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A POESIA ENCARNADA DE MARINA TSVETÁIEVA / MARIA MORTATTI
AKHMATOVA, "ANNA DE TODAS AS RÚSSIAS" / MARIA MORTATTI
Quando conheci Anna Akhmatova, pseudônimo de Anna Andreevna Gorenko (Odessa, 23.06.1889 – Leningrado, 05.03.1966), ela já era mundialmente reconhecida. Em 1964, foi laureada com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina; em 1965, recebeu o título de Doctor Honoris Causa da Universidade de Oxford; 1989 foi proclamado pela Unesco o “Ano Anna Akhmatova”, em comemoração ao centenário de seu nascimento; e com seu nome foi batizada uma estrela então recém-descoberta por astrônomos russos. Na Rússia, o centenário de seu nascimento foi celebrado com muitos eventos literários e culturais, e no apartamento comunitário em que morou durante 40 anos foi instalado o Museu Anna Akhmatova.
“Anna de todas as Rússias” – epíteto que lhe atribuiu a poetisa Marina Tsvetáieva (1892 – 1941) – viveu e sobreviveu a duras tragédias pessoais e condições políticas e econômicas, na Rússia pré-revolucionária do início do século XX, na União Soviética, após 1917/22, na resistência durante o cerco nazista a Leningrado, na repressão durante a Guerra Fria, e começou a ser “reabilitada” após o período de “degelo”, que se seguiu à morte de Joseph Stalin, em 1953. Em condições difíceis, tornou-se um ícone da “Era de Prata” da literatura russa moderna e expoente do Acmeísmo – movimento de reação ao Simbolismo na literatura. Além de poesia, escreveu prosa, memórias, trabalhos autobiográficos, estudos literários sobre escritores russos e, para sobreviver durante seu “banimento”, traduziu poesia italiana, francesa, armênia e coreana.
Seu primeiro poema, publicado aos 20 anos de idade, rendeu-lhe advertência do pai – engenheiro naval –, temeroso de que ela envergonhasse a família, o que a fez decidir pelo pseudônimo. Em 1910, casou-se com o poeta acmeísta Nikolái Gumilióv que depois foi preso e fuzilado, acusado de suposta conspiração, e com quem teve um filho, Liev, preso e enviado para campos de trabalho na Sibéria, sendo impedida de vê-lo por muitos anos. Em 1914, publicou seu segundo livro de poemas, Beads, que a tornou conhecida e popular; em 1917, White Flock; e, em 1922, depois do fuzilamento do marido, publicou Anno Domini MCMXXXI. A partir do ano seguinte, seus poemas foram duramente criticados pelo regime stalinista, por não se enquadrarem no "realismo socialista" e influenciarem negativamente leitoras e leitres, foi expulsa da União de Escritores e impedida de publicar até os anos 1940. Casou-se outras vezes, manteve relações afetivas e literárias com figuras importantes e com grandes poetas e artistas, como Maiakóvski, Mandelshtám, Pasternák, Prokófiev, Anna Pávlova, Nijínski, Tsvetaeva, Modigliani, alguns dos quais tiveram destinos trágicos, como Mandelstam, que morreu em campo prisioneiros na Sibéria, e Marina Tsvetáieva, que foi assassinada e declarada suicida.
Mas Akhmatova nunca deixou de escrever poesia. Para não ser denunciada, depois de escrever seus poemas, pedia aos amigos que lessem, memorizassem e lhes devolvessem para ela então queimar o papel, como relata sua amiga e confidente, a escritora Lydia Cukovskaia, que registrou muitos acontecimentos da vida da poetisa e transcreveu ou decorou seus versos. Assim Akhmatova escreveu os mais famosos de seus poemas: Requiem, entre 1935 e 1940, e o épico Poema sem herói, composto entre 1940 e 1965, contendo análise profunda de sua época e que ela considerava o coroamento de sua obra, sendo também considerado um dos melhores poemas do século XX e publicado depois de sua morte, com 76 anos de idade, em decorrência de saúde frágil e tuberculose.
Na Rússia, apenas no final dos anos 1980 ela conquistou pleno reconhecimento. Seus trabalhos até então impublicáveis/censurados se tornaram acessíveis ao público em geral. E, entre 1998 e 2005, foram publicados os seis volumes de sua obra completa, Ellis-Lak. Certamente em decorrência da publicação de sua obra na Rússia, do centenário de seu nascimento e de dois fatos marcantes na geopolítica mundial, a abertura política e econômica da Rússia iniciada em 1985 – que resultou na dissolução da URSS em 1991 – e a queda do Muro de Berlim, em 1989, traduções de alguns de seus poemas começaram a ser publicados no Brasil naquela época: em Antologia da poesia russa moderna, por Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman (Brasiliense, 1985) e no livro Anna Akhmatova – Poemas: 1912 – 1964 (L&PM, 1991), com seleção e tradução do jornalista, crítico musical e tradutor Lauro Machado Coelho (1944 – 2018), também autor de biografia da poetisa, publicada em 2008.
Foi com esse livro que, em 1991, conheci e mergulhei, com Anna Akhmatova, “numa poesia que nunca deixou de ser um depoimento pessoal e autobiográfico, [e] traçou também o trajeto de sua nação naqueles anos de fogo”. Decorei muitos poemas, depois conheci outros e sua biografia. Anna de todas as Rússias e de todos os que conhecem sua poesia se tornou definitivamente um minha, também. E até hoje aquela primeiro livro me acompanha, sempre com novas revelações. Como estes versos de dois poemas seus, que ela me assoprou, enquanto eu a visitava para escrever este texto:
Epigrama
Pode Beatriz criar como se fosse Dante
ou Laura celebrar a chama do amor?
Eu ensinei as mulheres a falar,
mas agora, meu Deus, como fazê-las calar?
Terceira (das “Elegias do Norte”)
Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.
Maria Mortatti – 19.09.2023
SOBRE MAIAKÓVSKI, O POETA-OPERÁRIO E ISTO / MARIA MORTATTI
É um dos maiores poetas do século XX, conhecido como “Poeta da Revolução”. Desde os 15 anos de idade, engajou-se no movimento bolchevique, foi preso algumas vezes, ingressou na Escola de Artes de Moscou, foi cofundador do cubofuturismo, movimento artístico de vanguarda, aliando o cubismo e o futurismo ocidentais com as formas de arte populares da Rússia. Depois da Revolução Russa de 1917 – que derrubou a monarquia, instituiu o regime socialista, levando ao poder o Partido Bolchevique, com a liderança de Vladimir Lênin, e originando a União Soviética (extinta em 1991) –, Maiakóvski colaborou com a construção do novo regime: criou poemas e cartazes de propaganda, escreveu peças de teatro, fundou, em 1923, a revista LEF (Liévi Front), que reuniu escritores e artistas que pretendiam aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social. Fez viagens dentro e para fora de seu país, lendo seus poemas, apresentando suas peças e divulgando a arte do novo regime, conforme seu lema: “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”. Na vida, na militância e na arte, era obcecado pelo futuro, cuja chegada os poetas deviam acelerar, e tinha “um incêndio no coração”: “Comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração”. Suas posições apaixonadas e vanguardistas causaram embates entre sentimentos pessoais e fórmulas artísticas e literárias simplistas e realistas impostas pelo Partido, que o acusava de fazer arte "incompreensível para as massas". Para não se submeter à censura oficial, alguns meses após lançar o poema "A plenos pulmões", cometeu suicídio, com um tiro no coração, ou foi suicidado, conforme “piada” bolchevique. Deixou um bilhete: “(...) De minha morte não acusem ninguém, por favor, não façam fofocas. O defunto odiava isso. (...), o barco do amor partiu-se na rotina./Acertei as contas com a vida (...) Felicidade para quem fica.”
Poeta de várias faces, conseguiu conciliar poesia engajada e espírito criativo. Além da poesia mais militante, como “O poeta-operário” (1918), de devoção ao Partido, escreveu poemas líricos, críticos e satíricos, peças de teatro, ensaios sobre a arte poética, artigos para imprensa, roteiros de cinema. O poema “Sobre isto”, que ele considerava sua obra-prima, é um dos mais conhecidos e também um de meus preferidos. Dedicado a sua amada e musa, Lilia Brik (1891 – 1978), seus 1.813 versos foram escritos entre dezembro de 1922 e fevereiro de 1923, quando estiveram separados. Como informa a tradutora Letícia Mei, "Sobre isto" ("Pro Eto", no original russo) quer dizer “Sobre amor”. A substituição de “amor” por “isto” era uma crítica do poeta à censura bolchevique aos “temas de cunho pessoal”. Alguns trechos do poema são hoje bem conhecidos, como estes: “Século XX?/Quem ressuscitar?/– Tem o Maiakóvski aqui.../Procuremos alguém mais brilhante –/O poeta não é belo o bastante–/Eu gritarei/daqui mesmo/da página atual:/ Não vires a página!/Ressuscita-me//(...) O século trinta/superará o bando/de bagatelas que dilaceram o coração/(...) Ressuscita-me/nem que seja/porque/sou poeta/e te esperava,/recusando o absurdo usual.// (...) Para que/a família/seja,/após essa era que se encerra,/o pai,/no mínimo o Mundo,/a mãe,/no mínimo a Terra.”
Maiakóvski influenciou a poesia russa e movimentos de vanguardas artísticas no início do século XX, na Europa e também no Brasil, onde – além de uma menção de Mário de Andrade em 1924 e uma conferência de Carlos Burlamaqui Kopke, de 1946 – pouco se divulgou e se escreveu sobre ele até os anos 1960, com traduções de antologia de poemas por Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, seguidas da de Emilio Guerra. Em 1981, sua peça O percevejo foi traduzida e encenada por Luís Antônio Martinez Correa, e Caetano Veloso e Ney Costa Santos compuseram a canção O amor, com versos de “Sobre isto”; em 1992, trecho do poema foi incluído em gravação do cantor e compositor João Bosco.
“Não vira a página!”, exclamaram os alunos, quando terminei a leitura naquele dia. Ouviram e sentiram, emocionados, o chamado de Maiakóvski. O contexto revolucionário soviético passou. Mas o poeta e seus poemas continuam atuais, assim como o amor, sentimento universal que ressuscita em cada página da história de cada um e de todos nós, humanos. Como faço neste texto, relembrando os 130 anos de seu nascimento e o centenário de “Sobre isto”: “Ressuscita-me! (...) porque sou poeta/e te esperava.”
Maria Mortatti