“Poesia marginal” é a denominação atribuída à produção da “Geração mimeógrafo”, constituída de novos poetas brasileiros que, nos anos 1970, durante a ditadura militar pós-1964, escreviam e divulgavam seus poemas “à margem”. Para escapar da censura do regime político e das dificuldades de inserção no meio editorial, recusavam modelos e sistemas literários, acadêmicos, intelectuais e editoriais. Não tinham um projeto ou programa literário. Com liberdade poética, diversidade etária e regional, faziam poesia “coletiva” sobre assuntos do cotidiano, em linguagem coloquial e informal, com tom de improviso, paródias e apropriação de poetas canônicos, protesto políticos contra o regime e contra a crítica literária oficial. Confeccionavam artesanalmente textos e ilustrações em mimeógrafo e buscavam contato direto com o público, expondo sua poesia em muros, praças, ruas, teatros, bares, universidades, eventos e vendendo por preço baixo.
Apesar da atitude de recusa, transgressão, independência e resistência ao regime autoritário da época, alguns representantes dessa geração se destacaram já na época pela qualidade estética, especialmente por meio da inclusão na antologia 26 poetas hoje (1975), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Alguns deles tiveram seus poemas publicados e distribuídos por editoras comerciais, e suas obras vêm sendo reunidas, publicadas e estudadas, já com consistente fortuna crítica. Nos anos 1980, apresentei aos meus alunos de ensino médio poetas dessa geração, que então tinha lido e apreciado: Ana Cristina César, Cacaso – ambos falecidos precocemente, além de outros dessa geração, como Torquato Neto, Waly Salomão – e Paulo Leminski.
O primeiro que me chegou às mãos foi o livro A teus pés: poesia/prosa, de 1982, Ana Cristina César (Rio de Janeiro, 1952-1983), que além de poeta, com quatro livros publicados em vida, dedicou-se às atividades de crítica literária, jornalista e tradutora, com dezena de publicações. No poema “Este livro” me apresentou o manifesto poético de Ana C..: “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio [...]”. Nesse e demais livros seus anteriores e posteriores, reunidos na antologia Poética (Companhia das Letras, 2013,), conheci melhor sua poesia, que, apesar da aparente “simplicidade”, é marcada por “avançada pesquisa poética” com uma “estratégia de linguagem como desvio contínuo, fratura, abertura para múltiplas falas, testemunho do inconcluso e do inacabado”, nas palavras do crítico Ítalo Moriconi.
Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (Uberaba/MG,1944; Rio de Janeiro,1987), poeta, professor universitário e letrista de música popular brasileira, para alguns críticos literários é o tutor da “poesia marginal”. Seu livro Beijo na boca e outros poemas (1975) foi o que primeiramente li e apresentei em aulas. Em especial, recordo-me de dois poemas apreciados em atividades de leitura: “Lar doce Lar”: “Minha pátria é minha infância / Por isso vivo no exílio.” E “Estágio do retrato”, em que o poeta, inspirado em Cecília Meireles, pergunta: “Nos olhos de quem terei perdido a minha face?” O conjunto de sua produção – seis livros publicados em via e poemas inéditos, e 60 letras de música –, publicado em Poesia completa (Companhia das Letras, 2020), representa também ideias e dilemas de sua geração, “impactada pela violência da história”. “Embora seus poemas sejam independentes e possam ser lidos separadamente, compõem uma espécie de poema único ou ‘poemão’, que sintetiza vivências subjetivas e coletivas”, segundo a pesquisadora Débora Racy Soares
Paulo Leminski Filho (Curitiba/PR, 1944-1989) é autor de obra prolífica e diversificada, um escritor “multimidia”, em termos atuais. Publicou oito livros de poemas, dois romances, novela infantojuvenil, ensaios, biografia, crítica literária, canções, artigos, crônicas, traduções de clássicos da literatura e transitou, ainda, nas artes gráficas, quadrinhos, TV, jornalismo e publicidade. Segundo Rodrigo Garcia Lopes, na recepção crítica da obra de Leminski costuma-se reduzi-la ao trocadilho e ao haicai, ignorando-se a densidade de muitos de seus “poemas pensantes”. Em carta de 1977 ao poeta Regis Bonvicino, Leminski formula a declaração de princípios de sua poesia: “é a linguagem que tem que estar a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem”. No livro Distraídos venceremos (1987), assim “define” sua poética e de sua geração: “Marginal é quem escreve à margem,/ deixando branca a página / para que a paisagem passe / e deixe tudo claro à sua passagem.” Resistindo ao tempo, sua obra foi reunida em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013) e, os inéditos foram publicados no livro O ex-estranho – Paulo Leminski (Iluminuras, 2018), com organização e seleção pela poeta Alice Ruiz S., com quem foi casado, e Áurea Leminski, filha do casal.
Sob influência difusa de movimentos de contracultura da geração beat (beat generation) – iniciados nos anos 1940 nos EUA, que inspiraram formas de expressão similares em países europeus, e, no Brasil, do movimento modernista pós-1922 e do Tropicalismo/ Tropicália – movimento artístico e cultural de vanguarda, com manifestações principalmente na música popular, no cinema, no teatro, poetas daquela “geração mimeógrafo” compuseram também uma “poética marginal”. Com o “jazz do coração” de Ana C., por meio do “poemão” sintetizado por Cacaso e reconfigurando as palavras de ordem “distraídos venceremos”, de Leminski, esses e outros daquela geração transgressora, cuja qualidade estética foi e é reconhecida pela crítica especializada, continuam lidos e apreciados por leitores do século XXI, com circulação também em redes sociais. E, apesar da diversidade de características dos poetas e da postura transgressora, contestatória e antiprogramática, a “poética marginal” resultante da produção da "geração mimeógrafo" integra um capítulo da história da literatura brasileira.
Maria Mortatti