fundamental não deve ser implementada de forma abrupta e sem consulta pública. O governo estadual também não especifica qual será o processo de criação e avaliação do material didático digital que pretende utilizar. Segundo pesquisadores, nenhum país que faz amplo uso de recursos digitais abandonou completamente os livros impressos. A nova medida pode aprofundar desigualdades, dado que nem todas as escolas têm a mesma infraestrutura tecnológica e nem todos os alunos têm acesso aos dispositivos em casa – como ficou evidente durante a pandemia.
Folha de S. Paulo – 5 de agosto de 2023: “Crise de leitura – o que dizem os estudos que levaram a Suécia a retomar livros em papel.” Um dos países com melhores resultados educacionais no mundo, a Suécia se amparou em resultados de pesquisas científicas e em resultados de seus alunos em avaliações internacionais, para decidir retomar os livros didáticos em papel. Ao longo dos últimos 15 anos, aquele país vinha substituindo gradualmente o livro impresso por materiais digitais. A ministra das Escolas da Suécia, Lotta Edholm, em artigo publicado em dezembro de 2022 em um periódico sueco, reuniu conclusões de prejuízos com a ausência dos livros impressos. Um estudo recente da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura alertou para os riscos do uso de celular em sala de aula e sobre a escassez de evidências de impacto positivo da tecnologia digital na educação. O Instituto Reúna – que colabora para a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – realizou pesquisas que abordam a experiência de 11 países que adotam livros didáticos digitais. O estudo foi motivado por evidências de que a grande maioria dos professores brasileiros têm no livro didático o principal recurso de trabalho.
Folha de S. Paulo – 5 de agosto de 2023: “Após pressão, governo de SP recua e vai imprimir e encadernar livro digital para alunos”. Após repercussão negativa, o governador Tarcísio de Freitas voltou atrás na decisão de abandonar o livro impresso e informou que o governo paulista também vai oferecer material didático impresso para os alunos da rede estadual de ensino. Segundo Tarcísio, o governo tem mais de 6.000 aulas preparadas, e o material digital garantiria o acesso ao mesmo conteúdo em todas as regiões do estado. "Tudo vira polêmica, mas assim, eu acho que as coisas às vezes são mal comunicadas por nós mesmos."
Folha de S. Paulo – 16 de agosto de 2023: “Justiça dá liminar, e gestão Tarcísio desiste de abandonar programa de livros do MEC”. Juiz deu liminar proibindo saída do governo paulista do PNLD. Pouco depois, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo confirmou que permanecerá no programa no próximo ano. "A decisão de permanecer no programa no próximo ano se deu a partir da escuta e do diálogo com a sociedade, que resultou no entendimento de que mais esclarecimentos precisam ser prestados antes de que a mudança seja efetivada", afirmou a pasta chefiada por Renato Feder. A liminar foi concedida pelo juiz Antônio Augusto Galvão de França, em resposta a uma ação popular movida pela deputada federal Luciene Cavalcante, pelo deputado estadual Carlos Giannazi e pelo vereador Celso Giannazi. Em resposta ao Ministério Público Estadual, a Secretaria da Educação paulista admitiu não ter consultado professores e nenhum dos órgãos de gestão democrática do sistema estadual de ensino (Conselho Estadual de Educação, Conselhos de Escolas ou os grêmios estudantis).
Folha de S. Paulo – 16 de agosto de 2023: “Governo Tarcísio recua e pede ao MEC para receber livros didáticos”. Após críticas e ações na Justiça, o governo de Tarcísio de Freitas recuou e pediu ao MEC para receber os materiais do PNLD, vinculado ao governo federal. O recuo foi anunciado à imprensa somente após a Justiça conceder, por volta das 21h, uma liminar que suspendia a decisão da Secretaria da Educação paulista de não aderir ao programa federal. No ofício encaminhado ao Ministro da Educação Camilo Santana, o Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Renato Feder, informou que a pasta decidiu reconsiderar e aderir ao programa "levando em conta o diálogo com a sociedade".
Folha de S. Paulo – 16 de agosto de 2023: “Amadorismo” – Recuo de Tarcísio nos livros didáticos mostra governador pouco convicto. A administração pública de um estado populoso e relativamente rico como São Paulo pode ser comparada a um transatlântico. O governante, no timão, precisa planejar muito bem e com grande antecedência as manobras relevantes que deseja realizar para que elas aconteçam satisfatoriamente à frente. O que ocorreu no episódio dos livros didáticos foi amadorismo.
Folha de S. Paulo – 17 de agosto de 2023: “Gestão Tarcísio sofre série de reveses no plano de digitalizar ensino”. Governo paulista rescindiu contrato para compra de livros de literatura digitais, um dia depois de anunciar volta a programa do MEC que fornece gratuitamente livros didáticos impressos. A Secretaria da Educação divulgou a informação que rescindiu o contrato para a compra de 200 milhões de livros digitais de literatura, o que, conforme a Folha revelou, seria feito sem licitação. O anúncio ocorreu menos de 12 horas após a Secretaria da Educação comunicar ter desistido de outra medida, o abandono do PNLD do governo federal, que compra livros didáticos para serem distribuídos gratuitamente para as escolas públicas. Ambas as iniciativas faziam parte do plano de Renato Feder de acelerar a digitalização do ensino na rede estadual paulista, o que esbarra na falta de estrutura de parte das escolas, entre outros problemas. Segundo a Folha apurou, isolado e sem apoio de educadores, Feder já planejava voltar atrás na medida, ao menos desde o fim da semana anterior, e conversava, com discrição, com integrantes do MEC.
No dia 10 de agosto de 2023, a pedido da Abrelivros – Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais, foi agendada entre as principais entidades da cadeia produtiva do livro e a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo uma reunião para “esclarecimentos” frente às decisões tomadas pelo governo paulista. Compareceram 15 representantes das seguintes entidades: Abrelivros, CBL – Câmara Brasileira do Livro, Abigraf – Associação Brasileira da Indústria Gráfica, SNEL – Sindicato Nacional dos Editores de Livros e IBÁ – Instituto Brasileiro de Árvores, representando fabricantes de papel editorial. A reunião marcada inicialmente para começar às 10 horas da manhã, na sede da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, na Praça da República, n. 51, aconteceria, a princípio, com o corpo técnico pedagógico e a equipe da Secretaria da Educação. Por iniciativa do Secretário da Educação, Renato Feder, em e-mail enviado à Abrelivos, foi solicitada a transferência do horário da reunião para às 17 horas, justificando, que também ele participaria. Observa-se que o e-mail seguiu com cópia aberta para o grupo de trabalho do Secretário da Educação. Às 17 horas, em ponto, adentramos na sala de reuniões, aguardando, então, Renato Feder. Um representante da cadeia produtiva do livro, do setor de papéis, atrasou-se em alguns minutos. Ao entrar na sala de reuniões, comentou: “Dei de cara com o Secretário Feder descendo as escadas em disparada, indo embora!”. Foi o que aconteceu, lamentavelmente. Fomos recebidos pelo secretário-executivo da pasta, Vinicius Mendonça Neiva, e pela chefe de gabinete, Myrian Prado. As explicações dadas pela equipe foram vagas e confusas, frustrando a todos. E o que deixou surpresos os membros da cadeia produtiva do livro foi o encerramento da reunião, interrompida abruptamente pelo secretário-executivo, alegando outro compromisso, e foi também a falta de educação dos representantes da Secretaria, que, simplesmente, viraram as costas e foram embora, sem sequer cumprimentar os presidentes de entidades e profissionais da cadeia produtiva do livro. Isso talvez explique o despreparo e o vai e vem, com as informações truncadas e errôneas, por parte da Secretaria, que obscureceram o trágico mês de agosto vivido por toda a cadeia produtiva do livro. Um dos poucos e raros momentos de lucidez, durante a reunião e também na imprensa, foi quando reconheceram que se comunicam mal. Acontece.
João Scortecci