Pesquisar

DEUS EX MACHINA, A SOLUÇÃO QUE CAI DO CÉU / MARIA MORTATTI

Deus ex machina” (“deus surgido da máquina”) – expressão originada do grego, mas difundida em Latim – designa o recurso técnico utilizado para solucionar desenlaces complicados em tragédias do teatro grego (e romano), como em algumas peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípides: um deus aparecia subitamente em cena, por meio de um mecanismo que o fazia descer do teto, podendo se elevar do solo e se movimentar. Em sua Arte poética, o filósofo grego Aristóteles (IV a.C.) advertia, porém, sobre os abusos desse recurso, quando não resultava da lógica interna do enredo: “Ao deus ex machina (...) não se deve recorrer senão em acontecimentos que se dão fora do drama ou no passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou pronunciados, – pois que aos deuses atribuímos nós o poder”. Outros poetas e filósofos gregos e latinos, como Antiphanes, Platão e Horácio, também criticaram o uso e o abuso do recurso.    

Um dos mais conhecidos usos desse recurso dramático e cênico está no desenlace da peça Medeia, de Eurípedes, encenada em 431 a.C. e baseada em antigo mito grego, mencionado na Odisseia, de Homero, e em peças anteriores do dramaturgo. A protagonista Medeia, filha do rei Eeta e neta do deus Helios – deus Sol na mitologia romana –, foge com Jasão, depois de ajudá-lo a conquistar o Velocino de Ouro e tramar a morte do rei Pélias. Mas, dez anos depois, Jasão a rejeita para se casar com Glauce, filha do rei de Corinto, que a expulsa da cidade com os filhos. Para se vingar, ela assassina Glauce, o rei Corinto e os filhos que teve com Jasão. Ao final da peça, perseguida por Jasão, Medeia é salva da morte pela carruagem de seu avô, Helios, a qual aparece subitamente no alto do palco, por meio do recurso ao deus ex machina, resgatando-a e os corpos dos filhos. Ela, então, foge para Atenas. 

Nesse caso, o deus ex machina é justificado por Aristóteles como necessário para o assombro/temor provocado pelas tragédias, argumento que foi criticado por Friedrich Nietzsche, no século XIX, pelo caráter “otimista” a representar uma falsa sensação de consolo. O recurso foi também utilizado nos “milagres” e “mistérios” – gêneros do teatro medieval, nos séculos XIII e XV, centrados nos milagres de Nossa Senhora, como a dea ex machina que intervinha miraculosamente no desenlace da peça – e pelos dramaturgos renascentistas. Até hoje pode ser identificado em peças de teatro, filmes, narrativas ficcionais e outras expressões artísticas, nem sempre, porém, como recurso necessário ao desenvolvimento ou desenlace do enredo, difundindo-se também críticas, como a de ser uma solução simplista, artificial e incoerente,  por vezes mero truque, que indica falta de capacidade do autor em resolver problemas dramáticos ou cênicos, prejudicando a verossimilhança e a qualidade da obra. Para outros críticos contemporâneos, o recurso se justifica, e seu uso deliberado se torna necessário para a aproximação com a audiência ou leitores ou mesmo para criar efeito cômico.

Por extensão, o recurso criado pelos gregos passou a ser usado correntemente em sentido figurado para indicar algo ou alguém que representa solução repentina e inesperada para um problema insolúvel ou que parecia ser. E, mesmo quando não se conhece a expressão ou não se sabe da história, o deus ex machina continua funcionando como solução – verossímil ou não, otimista ou não, mas que consola, ainda que temporariamente – para nossas cotidianas tragédias e comédias de meros mortais. Algo como a desejada solução que cai do céu.

Maria Mortatti – 27.12.2023