“Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. (...) Arte é isso. (...) Revele-se toda.” Esse trecho se encontra na carta de Graciliano Ramos (27.10.1892 – 20.03. 1953) dirigida a sua irmã Marili, a propósito de um conto que ela escrevera. Li recentemente a carta, mas esses conselhos – que o escritor expõe e realiza, em sangue e carne, em sua obra – ecoam na memória de leitora e em meu ofício de escritora. Desde os primeiros que li nos anos 1970 – São Bernardo, Angústia, Vidas secas – e os que se seguiram, como: A terra dos meninos pelados, Histórias de Alexandre, Infância, Memórias do cárcere, Viventes das Alagoas, Alexandre e outros heróis, admirei o estilo conciso, direto e encantatório de Graciliano. E cada vez que me ponho a escrever, sinto-me um pouco como “o menino mais velho”, personagem de Vidas Secas, que “nunca tinha ouvido falar em inferno”. Perguntou à mãe, Sinhá Vitória, ao pai, Fabiano, e à cachorra Baleia. O pai não deu atenção, a mãe lhe disse que era um lugar ruim e, quando quis saber se ela tinha visto, Sinhá Vitória “zangou-se e aplicou um cocorote”. Consolou-se com Baleia, contando-lhe histórias com seu vocabulário minguado, valendo-se de exclamações e gestos, e a cachorra respondendo com o rabo e a língua. Quando me pus a escrever este texto, esse episódio voltou à memória, simbolizando a obcecada busca de Graciliano pela palavra essencial, outro e complementar conselho seu em carta a tradutores argentinos: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”. Provavelmente não consegui encontrar palavras essenciais para dizer minha admiração por sua obra, mas ao menos busquei a concisão e não desomenageei o escritor, com enfeites e ouros falsos. Seus conselhos continuam vivos como aprendizado sobre o inferno que é o ofício de escritora na busca obsessiva para me revelar em sangue e carne. Arte é isso?
Maria Mortatti – 27.10.2023