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O EXÍLIO E O REINO DE UMA (IM)PROVÁVEL LEITORA DE CAMUS / MARIA MORTATTI

 Para Rosina Longo Mortatti (in memoriam)

Franco-argelino, de origem pobre, apaixonado por futebol, tuberculoso crônico, combatente na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, casado com a linda e talentosa franco-argelina, professora de matemática e pianista Francine Faure (6.12.1914 – 24.12.1979) – sua segunda esposa e que organizou as edições póstumas de sua obra –, amante de outras e da “única”, a atriz espanhola exilada na França, María Casares: esse era o escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista, Albert Camus (7.11.1913 – 4.1.1960) que morreu com 46 anos de idade, vítima de um acidente de automóvel, às 13h55 do dia fatal, quando retornava a Paris, após ter trocado passagem de trem e aceitado insistente oferta de carona do amigo e editor Michel Gallimard, cujo carro perdeu a direção e se chocou contra uma árvore, causando também sua morte cinco dias depois, tendo se salvado apenas a esposa e a filha do editor e parte do manuscrito do romance autobiográfico inacabado, O primeiro homem, que Camus carregava na mala e foi publicado em 1944, por sua filha, Catherine Camus, que também fez publicar, pela Gallimard, em 2017, as 865 cartas de amor do pai para a atriz espanhola, a última delas escrita cinco dias antes de ele morrer. Laureado, aos 44 anos de idade, com o Nobel de Literatura de 1957, “pela sua importante produção literária, que com seriedade lúcida ilumina os problemas da consciência humana nos nossos tempos”, Camus é autor de vasta e diversificada obra, com romances, peças de teatro, ensaios filosóficos, entre outros, em que expõe e questiona o absurdo da condição humana e o paradoxal sentido da existência, como: nos romances O estrangeiro – seu primeiro do gênero, de 1942 –, A pesteA queda; nos ensaios O mito de Sísifo e O homem revoltado – este com duras críticas ao estalinismo, que lhe renderam polêmica pública com o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (21.06.1905 – 15.04.1980) –; nas peças de teatro Calígula e Os justos.

Esse era o roteiro do texto que eu preparava, até o momento em que, procurando Camus na estante de minha biblioteca, perdi a direção e topei com um exemplar de O Exílio e o Reino, publicado pela Edições Livros do Brasil – Lisboa, com pouco convidativa tradução por Cabral do Nascimento, sem data. Lançado na França pela Gallimard, em 1957 – ano em que o escritor recebeu o Nobel – L'Exil et le Royaume é seu único livro de contos e seu último livro de ficção publicado em vida. A edição portuguesa, provavelmente publicada nos anos 1960, contém seis contos – “A mulher adúltera”, “O Renegado”, “Os mudos”, “O hóspede”, “Jonas”, “A pedra que aumenta” (“cresce”, em outras traduções) –, cujos enredos se passam em lugares diferentes, como África, Europa e o último, no Brasil. A temática comum entre eles, expressa no título e identificável nas descrições do narrador e nos monólogos interiores e diálogos dos personagens, são as formas simbólicas do exílio – como solidão, insatisfação, inadaptação, impotência e culpa dos que se recusam a representar o papel que lhes é atribuído socialmente – e da árdua busca do reino prometido, o sentido da existência. Nas palavras do autor, o Reino “coincide com uma certa vida livre e despojada que teremos de reencontrar, para podermos enfim renascer. O Exílio, de certo modo, mostra-nos as vias de acesso a essa outra vida, desde que saibamos nele recusar ao mesmo tempo a servidão e a posse.” 

Folheando o exemplar com folhas amareladas e algumas manchas do tempo, chamou minha atenção a marginalia a lápis, à qual provavelmente não dei tanta importância quando o recolhi entre os pertences pessoais de minha mãe, após sua morte, em 2008: o nome – Rosina – na folha de rosto e os muitos sublinhados em trechos do primeiro e do último conto, além de dobraduras de “orelha” no topo das respectivas páginas iniciais. No primeiro conto, “A mulher adúltera”, Marcel e Janine, um casal de franceses, sem filhos, viaja por regiões de deserto para vender tecidos diretamente aos mercadores árabes. Ela o acompanha, entediada, por falta de coragem para recusar, e, ao longo do enredo, por meio de monólogos interiores, vai se configurando sua insatisfação e a crise existencial. O adultério se realiza simbolicamente, quando ela, mirando a imensidão e a beleza do deserto em contraste com seu vazio interior, dá-se conta de seu exílio – a vida sem sentido com o marido – e daquele reino que “sempre lhe fora prometido, mas que jamais o alcançaria – a não ser por este fugidio instante...”.  O último conto, “A pedra que aumenta”, foi inspirado em visita de Camus ao Brasil, em 1949, quando, levado por uma comitiva de que participavam Oswald de Andrade e seu filho, Rudá de Andrade, à cidade de Iguape, no litoral paulista, para conhecer a festa de Bom Jesus de Iguape, ficou impressionado com a diversidade e mistura de raças, com o sincretismo religioso, com a história da estátua do santo que foi encontrada num córrego e da pedra em que foi lavada, que crescia, mesmo depois de inumeráveis lascas arrancadas pelos romeiros em busca de milagres. Camus juntou depois essas observações com as da macumba que presenciou na cidade do Rio de Janeiro, acompanhado de Abdias do Nascimento. O protagonista do conto, d’Arrast, um engenheiro francês contratado para supervisionar a construção de uma represa em Iguape, surpreende-se com o sincretismo religioso, participa de culto em homenagem a São Jorge e ajuda um homem pobre e negro a cumprir a promessa de carregar uma pedra de 50 quilos, para agradecer por um milagre recebido do Bom Jesus.

No livro Albert Camus – Uma vida, relatando o acidente que causou a morte instantânea do escritor, o biógrafo Olivier Todd comenta: “A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel”. Quando folheei aquele exemplar de O Exílio e o Reino, inicialmente me pareceu meio absurdo que aquela mulher – não muito afeita à leitura e com pouco ou nenhum tempo disponível para esse tipo de lazer, depois do trabalho de professora e das tarefas domésticas, de esposa e mãe de quatro filhos – tivesse lido o livro e se interessado especialmente por esses dois contos. E me indaguei como o exemplar chegara a suas mãos. Teria sido pelo espólio de minha tia paterna, Irene, viúva de um livreiro paulistano, que não conheci? Ou de algum vendedor domiciliar, como alguns poucos livros que minha mãe comprava? E por que esses dois contos a impressionaram tanto, a ponto de neles deixar registrada a enigmática marginalia? Depois, porém, de reler os contos e escrever este texto, concluo que absurda foi minha primeira reação. Aquela (im)provável leitora provavelmente encontrou nos contos muitas de suas indagações sobre o paradoxal sentido da existência, entre a constatação do exílio solitário e a fé no reino prometido. Também eu e talvez a esposa e as amantes do escritor. Essa é a universal contribuição de Albert Camus, para leitores e leitoras de todos os tempos.

Maria Mortatti – 19.11.2023