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POETAS BISSEXTOS – “ESTADO DE GRAÇA DE RARO EM RARO” / MARIA MORTATTI

“Bissexto” (do latim bis sextum) é a denominação do ano civil com um dia extra, 29 de fevereiro, acrescentado de quatro em quatro anos ao calendário gregoriano. Foi a solução matemática criada no século 45 a.C. pelo astrônomo Sosígenes para compensar as 6 horas que sobram a cada ano de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, tempo exato do movimento de translação da Terra em torno do Sol. 

Em 1942, a palavra foi trasladada pelo poeta Vinícius de Moraes (19.10.1913 – 09.07.1980) em artigo sobre poesia brasileira, na revista argentina Sur, de 1942, para se referir em sentido figurado aos poetas “que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embargo os coloca ao lado dos mais citados”. 

Com base nessa translação semântica, o poeta Manuel Bandeira (09.04.1886-13.10.1968) imortalizou a expressão “poetas bissextos” em sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Zélio Valverde, 1946). Assim explica no prefácio: 

Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo dicionário, bissexto só há ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil [...] bissexto é todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro.”; “nego que a circunstância de não publicar os poemas em livro ou em revistas e jornais seja característica essencial do bissexto. O essencial é a produção rara.”; “O bissexto, na sua relativa impotência criadora, tem, às vezes, achados que enchem de inveja todo o ‘genus irritabile’. 

O organizador reuniu mais de uma centena de poemas escritos por pessoas que na época exerciam diferentes atividades – escritores, advogados, engenheiros, médicos, sociólogos, professores, jornalistas, padres, pintores. Entre eles estavam: Afonso Arinos de Mello Franco, Aníbal Machado, Dante Milano, Euclides da Cunha, Joaquim Cardozo, José Auto, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, Ismael Nery, Joanita Blank, Leopoldo Brígido, Lucila Godoi, Lucilo Bueno, Luís Aranha, Maria Clara Machado, Maria Helena, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas, Pedro Nava, Raimundo Magalhães Júnior, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga, Sérgio Buarque de Hollanda.

Nem todos eram “bissextos autênticos”, como o organizador adverte, mas optou por incluí-los para não perder poemas de qualidade. Nem todos eram ou se tornaram contumazes – epíteto sugerido por Paulo Dantas e aceito por Bandeira, como antônimo de bissextos. Vinte e quatro anos depois, na 2ª. edição da Antologia... (Organização Simões, 1964), Bandeira incluiu outros poetas que, nas décadas seguintes, passaram a publicar de modo contumaz, como H. Dobal e Odylo Costa, filho. Provavelmente pelo mesmo motivo, outros, como Joaquim Cardozo e Paulo Mendes Campos, foram excluídos dessa edição. Alguns, ainda, tornaram-se “imortais” quando posteriormente eleitos, pelo conjunto da obra em outros campos e gêneros literários, como membros da Academia Brasileira Letras. 

Manuel Bandeira – poeta contumaz – tornou-se "imortal" em 1940. A Antologia de poetas bissextos contemporâneos, publicada naquele ano, tornou-se um clássico – teve outras reedições, inspirou outras antologias e provavelmente outros poetas contumazes, ou não. E sua solução poética para designar aquele "em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil" foi consolidada em dicionário: “quem exerce pouco determinada atividade (ex.: poeta bissexto)”. 

Maria Mortatti