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“LE CARNET DES NUITS”: AUTORRETRATO DE MARIE LAURENCIN COMO POETA / MARIA MORTATTI

Marie Laurencin (Paris, 31.10.1883 – 08.06.1956) ficou mais conhecida como “musa de Apollinaire”, poeta com quem manteve turbulento relacionamento amoroso por seis anos, e “la fauvette”, dada sua proximidade com círculos parisienses de artistas da vanguarda da arte moderna do início do século XX. Mas foi em prosa e verso que a conheci, quando ganhei de presente a edição francesa de 2022 de seu livro Le carnet des nuits (Diário das noites). Ao folhear o exemplar, saltou-me aos olhos o prenúncio da autora em um dos textos, instigando-me a adentrar na história dessa mulher, por meio de biografias e estudos recentes sobre sua obra, e conhecer as aventuras do talento da pintora, gravurista, ilustradora, cenógrafa, que registrou em verso e prosa, não apenas um autorretrato, mas também um testemunho de seu tempo.   

Le carnet des nuits foi publicado na Bélgica, em 1942, durante a ocupação nazista na França. Em 1956, ano da morte de Laurencin, foi publicada em Genebra a segunda edição. Em 2022, foi publicada na França, pela editora La Coopérative, “edição completa com notas e posfácios dos editores”. O livro é ilustrado com três gravuras e 37 textos curtos, 12 em prosa e 25 em verso, em estilo “surrealista” – conforme alguns críticos. É acompanhado de um anexo, com três poemas de Louise Lalanne, pseudônimo de Apollinaire, publicados na revista francesa Les Magres, em 1909. Dois desses poemas são de autoria de Laurencin, que os cedeu ao poeta para que ele os publicasse com seu pseudônimo. O livro é composto de poemas, diários íntimos e lembranças. Além de evocar e testemunhar o período em que ela participou da vanguarda modernista francesa, “traça a evolução interior dessa mulher extraordinária desde a infância, com uma fantasia e lucidez que provocam a imaginação [...] e  completam e enriquecem o conhecimento de sua obra pictórica: pode-se defini-lo como um autorretrato  da artista como poeta”. 

Sem vocação para o magistério, como desejava sua mãe, Laurencin trocou as aulas do Liceu Lamartine por aula em ateliê de pintura em porcelana e depois na Academia Humbert, onde conheceu, entre outros artistas, o pintor Georges Braque, fundador do cubismo, que a apresentou ao pintor Pablo Picasso. Por meio deles, em 1907 conheceu o poeta Guillaume Apollinaire (26.08.1880 – 09.11.1918), que a ela dedicou poemas como “Marie”, “Crépuscule”, “Le pont Mirabeau” e “Zone”, em seu livro Alcools (1913). Embora não tenha se filiado ao fauvismo e ao cubismo, principais movimentos artísticos de vanguarda modernista da época, mantendo estilo estético singular na representação da identidade feminina, com formas suaves e curvilíneas, Laurencin participou de círculos parisienses ao lado de artistas e escritores famosos, como Max Jacobs, André Derain, Henri Matisse. Após se separar de Apollinaire, ela se casou com o pintor alemão Otto von Wätjen, exilaram-se na Espanha durante a Primeira Guerra Mundial, retornaram a Paris, divorciaram-se. Laurencin conheceu outros artistas e escritores, teve relacionamentos amorosos com homens e mulheres, participou de círculos neoclássicos lésbicos, ilustrou 80 livros – entre os quais de André Gide, Lewis Carrol, Somerset Maugham –, produziu cenários e figurinos para o balé russo Les Biches, com música de Francis Poulenc e coreografia de Bronislava Nijinska, e para a Comédie Française, pintou retratos de personalidades parisienses, como Coco Chanel. Durante a Segunda Guerra Mundial, teve o apartamento confiscado pelos nazistas, recolheu-se em apartamento mais modesto, sua saúde se fragilizou. Morreu de parada cardíaca, em 1956, com 72 anos de idade, deixando uma biblioteca de 5000 itens. Em seu testamento, pediu que fossem colocadas em sua mão uma rosa branca e uma carta de amor de Apollinaire. 

Apesar do reconhecimento da crítica e do público nas décadas de 1920 e 1930, sua obra ficou relativamente esquecida na França e na história canônica da arte. Mais recentemente, vem despertando novo interesse de críticos, estudiosos e historiadores da arte, conquistando novos admiradores e crescente notoriedade póstuma. Em 1974, o poeta anarquista francês Léo Ferré musicou o poema “Marie”, de Apollinaire. Em 1975, o cantor francês Joe Dassin a mencionou na canção L'été indien. Em 1979, coleção de suas obras foi comprada em leilão pelo empresário japonês Masahiro Takano e expostas no Museu Marie Laurencin de Tokio – que encerrou atividades em 2019. No Brasil, seu quadro Guitarrista e duas figuras femininas (1934) integrou o primeiro lote de quadros quando da inauguração, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo. Suas obras constaram também de exposições coletivas de artistas estrangeiros em galerias brasileiras, nos anos 1973, 1995 e 2002. 

Nas últimas décadas, a artista vem sendo “redescoberta” também em estudos acadêmicos e catálogos de exposições, que possibilitam ampliar a compreensão de seu lugar na história das artes plásticas e da literatura de autoria feminina. Em 2011, foi lançada sua biografia em inglês, escrita por Bertrand Meyer-Stabley; em 2013, sua obra foi exposta no Musée Marmottan Monet, em Paris, entre outros exemplos. Também vem sendo conhecida e divulgada sua produção como escritora em prosa e verso: correspondência inédita, prefácio, textos em revistas e Le carnet des nuits, pelo qual a conheci. Quase 70 anos após a morte, sua obra continua ecoando, provocando reflexões e contribuindo para a compreensão do lugar, muitas vezes esquecido, das mulheres na história da arte e da literatura e para lembrar que “... ter talento é uma aventura que vale a pena...”. (Marie Laurencin)

Maria Mortatti – 08.03.2025

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Obs.: As informações sobre vida e obra de Marie Laurencin sintetizadas neste texto foram extraídas do posfácio da edição francesa de 2022 de Le carnet des nuits, da Wikipedia, de artigos e de catálogos de galerias e exposições disponíveis on-line, principalmente Casa Museu Eva Klabin e Pallant House Gallery.  Os trechos do livro citados em português foram traduzidos por mim.