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DEUS EX MACHINA, A SOLUÇÃO QUE CAI DO CÉU / MARIA MORTATTI
REVISTA "KLAXON", MENSÁRIO DE ARTE MODERNA / JOÃO SCORTECCI
A revista Klaxon foi a primeira publicação modernista brasileira a circular depois da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922. Circulou de 15 de maio de 1922 a janeiro de 1923, num total de nove números mensais, os dois últimos em edição dupla. “Klaxon” – nome da marca de uma famosa buzina de automóvel norte-americana que fazia um barulho infernal – foi o título escolhido para a revista, propagando, assim, seu perfil de típica agressividade vanguardista. No comitê de redação, estavam Menotti del Picchia (1892 – 1988) e Guilherme de Almeida (1890 – 1969). Além deles, eram colaboradores: Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Luís Aranha, Rubens Borba de Moraes, Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral e Graça Aranha, entre outros artistas e escritores. Victor Brecheret (1894 – 1955) e Di Cavalcanti (1897 – 1976) eram os ilustradores. Entre as diversas revistas modernistas que proliferaram no Brasil dos anos 1920, Klaxon sem dúvida foi a mais audaciosa, a mais renovadora e a mais criativa. Destacou-se, ainda, pela publicidade e pela propaganda impactantes para sua época, como o “case” da marca Lacta: o verbo “comer”, no modo imperativo, foi repetido oito vezes na capa, formando um quadrado com a palavra e, dentro dele, um triângulo formado com a repetição da palavra "Lacta". Ousavam também no uso da tipografia, num estilo concretista que só surgiria décadas depois. No site da FBN – Fundação Biblioteca Nacional, encontrei as seguintes informações técnicas sobre a revista Klaxon: Redação: Rua Uruguay, 14, Jardim América, São Paulo; assinatura anual por 12 mil réis, e número avulso por mil réis; era impressa no formato 19 x 27,5 cm, com 20 páginas, aproximadamente; e tinha representantes no Rio de Janeiro (Sérgio Buarque de Holanda), em Genebra, na Suíça, e em Bruxelas, na Bélgica. No editorial do número 1 da Klaxon, há explicações sobre o nome, proposta e desafios. Segue: “A lucta começou de verdade em princípios de 1921 pelas columnas do ‘Jornal do Commercio’ e do ‘Correio Paulistano’. Primeiro resultado: Semana de Arte Moderna – especie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a Semana teve sua razão de ser. Como elle: nem desastre, nem triumpho. Como elle: deu fructos verdes. Houve erros proclamados em voz alta. Pregaram-se ideias inadmissíveis. É preciso reflectir. É preciso esclarecer. É preciso construir. D'ahi, KLAXON. E Klaxon não se queixará jamais de ser incomprehendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para comprehender KLAXON. Klaxon sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente. KLAXON não se preoccupará de ser novo, mas de ser actual. É essa a grande lei da novidade. KLAXON não é futurista. KLAXON é klaxista”.
João Scortecci
A CANÇÃO DOS FANTASMAS NATALINOS DE CHARLES DICKENS / MARIA MORTATTI
Maria Mortatti – 24.12.2023
HOUAISS E O "ENTERRO DOS OSSOS" / JOÃO SCORTECCI
Enterro dos ossos! Ricos e pobres – cada um na sua – costumam, depois das festas de final de ano, celebrar, em data única, o enterro dos ossos. Missão – quase – impossível. Sempre sobra alguma coisa que acaba indo para o lixo. No Ceará dos anos 1960, mamãe Nilce desfiava o peru. Isso na ceia de Natal. No dia seguinte, a carcaça enriquecia a canja das almas, e as sobras, a farofa de ovo com banana! Na virada do Ano Novo, era a vez do pernil. Repeteco gastronômico. Todo ano a mesma promessa: muita comida! Desperdício. Menos com as sobremesas: pudim, pavê, mousse de chocolate, manjar, doce de leite com queijo branco, quindim e sorvete. Já viu alguém levar para casa – depois da comilança – marmita de sobremesa? Eu. Existe a turma da fruta. Respeito, claro. “Enterro dos ossos”, no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, significa “banquete, aproveitando o que sobrou”. O amigo Antônio Houaiss era um “crânio” brilhante. Gostava de contar causos gastronômicos e, quando o fazia, usava toda a maestria de um filólogo gourmet. No final dos anos 1980, eu, Houaiss e o escritor e artista plástico Enio Squeff combinamos de comer uma "pasta" no restaurante Gigetto. O Mestre Houaiss adorava pratos exóticos, impróprios, explosivos, quase mortais. Perguntei-lhe: “Qual de todos os pratos lhe foi mais difícil comer?”. Houaiss nos surpreendeu: “Cérebro de macaquinho vivo!”. Depois, sem pressa, fatiou-nos com sabedoria e inteligência sua cerebral aventura, num pequeno país do leste europeu. O estômago virou. O povo do restaurante, vizinhos de mesa e até os garçons fecharam o cerco para saborear a contação do Mestre. Privilégio! Desisti da "pasta". Houaiss, não. Comeu com gosto. Tarde da noite, o restaurante se esvaziou e tiveram – infelizmente – de fechar. Já era hora de partir. “Sobremesa?” “Não”, respondi. Talvez tenha sido a única vez na vida em que recusei um pudim de leite, um Petit gateau ou um Romeu e Julieta. Lá fora – na pauliceia desvairada – acontecia uma prévia alvorada. Mestre Houaiss nunca mais se repetiu na minha vida. Foi quase uma despedida. Faleceu no dia 7 de março de 1999, aos 83 anos de idade. Lembro-me de um assunto daquela noite: viver para o “enterro dos ossos” da virada do século. Não deu tempo.
João Scortecci
REVISTA "PRESENÇA" E O MODERNISMO PORTUGUÊS / JOÃO SCORTECCI
A revista portuguesa Presença – Folha de Arte e Crítica foi uma das mais influentes revistas literárias do Século XX. Foi lançada em Coimbra, a 10 de março de 1927, sendo publicados 54 números, durante 13 anos, até à sua extinção em 1940. A revista foi fundada por João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca e dirigida pelos dois e pelo poeta, dramaturgo, memorialista e historiador José Régio (José Maria dos Reis Pereira, 1901 – 1969). Presença defendeu a criação de uma literatura mais viva, livre, oposta ao academismo e jornalismo rotineiro, primando pela crítica, pela predominância do individual sobre o coletivo, do psicológico sobre o social, da intuição sobre a razão. O Modernismo português teve início nos primeiros anos do século XX e desenvolveu-se até o final do Estado Novo, na década de 1970. Trata-se de um período amplo da história da literatura portuguesa, no qual três diferentes momentos podem ser observados: o Orfismo – fundado por artistas plásticos e escritores, entre eles Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Raul Leal, Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho (Ronald Arthur Paula e Silva de Carvalho, 1893 – 1935); o Presencismo – representado por importantes nomes, entre eles os escritores José Régio, Miguel Torga, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e Branquinho da Fonseca; e o Neorrealismo – corrente artística moderna de vanguarda, com influência socialista, comunista e marxista. O marco inicial da literatura neorrealista portuguesa foi a publicação do romance “Gaibéus” de Alves Redol (António Alves Redol, 1911 – 1969), em 1940. “Gaibéus” são camponeses da província portuguesa do Norte do Ribatejo ou da Beira Baixa que vão trabalhar nas lezírias durante a ceifa do arroz. Destacam-se, ainda, os escritores: Ferreira de Castro, Mario Dionísio, Manuel da Fonseca, Fernando Namora e Soeiro Pereira Gomes. O Neorrealismo ocorreu em diversos países europeus e teve influência no Brasil, com temáticas notadamente nacionalistas e regionalistas. O romancista, ensaísta, poeta, advogado, professor, folclorista e sociólogo Zé Américo (José Américo de Almeida, 1887 – 1980) com sua obra A Bagaceira (1928), marca o início do romance regionalista no Brasil. Outros importantes nomes: Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Érico Veríssimo.
João Scortecci
LÍNGUA FERINA E A DAMA QUE TINHA UM CRAVO NA BOCA / JOÃO SCORTECCI
“Alcunha” – do árabe “al-kunya”: apelido que substitui um nome próprio. São também sinônimos de “alcunha” as palavras “apodo”, “antonomásia”, “cognome” e “epíteto”. Alcunhado de “Boca do Inferno”, o poeta e advogado luso-brasileiro Gregório de Matos (Gregório de Matos Guerra, 1636 – 1696) é considerado um dos maiores poetas do Barroco (estilo marcado pelo rebuscamento, requinte e exagero de adornos) e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa do Brasil colonial. Ganhou o “cognome” por sua ousadia em criticar padres, freiras, a Igreja católica e autoridades políticas: “Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,/ E é que quem o dinheiro nos arranca,/ Nos arranca as mãos, a língua, os olhos.” Gregório de Matos é também considerado um poeta “pornográfico” e um poeta maldito (“poète maudit”), praticante da desobediência absoluta, da rejeição a toda e qualquer regra imposta e da recusa em pertencer a qualquer ideologia instituída. Em 1685, o promotor eclesiástico da Bahia o denunciou ao tribunal da Inquisição. Em 1694 foi deportado para Angola, onde permaneceu por um ano. Voltou ao Brasil e foi morar no Recife/PE, com a proibição de não pisar na Bahia. Escreveu: “Quanto mais que é escusado/ na boca o cravo: porque/ prefere, como se vê/ na cor todo o nacarado:/ e o mais subido encarnado/ é de vossa boca escravo:/ não vos fez nenhum agravo/ ele de vos dar querela,/ que menina, que é tão bela,/ sempre tem boca de cravo.” Gregório de Matos morreu no Recife, aos 59 anos de idade, vitimado por uma febre contraída em Angola.
João Scortecci
"O HOMEM É O LOBO DO HOMEM" / JOÃO SCORTECCI
Asinaria - Comédia do asno - é uma peça do dramaturgo romano Plauto (Tito Mácio Plauto, c. 230 a.C. – 180 a.C.), que viveu durante o período republicano e é autor da célebre frase “Lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit.” (“O homem que não se conheça tal como é, é lobo para o homem.”). Plauto, na Comédia do asno – conta a história de Demêneto, um senhor avarento que ludibriou sua rica mulher de todas as formas possíveis para conseguir seu dinheiro. Plauto escreveu 21 peças, no período entre 205 a.C. e 184 a.C. Suas comédias estão entre as obras mais antigas em latim preservadas integralmente até os dias de hoje. A célebre frase do romano Plauto foi popularizada pelo matemático, teórico político e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679), no seu livro Leviatã, quando reafirmou: “O homem é o lobo do homem”. Thomas Hobbes nasceu em Westport, na Inglaterra. Filho de um clérigo anglicano, foi criado e educado por um tio. Aos 15 anos de idade, foi matriculado na Magdalen Hall da Universidade de Oxford, onde se formou em 1608. Durante toda a sua vida esteve conectado com a monarquia inglesa. Entre 1621 e 1625, foi secretário do político, do cientista Francis Bacon (1561 – 1626), ajudando-o a traduzir alguns de seus ensaios para o latim. A obra Leviatã – referência ao monstro bíblico homônimo – ou “Matéria, palavra e poder de um governo eclesiástico e civil”, foi publicada em 1651. Diz respeito à estrutura da sociedade e do governo legítimo e é considerada um dos exemplos mais antigos e mais influentes da teoria do contrato social. Hobbes alega serem os humanos egoístas, egocêntricos e inseguros por natureza, quando reafirma o pensamento de Plauto: “O homem é o lobo do homem”. Que ele – o homem – necessita de um soberano que puna aqueles que não obedecem ao contrato social: “Onde não existe governo ou lei, os homens naturalmente caem em discórdia”. Thomas Hobbes faleceu em Hardwick Hall, Inglaterra, no dia 4 de dezembro de 1679, com 91 anos de idade. Em seus últimos anos de vida, deixou como legado a tradução da Ilíada e da Odisseia para a língua inglesa.
João Scortecci
LIVROS: NO TEMPO DO PESTAPE, DA COLA DE BENZINA, DO ESTILETE E DA IBM COMPOSER / JOÃO SCORTECCI
Abri oficialmente a Scortecci Editora no ano de 1982. Já trabalhava com edição e impressão de livros, desde 1978. O primeiro computador da empresa chegou em 1992, e a Internet – discada e barulhenta – no início de 1998. Costumo dizer que sou do tempo do pestape, da cola de benzina, do estilete e das máquinas IBM Composer, de esfera. O primeiro domínio na Internet foi o “scortecci”, em 1998, e a primeira loja de venda de livros “asabeça – cabeça que voa”, em 1999. É dessa época a inesquecível Maria Luíza, 18 anos de idade, estagiária de Comunicação. Cuidava do site, da loja e do cadastro da editora. De volta de uma viagem pelo interior de São Paulo, encontrei Maria Luíza chorando, arrancando os cabelos. “O que aconteceu?” Ela, aos prantos, respondeu-me: “Sr. Scortecci, estou desconectada do mundo! A Internet não funciona – travou tudo – e eu não sei mais o que fazer!”. “Não?” Maria Luísa estava totalmente fora de si. Enlouquecida! Justificou-se: “Preciso falar – urgente – com um autor”. “Calma! Calma!” Deixa eu dar uma olhada na ficha de atendimento do autor.” Ela me entregou a ficha. Completa, legível, com número de telefone e tudo, melhor impossível. “Você sabe que aparelho é esse na sua mesa?”, perguntei, apontando para o aparelho de telefone. “Sei. Claro. Um telefone. Por quê?” “Sabe para que serve?”, insisti. “Claro!”, respondeu-me, já de cara feia. “Que tal você discar para o autor?” “Posso?” Não respondi. Virei as costas e fui embora. Foi o que ela fez. Discou e conversou – demoradamente – com o autor. Naquele mesmo dia, no final da manhã, reuni todos os sete estudantes estagiários para um bate-papo sobre os primórdios da editora. Contei-lhes, então, que, antes dos computadores, da Internet, dos aparelhos de fax, das copiadoras e impressoras, dos scanners e, mais recentemente, dos aplicativos, do CD, do pen drive, dos arquivos nas nuvens, dos celulares, dos smartphones, das redes sociais e outros, tudo era – muito – diferente e também funcionava. Disse-lhes: “Sou do tempo do pestape, da cola de benzina, do estilete e das máquinas IBM Composer, de esfera.” Deram risada, de tudo. De mim também, claro. Um detalhe importante: naquele mesmo ano tratei de trocar todos os aparelhos de telefone de discar por moderníssimos aparelhos de teclar, sem fio. A ficha caiu, de vez. Melhor impossível.
João Scortecci
REENCONTRO COM DE AMICIS EM SEU "CORAÇÃO" / MARIA MORTATTI
KENNEDY, HUXLEY E AS BALAS DE LSD DO ANO DE 1963 / JOÃO SCORTECCI
Das distopias do dia 22 de novembro de 1963. Kennedy (John Fitzgerald Kennedy, 1917 – 1963), Presidente dos Estados Unidos da América, foi assassinado na cidade de Dallas, Texas, com um tiro na garganta e outro na cabeça, e Huxley (Aldous Leonard Huxley, 1894 – 1963), em Los Angeles, com uma injeção “amiga” de LSD. Huxley foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias e literatura de viagem. Foi indicado sete vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, mas nunca ganhou a merecida e cobiçada estatueta. Foi um desbravador da literatura e da consciência humana. Autor de clássicos imortais, como o romance distópico "Brave New World" ("Admirável Mundo Novo"), de 1932, e dos ensaios autobiográficos "The doors of perception" ("As portas da percepção"), de 1954, explorou o uso de alucinógenos como a mescalina, o LSD e outros psicodélicos, a fim de expandir a consciência e descobrir novos horizontes do pensamento humano. A experiência com drogas psicodélicas foi tão importante para Huxley, que o autor planejou deixar a vida em uma viagem de LSD, e, com a ajuda de sua esposa, assim o fez. Conheci-o nos anos 1980, quando li e reli a sua obra. Na biografia do verso de capa, o ano de sua morte: 1963! Na época passou “batido” e somente agora registro a distopia: Huxley morreu no mesmo dia que Kennedy! Onde eu estava mesmo? Na cidade de Fortaleza, no Ceará, na sala de visitas da casa da Dóris Holanda, mãe dos amigos de uma vida inteira: Leda Maria, Nelson, Alexandre, Guilherme, Raul e Paulinho. Estávamos brincando no chão, colando figurinhas de jogadores de times de futebol do Santos, de Pelé, do Botafogo, de Garrincha e outros. Panela com grude, para colar as figurinhas, e trapos de pano, para limpar a sobra de cola. Foi quando o plantão do radiojornalismo "O Seu Repórter Esso" nos alertou sobre a tragédia. “Escuta! Escuta!” Kennedy – o 35°. Presidente dos Estados Unidos – havia sido baleado e morto em um atentado na cidade de Dallas, Texas. Silêncio. Eu tinha sete anos de idade e, desde aquela época, sabia “conjugar” a máxima preferida – de uma vida inteira – do meu pai, Luiz: “A vida é desleal e desumana”. “E agora?” Utopias, distopias, balas de LSD, alucinógenos e figurinhas carimbadas de um admirável mundo novo. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Mesmo sobre Huxley: sabia e não sabia! Só precisava me adiantar no tempo, olhar no calendário do futuro e viajar no compasso-luz da história.
João Scortecci
BERTOLT BRECHT – OS IMPRESCINDÍVEIS / JOÃO SCORTECCI
Releitura do poema “Os que lutam”, do dramaturgo e poeta alemão, Bertolt Brecht (Eugen Bertholt Friedrich Brecht, 1898 – 1956), sem ironia, sem deboche e nada parecido com o original. Paródia? Tragicomédia? Talvez. Há homens que lutam vez por outra e são ruins. São mutáveis frente ao bem. E, também, deltas, variantes, abismos. Alguns navegam sem rumo ou qualquer direção. São mutantes do incerto. Há homens que são oportunistas e egoístas. É o que são. Não conhecem o norte e não usam bússolas. Não pensam. Acham que são imortais. Há homens do exército dos que lutam e não são soldados. São traços, rabiscos da paisagem morta! Há homens que são bondosos. Apenas isso. Há outros que travam “moinhos de vento” e são os piores. Há aqueles que escrevem histórias, leis e valores e são indiferentes ao julgar o verbo. Poetas? Poucos. Há homens que são guerreiros da luz. Iluminados! Há homens covardes de coragem, traidores, contraditórios e pífios: no olhar. São sombras e testemunhas. Veem e não enxergam. Neles não há o fogaréu. Não há a brasa dos infernos e nem o mantra do carvão. Há homens que não são nada, e outros, tudo! Há homens que lutam toda a vida da sorte. Aventureiros? Há homens que são imprescindíveis à dor. Estes são homens e gritam por justiça. Há homens que cortam o fio da própria carne. E, pálidos, sangram. Há homens de Brecht em todo o infinito do Céu: do bem e do mal. E no mar, também. Profundo e acolhedor. E no ar da Terra. Desigual, perene e bela. Texto, contexto e (sem)fim. Bertolt Brecht foi um destacado dramaturgo e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram o teatro contemporâneo. Em 1954, recebeu o Prêmio Lenin da Paz. Faleceu em 14 de agosto de 1956, aos 58 anos de idade, em Berlim Leste, Estado de Berlim, na República Democrática Alemã.
João Scortecci
O EXÍLIO E O REINO DE UMA (IM)PROVÁVEL LEITORA DE CAMUS / MARIA MORTATTI
Para Rosina Longo Mortatti (in memoriam)
Franco-argelino, de origem pobre, apaixonado por futebol, tuberculoso crônico, combatente na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, casado com a linda e talentosa franco-argelina, professora de matemática e pianista Francine Faure (6.12.1914 – 24.12.1979) – sua segunda esposa e que organizou as edições póstumas de sua obra –, amante de outras e da “única”, a atriz espanhola exilada na França, María Casares: esse era o escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista, Albert Camus (7.11.1913 – 4.1.1960) que morreu com 46 anos de idade, vítima de um acidente de automóvel, às 13h55 do dia fatal, quando retornava a Paris, após ter trocado passagem de trem e aceitado insistente oferta de carona do amigo e editor Michel Gallimard, cujo carro perdeu a direção e se chocou contra uma árvore, causando também sua morte cinco dias depois, tendo se salvado apenas a esposa e a filha do editor e parte do manuscrito do romance autobiográfico inacabado, O primeiro homem, que Camus carregava na mala e foi publicado em 1944, por sua filha, Catherine Camus, que também fez publicar, pela Gallimard, em 2017, as 865 cartas de amor do pai para a atriz espanhola, a última delas escrita cinco dias antes de ele morrer. Laureado, aos 44 anos de idade, com o Nobel de Literatura de 1957, “pela sua importante produção literária, que com seriedade lúcida ilumina os problemas da consciência humana nos nossos tempos”, Camus é autor de vasta e diversificada obra, com romances, peças de teatro, ensaios filosóficos, entre outros, em que expõe e questiona o absurdo da condição humana e o paradoxal sentido da existência, como: nos romances O estrangeiro – seu primeiro do gênero, de 1942 –, A peste, A queda; nos ensaios O mito de Sísifo e O homem revoltado – este com duras críticas ao estalinismo, que lhe renderam polêmica pública com o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (21.06.1905 – 15.04.1980) –; nas peças de teatro Calígula e Os justos.
Esse era o roteiro do texto que eu preparava, até o momento em que, procurando Camus na estante de minha biblioteca, perdi a direção e topei com um exemplar de O Exílio e o Reino, publicado pela Edições Livros do Brasil – Lisboa, com pouco convidativa tradução por Cabral do Nascimento, sem data. Lançado na França pela Gallimard, em 1957 – ano em que o escritor recebeu o Nobel – L'Exil et le Royaume é seu único livro de contos e seu último livro de ficção publicado em vida. A edição portuguesa, provavelmente publicada nos anos 1960, contém seis contos – “A mulher adúltera”, “O Renegado”, “Os mudos”, “O hóspede”, “Jonas”, “A pedra que aumenta” (“cresce”, em outras traduções) –, cujos enredos se passam em lugares diferentes, como África, Europa e o último, no Brasil. A temática comum entre eles, expressa no título e identificável nas descrições do narrador e nos monólogos interiores e diálogos dos personagens, são as formas simbólicas do exílio – como solidão, insatisfação, inadaptação, impotência e culpa dos que se recusam a representar o papel que lhes é atribuído socialmente – e da árdua busca do reino prometido, o sentido da existência. Nas palavras do autor, o Reino “coincide com uma certa vida livre e despojada que teremos de reencontrar, para podermos enfim renascer. O Exílio, de certo modo, mostra-nos as vias de acesso a essa outra vida, desde que saibamos nele recusar ao mesmo tempo a servidão e a posse.”
Folheando o exemplar com folhas amareladas e algumas manchas do tempo, chamou minha atenção a marginalia a lápis, à qual provavelmente não dei tanta importância quando o recolhi entre os pertences pessoais de minha mãe, após sua morte, em 2008: o nome – Rosina – na folha de rosto e os muitos sublinhados em trechos do primeiro e do último conto, além de dobraduras de “orelha” no topo das respectivas páginas iniciais. No primeiro conto, “A mulher adúltera”, Marcel e Janine, um casal de franceses, sem filhos, viaja por regiões de deserto para vender tecidos diretamente aos mercadores árabes. Ela o acompanha, entediada, por falta de coragem para recusar, e, ao longo do enredo, por meio de monólogos interiores, vai se configurando sua insatisfação e a crise existencial. O adultério se realiza simbolicamente, quando ela, mirando a imensidão e a beleza do deserto em contraste com seu vazio interior, dá-se conta de seu exílio – a vida sem sentido com o marido – e daquele reino que “sempre lhe fora prometido, mas que jamais o alcançaria – a não ser por este fugidio instante...”. O último conto, “A pedra que aumenta”, foi inspirado em visita de Camus ao Brasil, em 1949, quando, levado por uma comitiva de que participavam Oswald de Andrade e seu filho, Rudá de Andrade, à cidade de Iguape, no litoral paulista, para conhecer a festa de Bom Jesus de Iguape, ficou impressionado com a diversidade e mistura de raças, com o sincretismo religioso, com a história da estátua do santo que foi encontrada num córrego e da pedra em que foi lavada, que crescia, mesmo depois de inumeráveis lascas arrancadas pelos romeiros em busca de milagres. Camus juntou depois essas observações com as da macumba que presenciou na cidade do Rio de Janeiro, acompanhado de Abdias do Nascimento. O protagonista do conto, d’Arrast, um engenheiro francês contratado para supervisionar a construção de uma represa em Iguape, surpreende-se com o sincretismo religioso, participa de culto em homenagem a São Jorge e ajuda um homem pobre e negro a cumprir a promessa de carregar uma pedra de 50 quilos, para agradecer por um milagre recebido do Bom Jesus.
No livro Albert Camus – Uma vida, relatando o acidente que causou a morte instantânea do escritor, o biógrafo Olivier Todd comenta: “A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel”. Quando folheei aquele exemplar de O Exílio e o Reino, inicialmente me pareceu meio absurdo que aquela mulher – não muito afeita à leitura e com pouco ou nenhum tempo disponível para esse tipo de lazer, depois do trabalho de professora e das tarefas domésticas, de esposa e mãe de quatro filhos – tivesse lido o livro e se interessado especialmente por esses dois contos. E me indaguei como o exemplar chegara a suas mãos. Teria sido pelo espólio de minha tia paterna, Irene, viúva de um livreiro paulistano, que não conheci? Ou de algum vendedor domiciliar, como alguns poucos livros que minha mãe comprava? E por que esses dois contos a impressionaram tanto, a ponto de neles deixar registrada a enigmática marginalia? Depois, porém, de reler os contos e escrever este texto, concluo que absurda foi minha primeira reação. Aquela (im)provável leitora provavelmente encontrou nos contos muitas de suas indagações sobre o paradoxal sentido da existência, entre a constatação do exílio solitário e a fé no reino prometido. Também eu e talvez a esposa e as amantes do escritor. Essa é a universal contribuição de Albert Camus, para leitores e leitoras de todos os tempos.
Maria Mortatti – 19.11.2023
O LEGADO DO LIVREIRO LEON IDZIKOWSKI / JOÃO SCORTECCI
O livreiro, editor e gráfico Leon Idzikowski (1827 – 1865), nasceu na Cracóvia, Polônia. Foi o fundador da maior e mais famosa livraria e editora de Kiev e de toda a Rússia, localizada inicialmente na Avenida Kreschatik, a principal da cidade de Kiev, hoje capital da Ucrânia. Em 28 de dezembro de 1858, aos 31 anos de idade, Leon Idzikowski abriu o seu negócio, no cortiço n. 29, depois expandiu para os lados, nos números 27 e 33-35, perto da atual estação Kreschatik, em Kiev. Foi aprendiz na livraria J. Czech, em Cracóvia, e depois gerente da livraria Krystian Teofil Glücksberg (1796 – 1876), em Kiev, onde aprendeu o ofício de livreiro. Leon Idzikowski morreu jovem, aos 38 anos de idade. Depois de sua morte, o negócio foi administrado, com sucesso, durante 32 anos, pela esposa, Hersylia Idzikowski (Hersylia Buharewicz, 1832 – 1917) até 1897. Imprimiam seus próprios livros – chegaram a empregar mais de 150 funcionários –, e em pouco tempo se tornou a maior editora e livraria de Kiev. Até 1920, a empresa foi gerida por seu filho, Władysław Idzikowski (1864 – 1944). A livraria chegou a ter 50 salas e era composta por vários departamentos: postais e reproduções, livros polacos, livros russos, livros estrangeiros (alemães, franceses, ingleses, italianos), livros infantis e partituras. A sala de leitura – que podia acomodar até 500 pessoas ao mesmo tempo – e a biblioteca de empréstimo tinham mais de 173.000 volumes. Entre 1865 e 1920, a empresa publicou aproximadamente 7.000 títulos. A família Idzikovsky também possuía armazéns e livrarias menores em outras cidades: Lviv, Odessa, Kharkov e Yekaterinoslav, na Ucrânia; Vilnius, na Lituânia; Cracóvia, na Polônia; Vladivostok, Moscou, Rostov-on-Don, São Petersburgo, na Rússia. Em 1918, com a terceira Revolução Russa e a ditadura do proletariado, pregada por Vladmir Lenin (1870 – 1924), os bolcheviques ("governo da maioria") incendiaram a livraria. O que restou foi nacionalizado em 1919. A empresa existiu até a Revolta de Varsóvia – tentativa armada em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, para libertar a cidade polonesa de Varsóvia do controle da Alemanha nazista –, quando todos os bens materiais foram queimados e destruídos pelos alemães. Leon Idzikowski está enterrado na área polonesa do cemitério de Baikovsky, em Kiev. A inscrição no monumento diz: “Leon Idzikowski, natural de Cracóvia. Viveu 38 anos e morreu em 1865. Irmão, suspire a DEUS.”
João Scortecci
GUILLAUME APOLLINAIRE, PABLO PICASSO E O ROUBO DA "MONA LISA" / JOÃO SCORTECCI
O poeta e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880 – 1918) morreu jovem, com apenas 38 anos de idade, vítima da gripe espanhola. Considerado o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, é conhecido por sua poesia sem pontuação e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, e de ser o criador da palavra “Surrealismo”. Apollinaire ficou mundialmente conhecido quando foi acusado de cúmplice no roubo, em 21 de agosto de 1911, do quadro “Mona Lisa”, pintado entre os anos de 1503 e 1506, pelo italiano Leonardo da Vinci (1452 – 1519), e exposto no Museu do Louvre, em Paris. O caso teve repercussão internacional, e as investigações levaram a polícia a suspeitar do poeta francês. Ele chegou a ser preso e foi mantido na cadeia por uma semana, até ser solto, por falta de provas. Seu depoimento – não há documentos sobre o que foi dito – levou a polícia a convocar, para interrogatório, o pintor espanhol Pablo Picasso (Pablo Ruiz Picasso, 1881 – 1973), como suspeito de ser o mandante do roubo, mas nada foi encontrado que o incriminasse. Em 1913, a polícia da Itália prendeu o italiano Vicenzo Peruggia, ex-funcionário do Louvre, tentando vender clandestinamente a pintura, movido – foi o que declarou – por um sentimento nacionalista. Em 1914, “Mona Lisa” foi reintegrada ao acervo do Louvre. Historiadores e cientistas da arte afirmam que a mulher retratada é a italiana Lisa Gherardini (1479 – 1542), nascida em Florença, e que seu marido, Francesco del Giocondo, foi quem encomendou a obra. “Mona Lisa” é, muito provavelmente, a obra de arte mais famosa da história ocidental. Mede 77 cm de altura por 53 cm de largura e foi levada para a França pelo próprio Leonardo da Vinci, quando morou naquele país e trabalhou na Corte francesa. Foi vendida para Francisco I, rei da França entre os anos de 1515 e 1547, que teria pagado pela obra uma quantia bastante elevada: cerca de 4.000 táleres de ouro. O poeta Guillaume Apollinaire morreu em 1918, quatro anos depois que “Mona Lisa” voltou para o Louvre. Está sepultado no cemitério de Père-Lachaise, em Paris, tendo no seu túmulo uma escultura em forma de menir, monumento megalítico, feito por Pablo Picasso.
João Scortecci
MOMENTOS LITERÁRIOS / MARIA MORTATTI
Momento literário era o título da revista do CEL – Centro de Estudos de Letras da FCLA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara/SP (encampada pela Universidade Estadual Paulista em 1976), onde me licenciei em Letras – Português-Inglês, em 1975. Naquele ano, candidatei-me à presidência do CEL em uma chapa composta por cinco mulheres e um homem. Além de mim, participavam as estudantes Regina Céloia Vieira, Maria Rita Mantese, Luiz Gonzaga Marchezan, Suely do Carmo Máscia, e a bibliotecária Guaraci Maria Nogueira; no conselho editorial, estavam os professores Dante Tringali e Fernando de Carvalho e as estudantes Elisabete de Carvalho e Elizabeth Rocha Leite.
Depois de intensa campanha, nossa chapa foi eleita e, pelo que me lembro, fui a primeira mulher a assumir essa função, o que não era pouca coisa para a época. O curso de Letras, frequentado predominantemente por mulheres, era chamado de “espera marido”, preconceito que infelizmente ainda persiste. E, naqueles tempos sombrios da ditadura militar no Brasil, nós, as “moçoilas casadoiras”, éramos acusadas de “alienadas” politicamente, sobretudo pelos estudantes dos cursos de Ciências Sociais e Filosofia. A vitória de nossa chapa nos impunha, então, redobrada responsabilidade para provar competência. Assim fizemos! Entre outras atividades literárias e culturais, editamos boletins e os quatro números trimestrais da revista correspondentes ao ano de 1975. Eram publicados ensaios, resenhas e textos literários de professores e estudantes. O trabalho de edição era manual: os textos eram datilografados – fiz esse serviço quase sempre – na sede do CEL, no subsolo do pátio do campus universitário, para onde foi transferida a faculdade, que até então funcionava no prédio do centro da cidade, na Rua 3, que depois abrigou a Casa da Cultura Luís Antônio Martinez. Os volumes da revista, com média de 50 páginas de tamanho ofício, eram impressos e encadernados na gráfica da faculdade, com capa em papel cartonado e como publicação oficial da FCLA. Não me lembro da quantidade de exemplares por edição e se eram distribuídos gratuitamente. Mas eram lidos e comentados. E nos orgulhávamos da qualidade da revista e dos boletins. Guardo comigo exemplares que foram úteis para comprovar minhas primeiras atividades editoriais e poéticas, desde aqueles tempos. E também como aprendizado e inspiração para organização, edição e impressão (em mimeógrafo) de revistas e jornais com meus alunos da educação básica, para preparação de meus livros e artigos e para a realização de serviços de revisão editorial e preparação de originais para publicação.
Revisitei o CEL em 24.08.2016, durante as atividades da campanha como candidata à Reitora da Unesp – se tivesse sido eleita, teria sido também a primeira mulher e da área de humanidades na reitoria da universidade, o que não ocorreu, apenas por causa do peso proporcional não paritário dos votos de cada segmento de eleitores. O CEL continua em funcionamento, no mesmo local, com a denominação Centro Acadêmico de Cultura e Estudos em Letras "Paulo Leminski”. Não sei se ainda editam revista e boletins. Mas as lembranças continuam vivas e foram despertadas pela leitura do post do professor e escritor Paulo Franchetti, colega de turma na graduação e depois no mestrado em Teoria Literária no Iel/Unicamp. Ele comentou sobre a publicação de seu “primogênito” paper sobre literatura portuguesa naquela revista, em 1974. Procurando o exemplar em minha estante, encontrei meu “primogênito” poético, “Cantiga”, poema inspirado em Cecília Meireles, publicado no número 9, de agosto/setembro de 1974, quando eu tinha 19 anos e estava no 3º. ano do curso. Já lá vão os primeiros 49 anos de editoria e poesia. E memoráveis momentos literários.
Maria Mortatti – 14.11. 2023
PARA GOSTAR DE LER, É SÓ COMEÇAR / MARIA MORTATTI
O SOFÁ DO NADA DO POETA MANOEL DE BARROS / JOÃO SCORTECCI
Tudo ou nada, na direção de Manoel de Barros, o poeta. Quero o nada e depois o tudo, sentar-me, indolente, e lá permanecer, por séculos. Isso basta, o bastante. Manoel de Barros (1916 – 2014) nasceu em Cuiabá, estado do Mato Grosso, e aos 13 anos de idade se mudou para Campo Grande, hoje Mato Grosso do Sul. Lá, ficou – quase – sempre. Escreveu o “Livro sobre nada”, de 1996, obra que eu gostaria de ter escrito. Belíssima! Falar sobre o nada, sempre me ocupou profundamente. Gosto da ternura do nada, inexistente, selvagem e mortal. No nada não há dor e nem medo. Somente solidão! No meu livro de poemas “Água e sal – Fragmentos de tempo algum”, de 1990, prefaciado pelo mineiro Fábio Lucas, poetei alguns poucos versos sobre o nada. Ficou, na época, a promessa de, um dia, cutucar novamente o assunto e, então, talvez, escrever. Ficou. Tenho até um provável título: “Nada de alguém”, quase isso. Manoel de Barros é absoluto. Escreveu: “Uso a palavra para compor meus silêncios.” "O nada do meu livro é nada mesmo.". Não o conheci pessoalmente. Uma pena! Trocamos assobios, passarinhos, bilhetes e livros. Nunca tempestades! Mais um dos descuidos literários, de tantos, em 50 anos. Perdi – não me conformo – os passarinhos de Quintana, a vida Severina, de João Cabral, e o “Poema sujo”, de Ferreira Gullar. Não adianta me justificar por nada – eu os perdi, e pronto. Os poetas são malvados: gostam de travessuras, piruetas e castigos. São serpentes! Morrem do nada – alguns, várias vezes –, não vão embora, não se despedem, nunca. Ficam nos azucrinando, nos marcando com palavras, bocas e cheiros. Os poetas são grudentos! Drummond – o anjo torto do céu – recusou o epíteto de “maior poeta vivo do Brasil”, em favor de Manoel de Barros. Grande Drummond! Manoel de Barros morreu no nada, aos 97 anos de idade, lendo, provavelmente “Poemas concebidos sem pecado”. Fica aqui – registrado – o meu desafio: quando publicar o livro “Nada de alguém”, será em sua homenagem, com dedicatória e nada. Na agenda, visitar Manoel de Barros, sentar-me, então, ao seu lado, no seu sofá de bronze. Manoel, licença! Posso? Eu venho de longe, do nada, estou atrasado. Perdoe-me.
João Scortecci
PÉ DE CEBOLINHA VERDE E UM LUGAR PARA TODAS AS COISAS / JOÃO SCORTECCI
Nos anos 1960 – menino de tudo – resolvi plantar um maço de cebolinha verde no quintal de casa. “Planta que nasce novamente!” Foi o que me disseram. Curioso que sou, obedeci. Peguei uma enxada e comecei a cavar e a revirar a terra. Na verdade, cavei um buraco, dos grandes. Papai Luiz – que apareceu do nada – perguntou-me: “O que você está fazendo?”. “Uma horta!”, respondi. “E esse buraco?” Não respondi. Continuei cavando e jogando a terra no monte, ao lado. Ele se acocorou e – pacientemente – esperou por mim, até eu respirar e ouvir. “Filho, duas coisas são importantes na vida. A primeira é de ordem prática, para todas as coisas que você for fazer. Escolha o propósito, execute a tarefa e, depois, conclua com êxito”. Interessante, pensei. “E a segunda?” “A segunda é de ordem moral: antes de tirar algo do seu lugar, certifique-se, primeiro, onde irá colocá-la!”. Papai Luiz se levantou e, em silêncio, partiu. Eu, reflexivo, com a enxada, devolvi toda a terra de volta para o buraco. Plantei o maço de cebolinha verde, molhei a terra e a entreguei ao deus Sol, na sorte das minhas lembranças. Pesquisando sobre algoritmos, encontrei a biografia do matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo e escritor persa Alcuarismi (Abu Abdalá Maomé ibne Muça ibne Alcuarismi, 780 – 850), erudito na Casa da Sabedoria (ou Casa do Saber), biblioteca e centro de traduções estabelecido à época do Califado Abássida, em Bagdá, no Iraque. No seu livro “Da Restauração e do Balanceamento”, Alcuarismi apresentou a primeira solução sistemática das equações lineares e quadráticas. É considerado o fundador da Álgebra – junto ao matemático grego Diofante, de Alexandria. O radical das palavras “algarismo” e “algoritmo” vem de “algoritmi”, a forma latina do nome do erudito persa. Além do vocábulo português “algarismo”, seu nome deu origem ao espanhol “guarismo”, que, ao passar para o francês, tornou-se “logarithme” e deu origem ao termo moderno “algoritmo”. O conceito de "catálogo de biblioteca" foi introduzido nessa e em outras bibliotecas islâmicas medievais, nas quais os livros se organizavam por gêneros e categorias específicas. A incógnita nas equações algébricas era denominada pelos matemáticos muçulmanos como “xay” (“coisa”), notadamente na álgebra de Ômar Khayyam, que, ao ser transcrita “xay” pelos espanhóis, deu origem ao “X” da álgebra moderna. A Casa do Saber foi destruída durante o cerco de Bagdá, em 1258, pelos mongóis. Antes do cerco, no entanto, perto de 400 mil manuscritos foram resgatados pelo polímata persa Tuci (Naceradim de Tus, 1201 – 1274) e levados para Maragha, no Irã. Em tempo: “Pai, quem disse isso?” “Um matemático russo!”, foi o que ele respondeu, na época. Quando quis saber mais, papai Luiz já estava com demência avançada e liberto do lugar de todas as coisas.
João Scortecci
MARIE SKLODOWSKA CURIE: UMA IRRADIANTE MULHER / MARIA MORTATTI
A cientista polonesa, naturalizada francesa, Maria Sklodowska/Marie Sklodowska Curie (07.11.1867 – 04.07.1934) foi pioneira e exemplar nas muitas atividades que realizou em uma sociedade sexista e xenófoba. Ela e o marido, o físico francês Pierre Curie (15.05.1859 – 19.04.1906), descobriram os elementos químicos Rádio e Polônio – este assim denominado em homenagem à terra natal da cientista – e foi a primeira mulher laureada com o Prêmio Nobel, por duas vezes: o de Física, em 1903, compartilhado com o Pierre e Henri Becquerel; e o de Física, em 1911. Foi também a primeira mulher a se formar em Ciências na Universidade Sorbonne, na França; a primeira a obter o título de doutorado – com a tese defendida em 1903, em que descrevia detalhadamente seus esforços para compreender a origem da radioatividade; a primeira professora catedrática naquela universidade francesa; e a primeira mulher a ser sepultada por seus próprios méritos no Panteão de Homens Ilustres de Paris.
Filha de professor-cientista e de professora-diretora de escola, após ter considerado se dedicar à literatura, decidiu-se pelos estudos em física e química, motivo de sua partida para a França, uma vez que na Polônia, sob domínio russo na época, mulheres não podiam frequentar universidades. Destacou-se, ainda, pela dedicação à educação científica. Na França, além de professora na Sorbonne, lecionou em escola secundária e inovou no ensino de Física, por meio de perspectiva experimental, buscando despertar vocações científicas em crianças e mulheres. Em 1985, casou-se com Pierre Curie, por quem se apaixonou quando foi a ele apresentada por um cientista polonês em Paris. Casaram-se no civil, em cerimônia simples, ela vestida de azul-marinho, como o avental que usava no laboratório, e seguiram de bicicleta em viagem de lua de mel. Sobre Pierre, Marie escreveu: “ele dedicou sua vida ao sonho da ciência: ele sentia precisar de uma companheira que pudesse viver esse sonho com ele”. Tiveram duas filhas: Irène e Eve. Pierre morreu ao ser atropelado por uma charrete, quando atravessava a rua, num dia chuvoso. Depois da tragédia, Marie entrou em depressão, afastando-se temporariamente do laboratório onde trabalhavam juntos. No seu diário íntimo, iniciado dias depois do falecimento do marido e finalizado no ano seguinte, revela-se a faceta apaixonada da mulher que aparentava dureza, sem sorrisos nas poucas fotos disponíveis, possivelmente para enfrentar as proibições impostas às que ousavam lutar para conquistar seu lugar na sociedade, conforme o mérito de seus talentos. Durante a Primeira Guerra Mundial, prestou grandes serviços aos soldados, com suas ambulâncias radiológicas, conhecidas como "Petit curies". Com a filha Irène Joliot-Curie, que se tornou cientista e se casou com o também cientista Jean Joliot-Curie, Marie esteve no Brasil, em 1926, fazendo conferências e divulgando o uso da radiação no tratamento do câncer no Instituto do Radium de Belo Horizonte e na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Ela morreu em decorrência de anemia aplástica, com 66 anos de idade, causada provavelmente pela exposição sem proteção, durante décadas, a material radioativo com que trabalhava em suas pesquisas, numa época em que não suspeitava dos efeitos nocivos da radioatividade no organismo nem de uma das consequências diretas de sua descoberta, a energia nuclear e a bomba atômica. Foi enterrada ao lado do marido no cemitério de Sceaux e, em 1995, os restos mortais foram transferidos para o Panteão de Paris.
Uma das mais extraordinárias figuras da Física e da Química modernas, Marie Curie influenciou gerações de físcos e químicos, tendo deixado um legado científico fundamental e importantes documentos para a história da ciência. Além da tese, de cadernos de laboratório, de relatórios semanais na revista Comptes Rendus, da Academia Francesa de Ciências, de publicação de artigos em coautoria com o marido, relatando resultados das pesquisas, e dos diários, Marie publicou, em 1919, o livro Radiologia na guerra, com sua experiência como membro de comitês dedicados à causa polonesa, em 1923, a biografia de Pierre Curie, seguida de anotações de sua autobiografia, e escreveu o livro, Radioatividade, publicado em 1935 (póstumo). Todo o material que ela tocou, porém, permanece cuidadosamente guardado nos porões da Biblioteca Nacional da França, em caixas especiais com várias camadas de chumbo, por se tratar de material altamente radioativo. Também para evitar contaminação, o corpo de Marie foi enterrado em um sarcófago de chumbo com mais de 2 cm de espessura. Segundo os cientistas, deverão permanecer intocáveis por 1.500 anos, tempo necessário para a desintegração dos átomos de rádio.
Conhecida mundialmente, foi homenageada com inúmeras honrarias e biografias, uma delas de autoria da filha Éve, em 1938, além de cinebiografias, como Radioactive, de 2019, direção de Mariane Satrapi, baseado no livro Radioactive: Marie & Pierre Curie: A tale of love and fallout, de Lauren Redniss. Madame Curie foi figura marcante para minha formação. Quando eu cursava o último ano do curso colegial, em 1970, e tive de decidir sobre a carreira a seguir, duas áreas me interessavam: Química – porque gostava da matéria e da professora, D. Terezinha Cury, que me apresentou Madame Curie; e Letras – porque gostava muito de ler literatura. Na dúvida, fiz a inscrição para exame vestibular na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, onde há os dois cursos. Aprovada, acabei optando por Letras, mas continuo gostando de Química e Física e admirando essa irradiante mulher que contribuiu para iluminar novas descobertas e tornar o mundo um lugar melhor para todos. E com quem aprendi que "Nada na vida deve ser temido; apenas deve ser compreendido" e "(...) a ciência tem uma grande beleza. Um cientista em seu laboratório não é apenas um técnico: é também uma criança colocada diante de fenômenos naturais que o impressionam como um conto de fadas”.
Maria Mortatti – 07.11.2023
BEIJOS ROUBADOS DE CORA CORALINA E RACHEL DE QUEIROZ / JOÃO SCORTECCI
O dia em que tudo aconteceu. O beijo roubado de Anna Lins! Não foi lá nos Becos de Goiás e nem nas águas do Rio Vermelho. Foi quando Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas perdeu o medo e virou Cora Coralina. Foi no ano de 1983, na sede da União Brasileira dos Escritores – UBE, quando da entrega do Prêmio Intelectual do Ano – Troféu Juca Pato. Eu, pequenino; e ela, gigante! Curvei-me quase meio metro, para que ela pudesse me roubar um beijo de poeta. Poucas mulheres receberam o Troféu Juca Pato, outorgado pela entidade de escritores. Foi Cora Coralina – dos becos de Goiás – quem puxou a fila literária. Depois, vieram Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiróz, Renata Pallottini e Tatiana Belinky. Coube à escritora luso-brasileira Dalila Teles Veras lançar – contra tudo e todos – a candidatura da poeta goiana e, a duras penas, conseguir as 30 assinaturas obrigatórias, na época, para disputar o pleito. Foi um momento de ruptura importante na UBE, que fez história. Cometi o mesmo beijo – também roubado – no ano de 1992, na Rachel de Queiroz, conterrânea e amiga da Família Paula. Como meu avô paterno, João Batista de Paula, o Batista da Light, a escritora nasceu na cidade de Quixadá, no Ceará, e foi amiga de uma vida inteira. Quando soube meu nome, perguntou: “Você é neto do Batista da Light?” “Sou.” “O Batista era muito querido, estava sempre alegre e sorrindo", sentenciou ela. Rachel de Queiroz estava sentada – confortavelmente – numa poltrona na sala da diretoria da UBE, aguardando o início da cerimônia de entrega do Juca Pato. Curvei-me e a beijei, com todo o amor do mundo. Foi o nosso último e derradeiro encontro. Logo depois, Rachel adoeceu e faleceu, em 4 de novembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro. Beijos roubados são sempre assim: perigosos, eternos e inesquecíveis.
João Scortecci
O MITO DE PIGMALEÃO, AFRODITE E GALATHEA / JOÃO SCORTECCI
João Scortecci
CONSELHOS DE BOILEAU SOBRE A ARTE DE ESCREVER / JOÃO SCORTECCI
O poeta e tradutor francês Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux, 1636 – 1711), autor da obra “Discurso sobre a sátira” (1666), em que zomba do clero e da aristocracia, pinta quadros divertidos e parodia escritores, é considerado um polemista – aquele que trava polêmicas – e um teórico da literatura francesa. Escrevia, principalmente, para a aristocracia, dentro da tradição de Aristóteles e Horácio. Em 1674, publicou “A arte poética” (“L’Art poétique”), poema didático de 1.100 alexandrinos clássicos, dividido em quatro canções – obra que influenciou toda uma geração de escritores. Em 1677, foi nomeado, juntamente do poeta dramaturgo e matemático Racine (Jean Baptiste Racine, 1639 – 1699), historiógrafo do rei Luís XIV, e, em 1684, entrou para a Academia Francesa. Em 1687, publicou “Reflexões sobre Longino”, popularmente conhecido como “São Longuinho”, santo da Igreja Católica. Boileau foi venerado como grande poeta e inspirador de Racine e de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622 – 1673), ator e dramaturgo francês, considerado um dos mestres da comédia satírica. Boileau, nos versos iniciais do Canto I de “A arte poética”, afirma a necessidade de um talento inato, sem o qual a escrita poética lhe parece impossível. No entanto, ele sustenta a partir daí que esse talento natural não pode ser suficiente por si só, que ele deve se submeter às regras da poesia e, portanto, ao rigoroso aprendizado dessa arte. A perfeição só pode ser alcançada quando o gênio e o respeito pelas regras são combinados. Escreveu: “Há certos espíritos cujos sombrios pensamentos, são como nuvem espessa; sempre emaranhados. O dia da razão não saberia atravessá-la. Antes, pois, de escrever, aprendam a pensar (...) E sem perder coragem, vinte vezes empreendam a vossa obra: limpem-na sem cessar e tornem a limpá-la, acrescentem algumas vezes, mas outras eliminem.” Em dois dos versos mais famosos de “A arte poética", afirma: “O que concebemos bem é declarado claramente/E as palavras para dizê-lo chegam facilmente.”
João Scortecci
NOS BRAÇOS DE DRUMMOND, EM ESTADO DE POESIA / MARIA MORTATTI
Dizem que a poesia salva e a memória falha. Mas há dias em que a poesia – insensível – me falha e o que me salva é a memória da poesia que me salvou naqueles dias e deles ficou como única prova – tangível – de sua existência. E há outros – tão sentimentais – em que até as escamas da sopa esfriando no prato são encobertas pelo cartaz amarelo na consciência: “neste país é proibido sonhar”. Assim aprendi com Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987), quando o vi pela primeira vez e nele toquei na estante da Biblioteca Pública Municipal "Mário de Andrade" de Araraquara. Desde então, quando, enclausurada nos sombrios enigmas da quadrilha, procuro a palavra que falta num verso que inunda minha vida inteira, mas a pena não quer escrever, lembro-me de nossos primeiros encontros delicadamente registrados no caderninho – secreto – da menina de 17 anos. Foi assim que, tempos atrás, por alguma magia na noite cega – consegui penetrar surdamente por uma fresta no reino das palavras. Lá reencontrei em estado de dicionário cada letra da palavra que nomeia a falta e a esperança, perdi-me entre os infinitos poemas que estão por ser escritos, até que, vencida pela fadiga das retinas, repousei a cabeça sobre a pedra e adormeci no caminho. Outubro chegava ao fim, quando me despertou um anjo torto com outro cartaz amarelo: neste país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era aniversário do poeta: 121 anos! Quase tropecei nas palavras, ainda impregnadas de sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Sobre o tapete ou duro piso, compusemos com urgência a úmida trama. Um caso pluvioso! Para repousar, fomos à cama. Onde cabe todo o sentimento do mundo e o amor – ah, o amor! –, esse privilégio dos maduros, que começa tarde e se aprende depois de arquivar toda a ciência. A lua e o conhaque nos botaram comovidos como o diabo. Aconchegada em seus braços, em puro estado de poesia, sonhei que cantávamos o medo, respirando papel na noite do quarto. Acordei sozinha no escuro. Por que me abandonaste? E agora, José? Sem rima, a solução: chegara o tempo em que a vida é uma ordem. É preciso terminar o texto. Mesmo sabendo que tenho apenas duas mãos e meus ombros mal conseguem suportar o mundo, ainda que mal me exprima. Se procurar bem, acabo encontrando, não a explicação (duvidosa) da partida inesperada – Por quê? Por quê? Por quê? –, mas a poesia (inexplicável) dos tempos felizes. Mesmo sabendo que amar um passarinho é coisa louca e o canto é sua essência, se não há falta na ausência, se de tudo fica um pouco, por que não ficaria muito de nós em nós? Se amar se aprende amando e, tal uma lâmina, atravessamo-nos, fecundamo-nos e renascemos em cada novo cio, compondo em sete mil cantos as sete mil faces do amor, depois que as coisas tangíveis se tornaram insensíveis à palma da mão, ficamos nós em nós. Em estado de poesia nos habitamos: “Além do amor, não há nada,/amar é o sumo da vida.//São mitos do calendário/tanto o ontem como o agora/e o teu aniversário/é um nascer toda hora.//E nosso amor, que brotou/ do tempo, não tem idade/ pois só quem ama escutou/o apelo da eternidade.”
Maria Mortatti – 31.10.2023 (Dia de Drummond - Dia Nacional da Poesia)
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Obs.: Cito, sem aspas e com licença poética, versos de vários poemas de Drummond.
JOSÉ OLYMPIO, CASA GARRAUX E A SEMANA DE ARTE MODESTA EM BATATAIS/SP NO ANO DE 1987 / JOÃO SCORTECCI
A José Olympio Editora foi fundada em 1931 pelo editor e livreiro batataense José Olympio (José Olympio Pereira Filho, 1902 – 1990), na cidade de São Paulo. Em 1918, com 16 anos de idade, José Olympio deixou Batatais – região metropolitana de Ribeirão Preto – e se mudou para a capital paulista, com o objetivo de estudar Direito. Conseguiu um emprego na Papelaria, Livraria e Typographia Casa Garraux (A. L. Garraux & C.), então de propriedade de Charles Hildebrand. Trabalhou na seção de livros, e o serviço consistia em abrir caixas de livros e limpar a poeira das estantes. Depois passou a ajudante de balconista, época em que tomou gosto pelos livros. A Casa Garraux era frequentada por políticos e escritores, como Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Em 1926, com a morte de Charles Hildebrand, José Olympio assumiu o cargo de gerente da seção de livros. No final da década de 1920, José Olympio começou a se interessar por livros raros e se tornou um respeitado entendido no assunto. Com a morte do advogado e jornalista, Alfredo Pujol (Alfredo Gustavo Pujol, 1865 – 1930), colecionador de livros raros, Olympio fez uma oferta para a família e comprou todo o acervo desse colecionador. Foi o início do seu legado. Adquiriu – depois – vários outros acervos, para, em 1931, aos 28 anos de idade, fundar a Casa José Olympio Livraria e Editora, na Rua da Quitanda, 19 A, na capital paulista. Em 1934, a livraria se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, então centro intelectual do Brasil. Em 1935, Olympio se casou com a professora e escritora Vera Pacheco Jordão, com quem teve dois filhos, Vera Maria Teixeira e Geraldo Jordão Pereira (1938 – 2008), fundador da editora Sextante (1998), junto de seus filhos Marcos da Veiga Pereira e Tomás da Veiga Pereira. Nas décadas de 1940 e 1950, a José Olympio se tornou a maior editora brasileira. Publicou perto de 2 mil títulos, com 5 mil edições, sendo 900 autores nacionais e aproximadamente 500 autores estrangeiros. Em 1987, visitei Batatais – cidade natal de José Olympio –, durante a Semana de Arte Modesta, encontro comemorativo dos 65 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. O evento em Batatais foi “grandioso” e registrou a presença de centenas de escritores de todo os cantos do Brasil. Fomos e voltamos de ônibus alugado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Do meu lado – eu, na janela do ônibus, e ele, no corredor do meio –, o escritor e editor Pereira (Antonio Olavo Pereira, 1913 – 1993), irmão caçula de José Olympio. A viagem de 350 km, de São Paulo até Batatais, durou quase 6 horas. Dos atrasos e das demoras, uma única certeza: torcendo para não chegar nunca! Conhecê-lo foi um “presente dos deuses”. Na época, a Scortecci Editora tinha pouco mais de cinco anos de idade. Em 2001, a José Olympio Editora foi comprada pelo Grupo Editorial Record.
João Scortecci
GRACILIANO RAMOS: ARTE É ISSO / MARIA MORTATTI
Maria Mortatti – 27.10.2023
PALMEIRA DOS INDÍOS E A CADELA BALEIA / JOÃO SCORTECCI
O ator Jofre Soares (José Jofre Soares, 1918 – 1996) nasceu em Palmeira dos Índios, agreste alagoano, distante 136 km da capital, Maceió. Terra do “Homem da Capa Preta” (Tenório Cavalcante, 1906 – 1987) e também do escritor Graciliano Ramos (1892 – 1953), autor de Vidas secas e Memórias do cárcere. O ator Jofre Soares começou sua carreira em 1961, aos 43 anos de idade. Atuou em mais de 100 filmes, entre eles: O bom burguês (1979), O grande mentecapto (1989), Terra em transe (1967), Memórias do cárcere (1984) e Bye bye Brasil (1979). Antes disso, foi oficial da Marinha por 25 anos. Já tinha se aposentado como marinheiro e se dedicava ao teatro amador e ao circo da cidade, no qual era um palhaço, quando o cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928 – 2018) o conheceu e o convidou para fazer o filme Vidas secas, baseado na obra de Graciliano Ramos. A cadela vira-lata, que interpreta Baleia, foi encontrada pelo cineasta embaixo de uma barraca de frutas, numa feira de Palmeira dos Índios. Uma das cenas mais famosas do filme Vidas secas é o abatimento da cadela Baleia, em que é mostrado o animal sendo atingido por um tiro de espingarda, dado por seu dono, Fabiano. Quando o filme foi exibido no Festival de Cannes, na França, em 1964, o público e a crítica francesa ficaram impressionados com o realismo da cena e acreditaram que a cadela tivesse sido de fato sacrificada de verdade durante as filmagens, o que não foi verdade. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no ano de 2018, o diretor de fotografia do filme Luiz Carlos Barreto (1928 – ), explicou como a cena da morte de Baleia foi realizada: “Pegamos uma linha branca de costura, amarramos a perna no rabo para ela fingir que tinha levado o tiro. Tinha a maquiagem, água de chocolate, não sei o quê. Ela tinha de fechar os olhos. Nós escolhemos uma locação, um carro de boi e o sol nascendo para ela olhar para o sol. O sol batia, e ela foi fechando os olhos por causa da luminosidade. O Nelson botou toda a equipe para fora, e só ficou eu, ele e o José Rosa – e a câmera. Ninguém falava nada. Na hora que ela começasse a fechar os olhos, o Nelson catucava o Zé Rosa e ele ligava a câmara. Foi o combinado. O sol nasceu, ela fechou os olhos e deu a sensação nítida de morte.” A cadela Baleia também é imortal. Vez por outra a vejo correndo no agreste, livre e solta, na imensidão da memória da vida.
João Scortecci
"RODA DE LIVROS", ENGENHOCA DO CAPITÃO RAMELLI / JOÃO SCORTECCI
O engenheiro e capitão italiano Agostino Ramelli (1531 - 1610), nasceu na comuna de Ponte Tresa, hoje Suíça. Foi o inventor da “Roda de livros”, uma estante rotativa que possibilita ler, consultar e pesquisar vários livros num mesmo local. Foi inventada numa época em que livros grandes apresentavam problemas práticos para os leitores. Girava como se fossem movimentos de um moinho movido a água. Para garantir que os livros permanecessem em um ângulo consistente, Ramelli incorporou ao projeto engrenagens epicíclicas. Quando a roda gira, cada prateleira gira na mesma proporção, permanecendo nivelada. Ramelli ficou conhecido por escrever e ilustrar o livro de projetos de engenharia “As várias e engenhosas máquinas do capitão Agostino Ramelli” (“Le diversas et artificiose machine del Capitano Agostino Ramelli”), que, além de seu projeto da “roda de livros”, contém 195 designs, mais de 100 dos quais são máquinas de levantamento de água, como bombas d'água, pontes, moinhos e um possível precursor do motor Wankel - motor rotativo de combustão interna, inventado pelo engenheiro alemão Felix Wankel (1902 – 1988), que utiliza rotores com formato semelhante ao de um triângulo em vez dos pistões dos motores alternativos convencionais. Durante o "Cerco de La Rochelle”, ordenado por Luís XIII, rei da França, e comandado pelo Cardeal de Richelieu (Armand Jean du Plessis, 1585 - 1642), que acabou com a capitulação da cidade, em 28 de outubro de 1628, Ramelli construiu com sucesso uma mina sob um bastião - posto avançado para a defesa de um território - e conseguiu violar a fortificação, até então inviolável. Ramelli morreu em Paris, aos 79 anos de idade. Ficou na história do conhecimento como o mais criativo inventor de “engenhocas” movidas pelas forças da água e da natureza de Deus.
CAMILO CASTELO BRANCO E O AMOR: PERDIÇÃO E SALVAÇÃO / MARIA MORTATTI
A SÉRIE VAGA-LUME, A LITERATURA "PARADIDÁTICA" E A FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL / MARIA MORTATTI
Lançada em 1973, sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 – ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial brasileiro, a Série Vaga-Lume da editora Ática deu início à publicação de livros de literatura para público jovem que se tornaram clássicos. E também consolidou o termo “paradidático” para designar esse produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Embora livros desse tipo fossem utilizados esparsamente nas escolas brasileiras desde o início do século XX – com destaque para Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim –, a criação do termo “paradidático” é atribuída ao professor Anderson Fernandes Dias, diretor-presidente da Editora Ática, e ao editor e professor Jiro Takahashi, tendo se estendido a material de apoio de várias matérias do currículo escolar, além de Língua Portuguesa. Com reformulações no projeto original e desdobramentos na Série Vaga-Lume Júnior, desde os anos 1970 mais de 150 títulos foram lançados ou relançados, superando, segundo a editora, oito milhões de exemplares vendidos até 2021.
Originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo, a Ática iniciou, em 1970, a publicação de paradidáticos na área de língua portuguesa e literatura com a Série Bom Livro de clássicos de literatura brasileira e portuguesa. Com a democratização do ensino público decorrente das mudanças estabelecidas pela Lei n. 5.692, de 1971 – que, entre outras medidas, tornou obrigatório o ensino de oito anos – e com novos programas de incentivo à leitura e à formação de leitores, a Vaga-Lume foi destinada, como leitura extraclasse, para um público específico: estudantes de 5ª a 8ª. série do então 1º. grau, com idades entre 10 e 14 anos, pouco habituados à leitura de clássicos. Na contracapa dos livros, constavam seus objetivos de adequação aos interesses e gostos de estudantes dessa faixa etária: “Para despertar e criar o gosto pela leitura. Histórias emocionantes, cheias de ação, uma linguagem simples e direta. Todos os títulos com um Suplemento de Trabalho especial”. E com capas inovadoras para a época. Como conta Takahashi em entrevistas, os livros eram selecionados entre os que chegavam à editora e os indicados por professores, além de a editora convidar autores para escrever especialmente para a Série. Eram também “testados” por estudantes que davam sugestões sobre temas e distribuídos gratuitamente aos professores. Além das inovações, o baixo custo dos livros foi outro fator de sucesso da Série.
Os primeiros lançamentos da Vaga-Lume foram títulos de autores contemporâneos já publicados e consagrados em décadas anteriores, alguns agraciados com prêmios e indicações nacionais e internacionais. Entre esses, constam: dois de Maria José Dupré republicados em 1973 – A ilha perdida, de 1944, que inaugurou a Vaga-Lume, com mais de 5 milhões de exemplares vendidos até os dias atuais, e Éramos Seis, de 1943; seis títulos de Lúcia Machado de Almeida – O caso da borboleta Atíria, de 1951, republicado na Série em 1976, O escaravelho do diabo, publicado originalmente na revista O Cruzeiro e republicado em 1974, e As aventuras de Xisto, de 1957, republicado em 1973; dois títulos de Homero Homem – Cabra das Rocas, de 1960, republicado em 1973, com meio milhão de exemplares vendidos, e Menino de asas, de 1969, republicado em 1978, com mais de um milhão de exemplares vendidos até 1988 e que constou da lista de honra do Prêmio Hans Christian Andersen, em 1979; três títulos de Ofélia e Narbal Fontes – Cem noites tapuias, republicado em 1976, ano em que foi premiado com o Jabuti – CBL, O gigante de botas, de 1940, republicado em 1974, Coração de onça, de 1942, republicado em 1977. A partir dos anos 1980, autores brasileiros foram convidados a escrever especialmente para a Vaga-Lume. O primeiro e o “rei da Série” foi Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, que já era consagrado como autor de obras para adultos, roteirista e tradutor. Estreou na literatura para jovens com a publicação na Vaga-Lume, em 1981, de O mistério do cinco estrelas, que, até fevereiro de 1995, vendeu quase um milhão de exemplares, seguido de 14 títulos seus publicados quase anualmente, entre os quais, O rapto do garoto de ouro, de 1982, Um cadáver ouve rádio, de 1983, Sozinha no mundo, de 1984, e Gincana da morte, de 1997, o último que publicou na Vaga-Lume. Também se destacou, entre outros, o escritor mineiro Luiz Puntel, com sete livros na Série, o primeiro deles Deus me livre!, de 1984.
Os livros da Vaga-Lume fizeram sucesso também entre meus alunos da educação básica nos anos 1980. Analisei três deles – A ilha perdida, Aventuras de Xisto e O mistério do cinco estrelas – em minha dissertação de mestrado em educação, na Universidade Estadual de Campinas, orientanda por Joaquim Brasil Fontes Junior e publicada no livro Leitura, literatura e escola (Martins Fontes, 1989). Na enquete que realizei em 1984, com professores e alunos de escolas públicas da região de Campinas/SP, os preferidos eram também os best-sellers da Vaga-Lume. Contando com autores e títulos consagrados antes ou com sua participação na Série, com textos narrativos ficcionais adequados aos interesses e gostos dos jovens, com modo de circulação no espaço escolar, mas como leitura extraclasse, e com baixo custo, esses “paradidáticos” de literatura brasileira – como os de outras duas séries da editora: Bom Livro e Para Gostar de Ler – ampliaram o sentido do termo e desse tipo de produto editorial, tendo se tornado clássicos – os títulos e a Série – e um marco importante na história da literatura para jovens no Brasil e que, há 50 anos, vêm contribuindo para a formação de várias gerações de leitores.
Maria Mortatti – 21.10.2023