Selma Lagerlöf nasceu e viveu até os 24 anos em Mårbacka, propriedade da família na província sueca de Värmland. Leitora desde cedo, educada em casa como as jovens da época, começou a escrever ainda nessa época. Foi incentivada a publicar seus primeiros versos na revista literária feminista Dagny, fundada pela pioneira ativista dos direitos das mulheres no país, a baronesa Sophie Lejonhufvud Adlersparre (Esselde). Em 1885, formou-se professora e lecionou em escola para meninas em Landskrona, até 1895, quando se mudou para a cidade de Falun e passou a se dedicar apenas à carreira literária. Com a escritora sueca Sophie Elkan (1853-1921) – por quem se apaixonou –, entre 1895 e 1899 viajou para Itália, Egito, Palestina, França, Bélgica e Holanda, recolhendo material para seus livros. Com o dinheiro obtido com seus primeiros livros e com o prêmio Nobel, em 1910 realizou o antigo desejo de comprar de volta a propriedade da família, vendida para salvar dívidas do pai e do irmão. Lá passou a morar até a morte, continuando sua obra de escritora. Além das atividades de fazendeira, dedicou-se a causas feministas e humanistas. Após a morte da amiga escritora, Lagerlöf herdou seus pertences pessoais e converteu um cômodo de sua casa em Mårbacka em um museu dedicado a Sophie Elkan.
Sua obra literária é inspirada nas histórias e lendas populares do seu país, rompendo com o realismo predominante em sua época e inserindo-se na tradição do conto de autoria feminina na Suécia, iniciada com Fredrika Bremer (1801-1865), escritora e pioneira do movimento feminista no país. Em 1891, Selma Lagerlöf publicou seu primeiro romance Gösta Berling Saga (A Saga de Gösta Berling), considerado por críticos literários como sua obra-prima e precursor do realismo mágico. Escreveu, depois, mais de duas dezenas de publicações, alguns póstumos, entre romances, contos, biografia, autobiografia, ensaios e literatura para crianças. No Brasil foram publicadas apenas sete de seus livros, entre os quais Nils Holgerssons underbara resa genom Sverige (A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia), seu livro de maior sucesso, que integra o cânone da literatura para crianças e jovens, foi adotado em todas as escolas suecas e traduzido para mais de 60 idiomas, além de adaptações em livros, peças de teatro, ópera, filmes e séries de cinema e TV.
Publicado em 2 volumes, em 1906 e1907, o livro foi escrito – depois de muita pesquisa – por encomenda do diretor da escola elementar onde ela lecionava, para ensinar geografia e outros aspectos da Suécia aos alunos. O protagonista, Nils Holgersson, com 14 anos, filho de camponeses pobres da região da Escânia, menino preguiçoso, violento e maldoso com animais e pessoas, que só gostava de dormir e comer, é castigado com a transformação em duende e monta num ganso doméstico, que voa na primavera seguindo um bando de patos selvagens até a Patagônia. Durante a viagem, enfrenta sustos e medos, mas com o tempo vai ganhando coragem, descobrindo a Suécia como “uma toalha quadriculada”, participando de aventuras com as aves e aprendendo com elas a se tornar um menino melhor, que respeita as pessoas e a natureza, reconhece a importância do trabalho e da caridade, podendo, então, voltar ao tamanho e à forma humana.
Apesar de sua finalidade didático-pedagógica, com lições morais, religiosas, humanistas e nacionalistas, características da literatura infantil ocidental da época – como exemplificam os contos de Zacharias Topelius (1818-1898), finlandês de expressão sueca; Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos) (1886), do italiano Edmondo De Amicis; Le Tour de la France par deux enfants (Viagem pela França por duas crianças) (1877), da francesa Augustine Fouillée; Heide (1879/1880), da suíça Johanna Spyri, entre outros – os talentos literários da autora e a qualidade poética de sua narrativa se destacam nessa obra que continua sendo lida e apreciada na Suécia e em outros países, até os dias atuais. Foi elogiada pelos escritores Rainer Maria Rilke e Marguerite Yourcenar e mais recentemente por críticos literários e editores, em diferentes aspectos: um dos primeiros “romances ecológicos” do mundo; uma “fábula de dimensões épicas sobre a redenção e encontrar o bom caminho”; “quase uma rapsódia sueca”.
A obra de Selma Lagerlöf, em particular A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, ficou pouco conhecida e estudada no Brasil ao longo do século XX. A primeira tradução desse livro para o português, feita por Maria de Castro Henriques Oswald, foi publicada em 1953, em Portugal; no Brasil, em 1985, pela Nórdica, foi publicada a tradução de Manoel Paulo Ferreira. Podem-se, no entanto, identificar semelhanças entre o livro protagonizado por Nils e ao menos um livro brasileiro para crianças do início do século XX: Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, que também teve grande sucesso nas escolas, dada a forma agradável de ensinar às crianças geografia, hábitos, costumes, lendas do País, por meio da narração da viagem dos irmãos Carlos e Alfredo de Recife/PE até Pelotas/RS, em busca do pai.
Passa o tempo, mudam-se critérios e gostos literários, mas neste século XXI as aventuras e o aprendizado do menino sueco montado nas asas de um ganso, nascidos da pena da feminista sueca e primeira Nobel de Literatura, continuam maravilhando crianças e adultos, muito além das lições de geografia de sua terra natal. Assim são os clássicos: nunca terminaram de dizer o que tinham a nos dizer, como ressalta o escritor italiano Italo Calvino. Certamente, o duradouro sucesso desse clássico sueco se deve às maravilhas da viagem que, pelos olhos de Nils, podemos desfrutar nas asas de Langerlöf, como sugere a poeta brasileira Cecília Meireles: “Assim vai o herói. E assim vai se desenrolando o livro. A técnica é realmente a da receita, - parece fácil. Ai das supostas facilidades literárias. Mas aqui não há nada a temer: Nils viaja com segurança, levado por Selma Lagerlöf...”. Nós, leitores, também!
Maria Mortatti