Em seu discurso no banquete de premiação com o Nobel de Literatura de 1949, o escritor estadunidense William Faulkner (25.09.1897 – 06.07.1962) assim expressou sua compreensão sobre a finalidade e o dever de todo escritor:
Eu me recuso a aceitar [o fim do homem]. Acredito que o homem não apenas resistirá: ele prevalecerá. Ele é imortal, não porque só ele entre as criaturas tenha uma voz inesgotável, mas porque tem uma alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício e resistência. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É seu privilégio ajudar o homem a perseverar, elevando o seu coração, lembrando-lhe a coragem, a honra, a esperança, o orgulho, a compaixão, a piedade e o sacrifício que foram a glória do seu passado. A voz do poeta não precisa ser apenas o registro do homem, pode ser um dos suportes, os pilares para ajudá-lo a resistir e a prevalecer”. (Tradução livre)
Sobre “essas coisas” Faulkner escreveu em seus romances e contos, que lhe renderam o reconhecimento como um dos maiores romancistas do século XX e a premiação com o Nobel por "sua poderosa e única contribuição ao romance americano moderno", o National Book Award, em 1951, e o Prêmio Pulitzer de ficção, em 1955 e 1962. Reconhecia a influência de diversos escritores, tais como Proust, Joyce, Twain, Keats, Dickens, Conrad, Balzac, Bergson e Cervantes e, sobretudo, Shakespeare, o qual desde sua juventude, Faulkner se propunha a “superar”, quando escrevia poemas sobre temas românticos. Ao longo de sua carreira como romancista, intercalou atividade de roteirista de cinema em Hollywood, para sustento financeiro de sua família: a esposa Estelle Oldham, com que se casou em 1929 e que já tinha dois filhos, e a filha do casal. Iniciou-se na prosa com o romance Sartoris (1928) e, provavelmente decepcionado com a rejeição inicial do livro por leitores e críticos, quando começou a escrever O som e a fúria (1929) decidiu não se importar com os editores nem com o leitor ideal e passou a escrever em estilo mais livre. “Eu disse a mim mesmo: 'Agora eu posso escrever'". E conta ter escrito para si e com prazer. Em contraste com o de Hemingway, seu contemporâneo, o estilo de Faulkner é caracterizado pela técnica do fluxo de consciência, narração fragmentada, com idas e vindas no tempo, peculiares pontuação, dicção e ritmo, períodos gramaticais extensos, muitos personagens com diferentes vozes narrativas, como ex-escravos ou descendentes, brancos pobres, agricultores, trabalhadores e aristocratas, abordando a decadência econômica e moral do Sul dos Estados Unidos da América, após a Guerra da Secessão (1861 e 1865). Nos seus mais densos romances, a ação se passa no fictício Condado de Yoknapatawpha, evocando a presença, em sua obra, do estado de Mississippi, onde o escritor nasceu, passou grande parte da vida e morreu, de ataque cardíaco, com 64 anos de idade.
Mas não se conhece de fato um escritor, senão lendo sua obra. E, mesmo com as advertências sobre a complexidade estilística da obra de Faulkner, sempre é melhor começar. Assim fiz. E logo fui enredada pelos três primeiros que li, nos anos 1980. The sound and the fury (1929) – O som e a fúria, na tradução brasileira de Fernando Nuno Rodrigues, pela Nova Fronteira (1983) –, que Faulkner considerava o romance cuja escrita lhe causou êxtase inigualável e marca o início das características estilísticas de sua obra, sendo considerado pela crítica como obra central da ficção do século XX. Com título extraído de um verso do célebre monólogo de Macbeth, de Shakespeare, trata-se da história da última geração dos Compson, entre 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928, narrando a decadência da família em que, no passado, houve homens poderosos, “uma sombria história de loucura e ódio”, nas palavras do autor. Num dos mais simbólicos diálogos do romance, o patriarca decaído entrega o relógio ao filho Kentin, dizendo: “[o relógio] eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que o possa esquecer por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo.” Não houve tempo, talvez, pois Kentin cometeu suicídio logo depois, tendo ferido a mão ao tentar destruir o relógio.
As I lay daying (1930) – Enquanto agonizo, na tradução brasileira de Hélio Pólvora, pela Expansão Editorial (1978) –, que Faulkner escreveu nas madrugadas em seu turno de trabalho nas caldeiras da Universidade de Mississipi, contém narrativa fragmentada, com “ausência” do escritor no relato e narração direta pelos personagens da história da família Bundren, de brancos pobres dos Sul dos Estados Unidos, na época da decadência agrícola, que viaja para a cidade de Jefferson, levando, em uma carroça, o caixão da mãe, Addie, a quem o marido prometera cumprir esse seu último desejo. A narrativa é marcada por peripécias trágicas. Enquanto ela agoniza, da janela de seu quarto, vê o filho Cash preparando o caixão, e, no trajeto, têm de atravessar um rio e depois salvar o caixão de um incêndio. Após o sepultamento, o marido Anse aparece de dentadura nova, bem arrumado e com uma nova esposa. Nesse romance está o capítulo talvez mais breve da literatura, contendo apenas as cinco palavras do monólogo interior do filho mais novo, Vardaman, que associa a morte da mãe com a de um peixe que ele tinha pescado e limpado pela manhã: “Minha mãe é um peixe”.
Absalão, Absalão (1936) – tradução brasileira de Sônia Regis, Nova Fronteira (1981) –, traz a referência no título e também na trama à história bíblica de Absalão, filho de Davi, que mata o irmão Amnom, ao saber de sua relação incestuosa com sua irmã, Tamar. No romance de Faulkner, também fragmentado com lembranças e episódios do passado, é narrada, por vários personagens, a história de ascensão e queda de Thomas Sutpen, originário de vida miserável no estado de Virginia, que se torna o maior plantador de algodão do condado de Yoknapatawpha, e que, no contexto da Guerra Civil e da segregação racial, tentou criar uma dinastia familiar, mas sobre sua casa e estirpe pesou a maldição: o incesto, o fratricídio e o conflito entre pai e o filho que o traiu. Ambientado entre 1909 e 1910, o enredo amplia a história do personagem Quentin, que cometeu suicídio em O som e a fúria.
Com esses e outros importantes romances e contos que se seguiram até sua morte, além de alguns poemas inéditos, apesar de críticas a seu estilo e objeções a suas representações "insensíveis" de mulheres e negros norte-americanos, a obra de Faulkner continua influenciando escritores em outros países, incluindo os da América do Sul. Em 1954, ele publicou The Faulkner reader, com uma seleção de seus textos de três décadas anteriores, incluindo O som e fúria, e acrescentou um prefácio, no qual resume seu “credo”: o escritor escreve “para elevar o coração do homem”.
Algum dia [ele] não mais existirá, o que pouco importará, porque permanecem, destacadas e invulneráveis na impressão fria, as palavras ainda capazes de suscitar a antiga emoção imortal nos corações e glândulas cujos proprietários e depositários são as gerações provenientes do ar que ele respirou e no qual se angustiou. (Tradução livre)
Maria Mortatti – 24.09.2023