“Entre comer e saber comer, a diferença é apreciável”: esse aforismo define o preceito básico do mais perene livro de culinária brasileiro: Dona Benta – Comer bem, lançado em 1940, pela Companhia Editora Nacional, fundada em 1925, pelo editor, escritor e tradutor Monteiro Lobato e o editor Octalles Marcondes, e adquirida pelo Grupo IBEP, em 1965. Quando do lançamento de Dona Benta, já tinham sido publicados no Brasil outros livros do gênero, como O cozinheiro imperial ou nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os ramos (1840), de R. C. M.; e O cozinheiro econômico das famílias (1901), de Carmen Debora, ambos editados por irmãos Laemmert (RJ). Mas o “livro da Dona Benta” – como ficou conhecido – é o mais duradouro no mercado editorial e na preferência do público. Foi sendo reeditado nas décadas seguintes, com crescentes atualizações de conteúdo e de projeto gráfico e atualmente se encontra na 78ª. edição, totalizando milhões de exemplares vendidos. Durante mais de 80 anos de circulação, mesmo depois que o gênero conquistou espaço editorial e se popularizou, "Dona Benta" se consolidou como referência na tradição culinária brasileira, fonte para pesquisas sobre história da alimentação, inspiração para marcas de ingredientes culinários e, sobretudo, como referência afetiva na memória de gerações de brasileiras que o “herdam” de mães e avós.
O “livro da Dona Benta” era também o livro de receitas de minha mãe. Não o herdei, mas ganhei de presente de casamento um exemplar da 56ª. edição “revista e experimentada”, de 1978, com capa dura, 581 páginas, “com 1001 receitas de bons pratos, 765 milheiros – com um apêndice contendo 124 ilustrações a cores e receitas especiais”, índice alfabético (parte geral, salgados, doces, bebidas), bibliografia culinária – com 18 referências de livros, a maioria em francês, além de português, italiano, espanhol e aquele brasileiro, de 1901 –, finalizando-se o volume com folhas pautadas para anotações manuscritas. O livro contém informações sobre alimentação e saúde, descrição e função detalhada de utensílios de cozinha e copa, ingredientes e modo de preparo de receitas de salgados, doces e bebidas, para ocasiões mais rotineiras ou mais sofisticadas e de várias regiões brasileiras. Embora na capa, em todas as edições, conste o nome de Dona Benta, personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criado por Lobato, não se trata de indicação de autoria nem de compilação por ele ou por um único autor. Segundo a pesquisadora Renata da Silva Simões, com base em “depoimentos de funcionárias do Centro de Memória da IBEP-Nacional, em reuniões entre os editores e suas esposas eram testadas e degustadas algumas receitas que posteriormente compiladas originaram o Dona Benta.” E chama a atenção para o nome dessa personagem ter sido escolhido como título do livro e ser dela a imagem estampada na capa – com avental, sorridente e oferecendo um bolo apetitoso a uma menino – pois, no Sítio, Dona Benta era a avó contadora de histórias, e a cozinheira e quituteira era a personagem negra Tia Nastácia.
Talvez por eu ser pouco afeita às lides de "dona-de-casa" – em especial as culinárias –, depois de um tempo de uso, que chegou a deixar manchas de alimentos na páginas, mais do que livro de forno e fogão, tornou-se um de meus livros de cabeceira do rio da poesia e de histórias inspiradas pela personagem lobateana. De lá, extraí o “aforismo“ com que inicio este texto, que usei como epígrafe no poema “Receita de ambrosia”, de 1989, inspirado na receita de Dona Benta, e o retomei no livro Receita de ambrosia – peça didática (Editora Unesp), de 2020, ambos tendo como tema a relação afetiva entre professora e alunos, representada com a metáfora da ambrosia: manjar dos deuses do Olimpo que dava imortalidade aos humanos e, no Brasil, doce feito com ovos e açúcar. De Dona Benta me lembrei novamente, quando, há alguns dias, numa roda literária em que apresentava meu livro Mulher enlouquecida (Scortecci Editora, 2023), Ana Vicari, uma jovem estudante do grupo PET Biblioteconomia da Unesp – campus de Marília, perguntou como “nascem” meus poemas, de onde vem a inspiração, como é o processo criativo. De imediato, respondi que a poesia não tem hora para chegar nem para partir. Exige escuta e trabalho intensos com a palavra. Raras vezes o poema chega inteiro e pronto, como uma revelação. Muitas vezes é despertado por um sentimento, uma ideia ou uma palavra obsedante que se instala como um mistério a ser desvendado. Exemplifiquei com meus poemas “Poética” e "Ex líbris", com “A procura da poesia”, de Drummond, e “Alguns gostam de poesia”, de Szymborska. E acrescentei que nem todas as palavras convidam à poesia. Contei o caso da palavra “rabada”, que estava me deixando encafifada, havia alguns dias, desde que comecei a reparar que, com frequência, havia uma fumegante caçarola com a etiqueta “Rabada” sobre o balcão dos restaurantes self-service, nos quais costumo almoçar alternadamente. Sem dúvida, um prato apreciado pelos frequentadores. Curiosa, perguntei a uma jovem mulher atrás de mim na fila, que confirmou, sem muita convicção. No dia seguinte, perguntei a um homem de meia para mais idade, na fila à minha frente, que também confirmou, explicou do que era feito, que é preciso muito tempo de preparo e que, se para alguns é “comida de pobre”, por ser feito com parte barata e pouco nobre da vaca, para outros, é uma iguaria e muito recomendado e apreciado para aquecer em dias frios e por suas propriedades terapêuticas. Não me contive: “Mas quem gosta de comer rabo de vaca?” “Meu pai adora! Eu também!”, exclamou, entusiasmado. Pelas reações das estudantes, algumas sorrindo, outras com ar de estranhamento, comentei que essa palavra provavelmente não me motivaria a escrever um poema; se persistisse, talvez me instigasse a uma crônica.
Depois daquela conversa, recorri a Dona Benta. E lá estava a receita de rabada, com o título “Rabo”, descrição detalhada de ingredientes e modo de preparo, finalizando com duas experientes recomendações: “poderá juntar também ½ copo de vinho branco, o que torna o prato mais gostoso. Sirva bem quente, com o próprio molho que se formou”. Muitas páginas depois, localizei a receita de ambrosia e o conselho: "quando for retirada do fogo, junte a água de flor". Nas páginas finais do livro, anotei o cardápio para a próxima festa: prato principal – rabada regada com vinho branco e servida bem quente; sobremesa – ambrosia regada com água de flor e servida como manjar dos deuses. E, para constar no convite – ainda que tentada a metáforas gastronômicas chulas, como "Quem tem pressa come cru" –, seguindo a receita de Dona Benta, preparei este refinado aforismo: "Saber comer é uma arte.”
Maria Mortatti – 04.09.2023