Dez cartas – idas e vindas – e nenhuma poesia! O poeta checo Rilke (Rainer Maria Rilke, 1875 – 1926), em carta enviada ao jovem jornalista e cadete austríaco Franz Xaver Kappus (1883 – 1966), que ambicionava ser um poeta: “Ninguém de fora pode julgar se um autor deve continuar ou desistir de escrever: cada artista precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se entende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Na biografia de Kappus encontrei romances, roteiros e nenhuma poesia. Teria desistido? Viver Rilke e nunca ter “cometido” um poema? Impossível. Pergunta: O que teria acontecido com a décima primeira carta? Existiu de fato? De duas, uma: escrita e nunca enviada – ou nunca respondida? Ficou o mistério. Encontrei na Carta n. 7 um soneto de Rilke dedicado ao jovem Kappus: “Treme sem queixa por meu coração,/sem suspiro, uma dor muito sombria./ Só dos sonhos a nívea floração/é a festa de algum mais tranquilo dia.//Tanta vez a grande interrogação/se me depara! Encolho-me, e com fria/ timidez passo, como passaria/por bravo mar, sem aproximação.//Desce, então, sobre mim, turva amargura/como esses céus cinzentos de verão/onde uma estrela às vezes estremece.//Tateantes, minhas mãos vão à procura/do amor, buscam palavras da oração/que meu lábio deseja e não conhece” Busco, desde então, encontrar – mesmo que perdido, que seja – um poema do jovem Franz, que confesse a si mesmo: “morreria, se lhe fosse vedado escrever?”. Cadê você, Rilke? Não o tenho visto na estante de livros. Deve ter sido “surrupiado” ou ido embora, simplesmente. Quando? Não sei. Relendo a primeira carta, de 17 de fevereiro de 1903, algo nas entrelinhas, ainda por dizer: “Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes.” Outro dia, um poeta – iniciante, talvez – enviou-me pelo WhatsApp um pedido cruel: “João, lê meu livro e depois me diga, com sinceridade, o que você achou.” Cadê você, poeta Rilke? Ajude-me! A palavra “sinceridade” no âmago do verso alheio incomoda-me, sempre. O que devo, então, dizer-lhe? Que o seu poema é belíssimo, intenso e feroz? Tudo verdade! Cinquenta anos de poesia e eu não fui capaz de escrever algo igual. Escrevi-lhe, então, mensagem de resposta: “Cada poeta precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Não desista!” Fui covarde. Quase morri de inveja. Tudo culpa de Rilke e do furo da rosa! O belo não é senão o início do terrível, algo assim.
João Scortecci