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A CANÇÃO DOS FANTASMAS NATALINOS DE CHARLES DICKENS / MARIA MORTATTI

A Christmas Carol. In Prose. Being a Ghost Story of Christmas (Uma canção de Natal. Em prosa. Sendo uma história de fantasmas de Natal), é um clássico natalino escrito há 180 anos pelo inglês Charles Dickens (7.2.1812 – 9.9.1870), autor de outras histórias do gênero, além de romances, contos, peças de teatro, artigos em jornal e folhetins semanais, compondo uma obra com personagens que se tornaram icônicos e apreciados por leitores e críticos, em especial pela exposição dos problemas sociais, como pobreza, desemprego, trabalho infantil, condições degradantes do trabalho fabril, na Era Vitoriana (1837 – 1901). Uma canção de Natal foi escrito em apenas seis semanas, por pressão financeira – estava para nascer seu quinto filho – e depois de seu regresso de viagem em que constatou as péssimos condições de vida e trabalho dos pobres ingleses e de educação de crianças pobres em “escolas maltrapilhas”. Dickens tinha então 31 anos de idade, mas já era famoso nos países de língua inglesa, como autor dos romances The Pickwick papers (Os Cadernos de Pickwick), de 1836, e Oliver Twist, de 1837. Uma canção de Natal foi financiado pelo autor – que cuidou meticulosamente da preparação e edição com a alta qualidade que desejava, e foi lançado em Londres, em 19.12.1843, pela Chapman & Hall, com ilustrações de John Leech e preço acessível. Rapidamente se tornou o livro de maior sucesso da época. A primeira edição se esgotou na véspera daquele Natal: foram vendidos mais de 6.000 exemplares ou 16.500,...
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HOUAISS E O "ENTERRO DOS OSSOS" / JOÃO SCORTECCI

Ricos e pobres – cada um na sua – costumam, depois das festas de final de ano, celebrar, em data única, o enterro dos ossos! Missão – quase – impossível. Sempre sobra alguma coisa. No Ceará dos anos 1960, mamãe Nilce desfiava o peru. Isso na ceia de Natal. No dia seguinte, a carcaça enriquecia a canja das almas, e as sobras, a farofa de ovo com banana! Na virada do Ano Novo, era a vez dos ossos do pernil. Repeteco gastronômico! Todo ano a mesma promessa: muita comida! Desperdício. E as sobremesas: Pudim de leite, pavê, mousse de chocolate, manjar, doce de leite com queijo branco, quindim e sorvete de chocolate. Pergunta: Já viu alguém levar para casa – depois da comilança – marmitinha de sobremesa? Eu! Existe a turma das frutas. Respeito, claro. “Enterro dos ossos”, no Dicionário Houaiss significa “banquete, aproveitando o que sobrou”. O amigo Antônio Houaiss era um “crânio” brilhante. Gostava de contar causos gastronômicos e, quando o fazia, usava toda a maestria de um filólogo gourmet. No final dos anos 1980, eu, Houaiss e o escritor e artista plástico Enio Squeff, depois de uma reunião na UBE, fomos comer uma "pasta" no restaurante Gigetto. O Mestre Houaiss adorava pratos exóticos, impróprios, explosivos, diferentes. Perguntei-lhe: “Qual de todos lhe foi mais difícil comer?”. Houaiss, na lata, respondeu: “Cérebro de macaquinho vivo!”. Depois, sem pressa, fatiou-nos com sabedoria e inteligência sua cerebral aventura, num pequeno país do leste europeu. O estômago virou, confesso. O povo do restaurante, vizinhos de mesa e até...
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REVISTA "PRESENÇA" E O MODERNISMO PORTUGUÊS / JOÃO SCORTECCI

A revista portuguesa Presença – Folha de Arte e Crítica foi uma das mais influentes revistas literárias do Século XX. Foi lançada em Coimbra, a 10 de março de 1927, sendo publicados 54 números, durante 13 anos, até à sua extinção em 1940. A revista foi fundada por João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca e dirigida pelos dois e pelo poeta, dramaturgo, memorialista e historiador José Régio (José Maria dos Reis Pereira, 1901 – 1969).  Presença defendeu a criação de uma literatura mais viva, livre, oposta ao academismo e jornalismo rotineiro, primando pela crítica, pela predominância do individual sobre o coletivo, do psicológico sobre o social, da intuição sobre a razão. O Modernismo português teve início nos primeiros anos do século XX e desenvolveu-se até o final do Estado Novo, na década de 1970. Trata-se de um período amplo da história da literatura portuguesa, no qual três diferentes momentos podem ser observados: o Orfismo – fundado por artistas plásticos e escritores, entre eles Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Raul Leal, Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho (Ronald Arthur Paula e Silva de Carvalho, 1893 – 1935); o Presencismo – representado por importantes nomes, entre eles os escritores José Régio, Miguel Torga, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e Branquinho da Fonseca; e o Neorrealismo – corrente artística moderna de vanguarda, com influência socialista, comunista e marxista. O marco inicial da literatura neorrealista portuguesa foi a publicação do romance...
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LÍNGUA FERINA E A DAMA QUE TINHA UM CRAVO NA BOCA / JOÃO SCORTECCI

“Alcunha” – do árabe “al-kunya”: apelido que substitui um nome próprio. São também sinônimos de “alcunha” as palavras “apodo”, “antonomásia”, “cognome” e “epíteto”. Alcunhado de “Boca do Inferno”, o poeta e advogado luso-brasileiro Gregório de Matos (Gregório de Matos Guerra, 1636 – 1696) é considerado um dos maiores poetas do Barroco (estilo marcado pelo rebuscamento, requinte e exagero de adornos) e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa do Brasil colonial. Ganhou o “cognome” por sua ousadia em criticar padres, freiras, a Igreja católica e autoridades políticas: “Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,/ E é que quem o dinheiro nos arranca,/ Nos arranca as mãos, a língua, os olhos.” Gregório de Matos é também considerado um poeta “pornográfico” e um poeta maldito (“poète maudit”), praticante da desobediência absoluta, da rejeição a toda e qualquer regra imposta e da recusa em pertencer a qualquer ideologia instituída. Em 1685, o promotor eclesiástico da Bahia o denunciou ao tribunal da Inquisição. Em 1694 foi deportado para Angola, onde permaneceu por um ano. Voltou ao Brasil e foi morar no Recife/PE, com a proibição de não pisar na Bahia. Escreveu: “Quanto mais que é escusado/ na boca o cravo: porque/ prefere, como se vê/ na cor todo o nacarado:/ e o mais subido encarnado/ é de vossa boca escravo:/ não vos fez nenhum agravo/ ele de vos dar querela,/ que menina, que é tão bela,/ sempre tem boca de cravo.” Gregório de Matos morreu no Recife, aos 59 anos de idade, vitimado por uma febre contraída em...
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"O HOMEM É O LOBO DO HOMEM" / JOÃO SCORTECCI

Asinaria - Comédia do asno - é uma peça do dramaturgo romano Plauto (Tito Mácio Plauto, c. 230 a.C. – 180 a.C.), que viveu durante o período republicano e é autor da célebre frase “Lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit.” (“O homem que não se conheça tal como é, é lobo para o homem.”).  Plauto, na Comédia do asno – conta a história de Demêneto, um senhor avarento que ludibriou sua rica mulher de todas as formas possíveis para conseguir seu dinheiro. Plauto escreveu 21 peças, no período entre 205 a.C. e 184 a.C. Suas comédias estão entre as obras mais antigas em latim preservadas integralmente até os dias de hoje. A célebre frase do romano Plauto foi popularizada pelo matemático, teórico político e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679), no seu livro Leviatã, quando reafirmou: “O homem é o lobo do homem”. Thomas Hobbes nasceu em Westport, na Inglaterra. Filho de um clérigo anglicano, foi criado e educado por um tio. Aos 15 anos de idade, foi matriculado na Magdalen Hall da Universidade de Oxford, onde se formou em 1608. Durante toda a sua vida esteve conectado com a monarquia inglesa. Entre 1621 e 1625, foi secretário do político, do cientista Francis Bacon (1561 – 1626), ajudando-o a traduzir alguns de seus ensaios para o latim. A obra Leviatã – referência ao monstro bíblico homônimo – ou “Matéria, palavra e poder de um governo eclesiástico e civil”, foi publicada em 1651. Diz respeito à estrutura da sociedade e do governo legítimo e é considerada um dos exemplos mais antigos e mais influentes da...
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LIVROS: NO TEMPO DO PESTAPE, DA COLA DE BENZINA, DO ESTILETE E DA IBM COMPOSER / JOÃO SCORTECCI

Abri oficialmente a Scortecci Editora no ano de 1982. Já trabalhava com edição e impressão de livros, desde 1978. O primeiro computador da empresa chegou em 1992, e a Internet – discada e barulhenta – no início de 1998. Costumo dizer que sou do tempo do pestape, da cola de benzina, do estilete e das máquinas IBM Composer, de esfera. O primeiro domínio na Internet foi o “scortecci”, em 1998, e a primeira loja de venda de livros “asabeça – cabeça que voa”, em 1999. É dessa época a inesquecível Maria Luíza, 18 anos de idade, estagiária de Comunicação. Cuidava do site, da loja e do cadastro da editora. De volta de uma viagem pelo interior de São Paulo, encontrei Maria Luíza chorando, arrancando os cabelos. “O que aconteceu?” Ela, aos prantos, respondeu-me: “Sr. Scortecci, estou desconectada do mundo! A Internet não funciona – travou tudo – e eu não sei mais o que fazer!”. “Não?” Maria Luísa estava totalmente fora de si. Enlouquecida! Justificou-se: “Preciso falar – urgente – com um autor”. “Calma! Calma!” Deixa eu dar uma olhada na ficha de atendimento do autor.” Ela me entregou a ficha. Completa, legível, com número de telefone e tudo, melhor impossível. “Você sabe que aparelho é esse na sua mesa?”, perguntei, apontando para o aparelho de telefone. “Sei. Claro. Um telefone. Por quê?” “Sabe para que serve?”, insisti. “Claro!”, respondeu-me, já de cara feia. “Que tal você discar para o autor?” “Posso?” Não respondi. Virei as costas e fui embora. Foi o que ela fez. Discou e conversou – demoradamente – com o autor. Naquele mesmo dia,...
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REENCONTRO COM DE AMICIS EM SEU "CORAÇÃO" / MARIA MORTATTI

Edmondo De Amicis (21.10.1846 – 11.03.1908), jornalista, escritor e militar italiano de Oneglia, é autor de obra com mais 60 títulos – entre romances, relatos de viagens, artigos e outros gêneros –, que ficaram obscurecidos pelo sucesso editorial de Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos), lançado em 1886, pela editora Treves, de Milão. Em poucos meses, o livro alcançou 40 edições e, três anos depois, 98 edições, seguidas – até os dias atuais – de muitas outras, de traduções para várias línguas e adaptações em em livros, filmes e peças de teatro. Cuore consagrou o autor, que se tornou um dos mais lidos na Itália, e o livro, um dos mais populares clássicos da literatura escolar e infantil mundial. No Brasil, também teve várias traduções e serviu de inspiração para adaptações por autores de livros de leitura escolar e de literatura para crianças.No prefácio, o autor informa que o livro é dedicado às crianças entre 9 e 13 anos de idade e foi composto com anotações de um aluno do terceiro ano de uma escola pública de Turim, durante um ano letivo (outubro a julho, com férias de dois meses, conforme calendário europeu). Foram, depois, escritas pelo pai “tentando não alterar o pensamento e preservar, tanto quanto possível, as palavras do filho”, o qual, mais tarde, também acrescentou “algo de sua autoria”. A narrativa está dividida em 10 partes – correspondentes a cada mês letivo –, cada uma contendo uma sequência de textos, precedidos de títulos e data, à semelhança de um diário, em que o menino...
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KENNEDY, HUXLEY E AS BALAS DE LSD DO ANO DE 1963 / JOÃO SCORTECCI

Das distopias do dia 22 de novembro de 1963. Kennedy (John Fitzgerald Kennedy, 1917 – 1963), Presidente dos Estados Unidos da América, foi assassinado na cidade de Dallas, Texas, com um tiro na garganta e outro na cabeça, e Huxley (Aldous Leonard Huxley, 1894 – 1963), em Los Angeles, com uma injeção “amiga” de LSD. Huxley foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias e literatura de viagem. Foi indicado sete vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, mas nunca ganhou a merecida e cobiçada estatueta. Foi um desbravador da literatura e da consciência humana. Autor de clássicos imortais, como o romance distópico "Brave New World" ("Admirável Mundo Novo"), de 1932, e dos ensaios autobiográficos "The doors of perception" ("As portas da percepção"), de 1954, explorou o uso de alucinógenos como a mescalina, o LSD e outros psicodélicos, a fim de expandir a consciência e descobrir novos horizontes do pensamento humano. A experiência com drogas psicodélicas foi tão importante para Huxley, que o autor planejou deixar a vida em uma viagem de LSD, e, com a ajuda de sua esposa, assim o fez. Conheci-o nos anos 1980, quando li e reli a sua obra. Na biografia do verso de capa, o ano de sua morte: 1963! Na época passou “batido” e somente agora registro a distopia: Huxley morreu no mesmo dia que Kennedy! Onde eu estava mesmo? Na cidade de Fortaleza, no Ceará, na sala de visitas da casa da Dóris Holanda, mãe dos amigos de uma vida inteira: Leda Maria, Nelson, Alexandre, Guilherme, Raul e Paulinho. Estávamos brincando no chão, colando...
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BERTOLT BRECHT – OS IMPRESCINDÍVEIS / JOÃO SCORTECCI

Releitura do poema “Os que lutam”, do dramaturgo e poeta alemão, Bertolt Brecht (Eugen Bertholt Friedrich Brecht, 1898 – 1956), sem ironia, sem deboche e nada parecido com o original. Paródia? Tragicomédia? Talvez. Há homens que lutam vez por outra e são ruins. São mutáveis frente ao bem. E, também, deltas, variantes, abismos. Alguns navegam sem rumo ou qualquer direção. São mutantes do incerto. Há homens que são oportunistas e egoístas. É o que são. Não conhecem o norte e não usam bússolas. Não pensam. Acham que são imortais. Há homens do exército dos que lutam e não são soldados. São traços, rabiscos da paisagem morta! Há homens que são bondosos. Apenas isso. Há outros que travam “moinhos de vento” e são os piores. Há aqueles que escrevem histórias, leis e valores e são indiferentes ao julgar o verbo. Poetas? Poucos. Há homens que são guerreiros da luz. Iluminados! Há homens covardes de coragem, traidores, contraditórios e pífios: no olhar. São sombras e testemunhas. Veem e não enxergam. Neles não há o fogaréu. Não há a brasa dos infernos e nem o mantra do carvão. Há homens que não são nada, e outros, tudo! Há homens que lutam toda a vida da sorte. Aventureiros? Há homens que são imprescindíveis à dor. Estes são homens e gritam por justiça. Há homens que cortam o fio da própria carne. E, pálidos, sangram. Há homens de Brecht em todo o infinito do Céu: do bem e do mal. E no mar, também. Profundo e acolhedor. E no ar da Terra. Desigual, perene e bela. Texto, contexto e (sem)fim. Bertolt Brecht foi um destacado dramaturgo e encenador...
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O EXÍLIO E O REINO DE UMA (IM)PROVÁVEL LEITORA DE CAMUS / MARIA MORTATTI

 Para Rosina Longo Mortatti (in memoriam)Franco-argelino, de origem pobre, apaixonado por futebol, tuberculoso crônico, combatente na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, casado com a linda e talentosa franco-argelina, professora de matemática e pianista Francine Faure (6.12.1914 – 24.12.1979) – sua segunda esposa e que organizou as edições póstumas de sua obra –, amante de outras e da “única”, a atriz espanhola exilada na França, María Casares: esse era o escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista, Albert Camus (7.11.1913 – 4.1.1960) que morreu com 46 anos de idade, vítima de um acidente de automóvel, às 13h55 do dia fatal, quando retornava a Paris, após ter trocado passagem de trem e aceitado insistente oferta de carona do amigo e editor Michel Gallimard, cujo carro perdeu a direção e se chocou contra uma árvore, causando também sua morte cinco dias depois, tendo se salvado apenas a esposa e a filha do editor e parte do manuscrito do romance autobiográfico inacabado, O primeiro homem, que Camus carregava na mala e foi publicado em 1944, por sua filha, Catherine Camus, que também fez publicar, pela Gallimard, em 2017, as 865 cartas de amor do pai para a atriz espanhola, a última delas escrita cinco dias antes de ele morrer. Laureado, aos 44 anos de idade, com o Nobel de Literatura de 1957, “pela sua importante produção literária, que com seriedade lúcida ilumina os problemas da consciência humana nos nossos tempos”, Camus é autor de vasta e diversificada obra, com romances, peças de teatro, ensaios...
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O LEGADO DO LIVREIRO LEON IDZIKOWSKI / JOÃO SCORTECCI

O livreiro, editor e gráfico Leon Idzikowski (1827 – 1865), nasceu na Cracóvia, Polônia. Foi o fundador da maior e mais famosa livraria e editora de Kiev e de toda a Rússia, localizada inicialmente na Avenida Kreschatik, a principal da cidade de Kiev, hoje capital da Ucrânia. Em 28 de dezembro de 1858, aos 31 anos de idade, Leon Idzikowski abriu o seu negócio, no cortiço n. 29, depois expandiu para os lados, nos números 27 e 33-35, perto da atual estação Kreschatik, em Kiev. Foi aprendiz na livraria J. Czech, em Cracóvia, e depois gerente da livraria Krystian Teofil Glücksberg (1796 – 1876), em Kiev, onde aprendeu o ofício de livreiro. Leon Idzikowski morreu jovem, aos 38 anos de idade. Depois de sua morte, o negócio foi administrado, com sucesso, durante 32 anos, pela esposa, Hersylia Idzikowski (Hersylia Buharewicz, 1832 – 1917) até 1897. Imprimiam seus próprios livros – chegaram a empregar mais de 150 funcionários –, e em pouco tempo se tornou a maior editora e livraria de Kiev. Até 1920, a empresa foi gerida por seu filho, Władysław Idzikowski (1864 – 1944). A livraria chegou a ter 50 salas e era composta por vários departamentos: postais e reproduções, livros polacos, livros russos, livros estrangeiros (alemães, franceses, ingleses, italianos), livros infantis e partituras. A sala de leitura – que podia acomodar até 500 pessoas ao mesmo tempo – e a biblioteca de empréstimo tinham mais de 173.000 volumes. Entre 1865 e 1920, a empresa publicou aproximadamente 7.000 títulos. A família Idzikovsky também possuía armazéns e livrarias...
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GUILLAUME APOLLINAIRE, PABLO PICASSO E O ROUBO DA "MONA LISA" / JOÃO SCORTECCI

O poeta e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880 – 1918) morreu jovem, com apenas 38 anos de idade, vítima da gripe espanhola. Considerado o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, é conhecido por sua poesia sem pontuação e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, e de ser o criador da palavra “Surrealismo”. Apollinaire ficou mundialmente conhecido quando foi acusado de cúmplice no roubo, em 21 de agosto de 1911, do quadro “Mona Lisa”, pintado entre os anos de 1503 e 1506, pelo italiano Leonardo da Vinci (1452 – 1519), e exposto no Museu do Louvre, em Paris. O caso teve repercussão internacional, e as investigações levaram a polícia a suspeitar do poeta francês. Ele chegou a ser preso e foi mantido na cadeia por uma semana, até ser solto, por falta de provas. Seu depoimento – não há documentos sobre o que foi dito – levou a polícia a convocar, para interrogatório, o pintor espanhol Pablo Picasso (Pablo Ruiz Picasso, 1881 – 1973), como suspeito de ser o mandante do roubo, mas nada foi encontrado que o incriminasse. Em 1913, a polícia da Itália prendeu o italiano Vicenzo Peruggia, ex-funcionário do Louvre, tentando vender clandestinamente a pintura, movido – foi o que declarou – por um sentimento nacionalista. Em 1914, “Mona Lisa” foi reintegrada ao acervo do Louvre. Historiadores e cientistas da arte afirmam que a mulher retratada é a italiana Lisa Gherardini (1479 – 1542), nascida em Florença, e que seu marido, Francesco del Giocondo,...
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MOMENTOS LITERÁRIOS / MARIA MORTATTI

Momento literário era o título da revista do CEL – Centro de Estudos de Letras da FCLA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara/SP (encampada pela Universidade Estadual Paulista em 1976), onde me licenciei em Letras – Português-Inglês, em 1975. Naquele ano, candidatei-me à presidência do CEL em uma chapa composta por cinco mulheres e um homem. Além de mim, participavam as estudantes Regina Céloia Vieira, Maria Rita Mantese, Luiz Gonzaga Marchezan, Suely do Carmo Máscia, e a bibliotecária Guaraci Maria Nogueira; no conselho editorial, estavam os professores Dante Tringali e Fernando de Carvalho e as estudantes Elisabete de Carvalho e Elizabeth Rocha Leite.Depois de intensa campanha, nossa chapa foi eleita e, pelo que me lembro, fui a primeira mulher a assumir essa função, o que não era pouca coisa para a época. O curso de Letras, frequentado predominantemente por mulheres, era chamado de “espera marido”, preconceito que infelizmente ainda persiste. E, naqueles tempos sombrios da ditadura militar no Brasil, nós, as “moçoilas casadoiras”, éramos acusadas de “alienadas” politicamente, sobretudo pelos estudantes dos cursos de Ciências Sociais e Filosofia. A vitória de nossa chapa nos impunha, então, redobrada responsabilidade para provar competência. Assim fizemos! Entre outras atividades literárias e culturais, editamos boletins e os quatro números trimestrais da revista correspondentes ao ano de 1975. Eram publicados ensaios, resenhas e textos literários de professores e estudantes. O trabalho de edição era...
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PARA GOSTAR DE LER, É SÓ COMEÇAR / MARIA MORTATTI

Quem nunca? Ao menos entre os que frequentaram escola a partir dos anos 1970, quem nunca leu um, alguns ou todos os volumes da coleção Para Gostar de Ler e se encantou com a descoberta ou releitura de tantos grandes escritores brasileiros? Essa coleção, lançada pela editora Ática em 1977 e encerrada em 2013, era destinada aos anos finais do ensino de 1o. grau e ensino de 2o. grau, e nela foram publicados crônicas, contos, poemas. Com as séries Bom Livro – de clássicos da literatura brasileira e portuguesa – e Vaga-Lume – livros de literatura para jovens –, a coleção Para Gostar de Ler compôs exitosa estratégia editorial da Ática, originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo. Sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 –  ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial, essas iniciativas arrojadas e pioneiras contribuíram para consolidação das expressões “paradidático” e “leitura extraclasse”, em referência ao produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Contribuíram, ainda, para a divulgação da produção literária brasileira e para programas de incentivo à leitura e à formação de leitores, no contexto das políticas educacionais e culturais decorrentes das mudanças estabelecidas pela lei n. 5.692/1971, que tornou obrigatório o ensino de oito anos.Como conta Jiro Takahashi em entrevistas já antológicas, a história da coleção Para Gostar de Ler começou em 1976, com uma conversa telefônica...
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O SOFÁ DO NADA DO POETA MANOEL DE BARROS / JOÃO SCORTECCI

Tudo ou nada, na direção de Manoel de Barros, o poeta. Quero o nada e depois o tudo, sentar-me, indolente, e lá permanecer, por séculos. Isso basta, o bastante. Manoel de Barros (1916 – 2014) nasceu em Cuiabá, estado do Mato Grosso, e aos 13 anos de idade se mudou para Campo Grande, hoje Mato Grosso do Sul. Lá, ficou – quase – sempre. Escreveu o “Livro sobre nada”, de 1996, obra que eu gostaria de ter escrito. Belíssima! Falar sobre o nada, sempre me ocupou profundamente. Gosto da ternura do nada, inexistente, selvagem e mortal. No nada não há dor e nem medo. Somente solidão! No meu livro de poemas “Água e sal – Fragmentos de tempo algum”, de 1990, prefaciado pelo mineiro Fábio Lucas, poetei alguns poucos versos sobre o nada. Ficou, na época, a promessa de, um dia, cutucar novamente o assunto e, então, talvez, escrever. Ficou. Tenho até um provável título: “Nada de alguém”, quase isso. Manoel de Barros é absoluto. Escreveu: “Uso a palavra para compor meus silêncios.” "O nada do meu livro é nada mesmo.". Não o conheci pessoalmente. Uma pena! Trocamos assobios, passarinhos, bilhetes e livros. Nunca tempestades! Mais um dos descuidos literários, de tantos, em 50 anos. Perdi – não me conformo – os passarinhos de Quintana, a vida Severina, de João Cabral, e o “Poema sujo”, de Ferreira Gullar. Não adianta me justificar por nada – eu os perdi, e pronto. Os poetas são malvados: gostam de travessuras, piruetas e castigos. São serpentes! Morrem do nada – alguns, várias vezes –, não vão embora, não se despedem, nunca. Ficam nos azucrinando,...
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PÉ DE CEBOLINHA VERDE E UM LUGAR PARA TODAS AS COISAS / JOÃO SCORTECCI

Nos anos 1960 – menino de tudo – resolvi plantar um maço de cebolinha verde no quintal de casa. “Planta que nasce novamente!” Foi o que me disseram. Curioso que sou, obedeci. Peguei uma enxada e comecei a cavar e a revirar a terra. Na verdade, cavei um buraco, dos grandes. Papai Luiz – que apareceu do nada – perguntou-me: “O que você está fazendo?”. “Uma horta!”, respondi. “E esse buraco?” Não respondi. Continuei cavando e jogando a terra no monte, ao lado. Ele se acocorou e – pacientemente – esperou por mim, até eu respirar e ouvir. “Filho, duas coisas são importantes na vida. A primeira é de ordem prática, para todas as coisas que você for fazer. Escolha o propósito, execute a tarefa e, depois, conclua com êxito”. Interessante, pensei. “E a segunda?” “A segunda é de ordem moral: antes de tirar algo do seu lugar, certifique-se, primeiro, onde irá colocá-la!”. Papai Luiz se levantou e, em silêncio, partiu. Eu, reflexivo, com a enxada, devolvi toda a terra de volta para o buraco. Plantei o maço de cebolinha verde, molhei a terra e a entreguei ao deus Sol, na sorte das minhas lembranças. Pesquisando sobre algoritmos, encontrei a biografia do matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo e escritor persa Alcuarismi (Abu Abdalá Maomé ibne Muça ibne Alcuarismi, 780 – 850), erudito na Casa da Sabedoria (ou Casa do Saber), biblioteca e centro de traduções estabelecido à época do Califado Abássida, em Bagdá, no Iraque. No seu livro “Da Restauração e do Balanceamento”, Alcuarismi apresentou a primeira solução sistemática das equações lineares...
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MARIE SKLODOWSKA CURIE: UMA IRRADIANTE MULHER / MARIA MORTATTI

A cientista polonesa, naturalizada francesa, Maria Sklodowska/Marie Sklodowska Curie (07.11.1867 – 04.07.1934) foi pioneira e exemplar nas muitas atividades que realizou em uma sociedade sexista e xenófoba. Ela e o marido, o físico francês Pierre Curie (15.05.1859 – 19.04.1906), descobriram os elementos químicos Rádio e Polônio – este assim denominado em homenagem à terra natal da cientista – e foi a primeira mulher laureada com o Prêmio Nobel, por duas vezes: o de Física, em 1903, compartilhado com o Pierre e Henri Becquerel; e o de Física, em 1911. Foi também a primeira mulher a se formar em Ciências na Universidade Sorbonne, na França; a primeira a obter o título de doutorado – com a tese defendida em 1903, em que descrevia detalhadamente seus esforços para compreender a origem da radioatividade; a primeira professora catedrática naquela universidade francesa; e a primeira mulher a ser sepultada por seus próprios méritos no Panteão de Homens Ilustres de Paris.Filha de professor-cientista e de professora-diretora de escola, após ter considerado se dedicar à literatura, decidiu-se pelos estudos em física e química, motivo de sua partida para a França, uma vez que na Polônia, sob domínio russo na época, mulheres não podiam frequentar universidades. Destacou-se, ainda, pela dedicação à educação científica. Na França, além de professora na Sorbonne, lecionou em escola secundária e inovou no ensino de Física, por meio de perspectiva experimental, buscando despertar vocações científicas em crianças e mulheres. Em 1985, casou-se...
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BEIJOS ROUBADOS DE CORA CORALINA E RACHEL DE QUEIROZ / JOÃO SCORTECCI

O dia em que tudo aconteceu. O beijo roubado de Anna Lins! Não foi lá nos Becos de Goiás e nem nas águas do Rio Vermelho. Foi quando Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas perdeu o medo e virou Cora Coralina. Foi no ano de 1983, na sede da União Brasileira dos Escritores – UBE, quando da entrega do Prêmio Intelectual do Ano – Troféu Juca Pato. Eu, pequenino; e ela, gigante! Curvei-me quase meio metro, para que ela pudesse me roubar um beijo de poeta. Poucas mulheres receberam o Troféu Juca Pato, outorgado pela entidade de escritores. Foi Cora Coralina – dos becos de Goiás – quem puxou a fila literária. Depois, vieram Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiróz, Renata Pallottini e Tatiana Belinky. Coube à escritora luso-brasileira Dalila Teles Veras lançar – contra tudo e todos – a candidatura da poeta goiana e, a duras penas, conseguir as 30 assinaturas obrigatórias, na época, para disputar o pleito. Foi um momento de ruptura importante na UBE, que fez história. Cometi o mesmo beijo – também roubado – no ano de 1992, na Rachel de Queiroz, conterrânea e amiga da Família Paula. Como meu avô paterno, João Batista de Paula, o Batista da Light, a escritora nasceu na cidade de Quixadá, no Ceará, e foi amiga de uma vida inteira. Quando soube meu nome, perguntou: “Você é neto do Batista da Light?” “Sou.” “O Batista era muito querido, estava sempre alegre e sorrindo", sentenciou ela. Rachel de Queiroz estava sentada – confortavelmente – numa poltrona na sala da diretoria da UBE, aguardando o início da cerimônia de entrega do Juca Pato....
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O MITO DE PIGMALEÃO, AFRODITE E GALATHEA / JOÃO SCORTECCI

Pigmaleão, na mitologia grega, foi um rei da ilha de Chipre, localizada na Bacia do Levante, no Mar Mediterrâneo. Segundo o poeta romano Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43 a.C. – 17 ou 18 d.C.), em sua obra Metamorfoses, Pigmaleão – que também era escultor –apaixonou-se por uma estátua que esculpira em marfim, ao tentar reproduzir a mulher ideal. Ele havia decidido viver em celibato, por não concordar com a atitude libertina das mulheres de Chipre, conhecidas como “cortesãs”. A deusa Afrodite – figura do amor, da sedução e da sexualidade –, apiedando-se de Pigmaleão e não encontrando em toda a ilha uma mulher que, em beleza e pudor, chegasse aos pés da que esculpira, transformou a estátua numa mulher de carne e osso, de nome Galathea, com quem Pigmaleão se casou e teve uma filha chamada Paphos, que deu nome a uma cidade portuária na costa sudoeste da ilha. Habitada desde o período neolítico, Paphos tem vários locais relacionados com o culto da deusa Afrodite, por ser o local mítico do seu nascimento. O Mito de Pigmaleão traduz um elemento do comportamento humano: a capacidade de determinar seus próprios rumos, concretizando planos e previsões particulares ou coletivas. Os mitos nos ajudam a entender as relações humanas e guardam em si a chave para o entendimento do mundo. Uma versão moderna da lenda é a peça teatral Pigmaleão (1916) – com posteriores adaptações teatrais e cinematográficas – escrita pelo dramaturgo, romancista e jornalista irlandês George Bernard Shaw (1856 – 1950). Na peça, em vez de uma estátua transformada em...
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CONSELHOS DE BOILEAU SOBRE A ARTE DE ESCREVER / JOÃO SCORTECCI

O poeta e tradutor francês Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux, 1636 – 1711), autor da obra “Discurso sobre a sátira” (1666), em que zomba do clero e da aristocracia, pinta quadros divertidos e parodia escritores, é considerado um polemista – aquele que trava polêmicas – e um teórico da literatura francesa. Escrevia, principalmente, para a aristocracia, dentro da tradição de Aristóteles e Horácio. Em 1674, publicou “A arte poética” (“L’Art poétique”), poema didático de 1.100 alexandrinos clássicos, dividido em quatro canções – obra que influenciou toda uma geração de escritores. Em 1677, foi nomeado, juntamente do poeta dramaturgo e matemático Racine (Jean Baptiste Racine, 1639 – 1699), historiógrafo do rei Luís XIV, e, em 1684, entrou para a Academia Francesa. Em 1687, publicou “Reflexões sobre Longino”, popularmente conhecido como “São Longuinho”, santo da Igreja Católica. Boileau foi venerado como grande poeta e inspirador de Racine e de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622 – 1673), ator e dramaturgo francês, considerado um dos mestres da comédia satírica. Boileau, nos versos iniciais do Canto I de “A arte poética”, afirma a necessidade de um talento inato, sem o qual a escrita poética lhe parece impossível. No entanto, ele sustenta a partir daí que esse talento natural não pode ser suficiente por si só, que ele deve se submeter às regras da poesia e, portanto, ao rigoroso aprendizado dessa arte. A perfeição só pode ser alcançada quando o gênio e o respeito pelas regras são combinados. Escreveu: “Há certos espíritos...
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NOS BRAÇOS DE DRUMMOND, EM ESTADO DE POESIA / MARIA MORTATTI

Dizem que a poesia salva e a memória falha. Mas há dias em que a poesia – insensível – me falha e o que me salva é a memória da poesia que me salvou naqueles dias e deles ficou como única prova – tangível – de sua existência. E há outros – tão sentimentais – em que até as escamas da sopa esfriando no prato são encobertas pelo cartaz amarelo na consciência: “neste país é proibido sonhar”. Assim aprendi com Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987), quando o vi pela primeira vez e nele toquei na estante da Biblioteca Pública Municipal "Mário de Andrade" de Araraquara. Desde então, quando, enclausurada nos sombrios enigmas da quadrilha, procuro a palavra que falta num verso que inunda minha vida inteira, mas a pena não quer escrever, lembro-me de nossos primeiros encontros delicadamente registrados no caderninho – secreto – da menina de 17 anos. Foi assim que, tempos atrás, por alguma magia na noite cega – consegui penetrar surdamente por uma fresta no reino das palavras. Lá reencontrei em estado de dicionário cada letra da palavra que nomeia a falta e a esperança, perdi-me entre os infinitos poemas que estão por ser escritos, até que, vencida pela fadiga das retinas, repousei a cabeça sobre a pedra e adormeci no caminho. Outubro chegava ao fim, quando me despertou um anjo torto com outro cartaz amarelo: neste país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era aniversário do poeta: 121 anos! Quase tropecei nas palavras, ainda impregnadas de sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Sobre o tapete ou duro piso, compusemos...
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JOSÉ OLYMPIO, CASA GARRAUX E A SEMANA DE ARTE MODESTA EM BATATAIS/SP NO ANO DE 1987 / JOÃO SCORTECCI

A José Olympio Editora foi fundada em 1931 pelo editor e livreiro batataense José Olympio (José Olympio Pereira Filho, 1902 – 1990), na cidade de São Paulo. Em 1918, com 16 anos de idade, José Olympio deixou Batatais – região metropolitana de Ribeirão Preto – e se mudou para a capital paulista, com o objetivo de estudar Direito. Conseguiu um emprego na Papelaria, Livraria e Typographia Casa Garraux (A. L. Garraux & C.), então de propriedade de Charles Hildebrand. Trabalhou na seção de livros, e o serviço consistia em abrir caixas de livros e limpar a poeira das estantes. Depois passou a ajudante de balconista, época em que tomou gosto pelos livros. A Casa Garraux era frequentada por políticos e escritores, como Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Em 1926, com a morte de Charles Hildebrand, José Olympio assumiu o cargo de gerente da seção de livros. No final da década de 1920, José Olympio começou a se interessar por livros raros e se tornou um respeitado entendido no assunto. Com a morte do advogado e jornalista, Alfredo Pujol (Alfredo Gustavo Pujol, 1865 – 1930), colecionador de livros raros, Olympio fez uma oferta para a família e comprou todo o acervo desse colecionador. Foi o início do seu legado. Adquiriu – depois – vários outros acervos, para, em 1931, aos 28 anos de idade, fundar a Casa José Olympio Livraria e Editora, na Rua da Quitanda, 19 A, na capital paulista. Em 1934, a livraria se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, então centro intelectual do Brasil....
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GRACILIANO RAMOS: ARTE É ISSO / MARIA MORTATTI

“Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. (...) Arte é isso. (...) Revele-se toda.” Esse trecho se encontra na carta de Graciliano Ramos (27.10.1892 – 20.03. 1953) dirigida a sua irmã Marili, a propósito de um conto que ela escrevera. Li recentemente a carta, mas esses conselhos – que o escritor expõe e realiza, em sangue e carne, em sua obra – ecoam na memória de leitora e em meu ofício de escritora. Desde os primeiros que li nos anos 1970 – São Bernardo, Angústia, Vidas secas – e os que se seguiram, como: A terra dos meninos pelados, Histórias de Alexandre, Infância, Memórias do cárcere, Viventes das Alagoas, Alexandre e outros heróis, admirei o estilo conciso, direto e encantatório de Graciliano. E cada vez que me ponho a escrever, sinto-me um pouco como “o menino mais velho”, personagem de Vidas Secas, que “nunca tinha ouvido falar em inferno”. Perguntou à mãe, Sinhá Vitória, ao pai, Fabiano, e à cachorra Baleia. O pai não deu atenção, a mãe lhe disse que era um lugar ruim e, quando quis saber se ela tinha visto, Sinhá Vitória “zangou-se e aplicou um cocorote”. Consolou-se com Baleia, contando-lhe histórias com seu vocabulário minguado, valendo-se de exclamações e gestos, e a cachorra respondendo com o rabo e a língua. Quando me pus a escrever este texto, esse episódio voltou à memória, simbolizando a obcecada...
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PALMEIRA DOS INDÍOS E A CADELA BALEIA / JOÃO SCORTECCI

O ator Jofre Soares (José Jofre Soares, 1918 – 1996) nasceu em Palmeira dos Índios, agreste alagoano, distante 136 km da capital, Maceió. Terra do “Homem da Capa Preta” (Tenório Cavalcante, 1906 – 1987) e também do escritor Graciliano Ramos (1892 – 1953), autor de Vidas secas e Memórias do cárcere. O ator Jofre Soares começou sua carreira em 1961, aos 43 anos de idade. Atuou em mais de 100 filmes, entre eles: O bom burguês (1979), O grande mentecapto (1989), Terra em transe (1967), Memórias do cárcere (1984) e Bye bye Brasil (1979). Antes disso, foi oficial da Marinha por 25 anos. Já tinha se aposentado como marinheiro e se dedicava ao teatro amador e ao circo da cidade, no qual era um palhaço, quando o cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928 – 2018) o conheceu e o convidou para fazer o filme Vidas secas, baseado na obra de Graciliano Ramos. A cadela vira-lata, que interpreta Baleia, foi encontrada pelo cineasta embaixo de uma barraca de frutas, numa feira de Palmeira dos Índios. Uma das cenas mais famosas do filme Vidas secas é o abatimento da cadela Baleia, em que é mostrado o animal sendo atingido por um tiro de espingarda, dado por seu dono, Fabiano. Quando o filme foi exibido no Festival de Cannes, na França, em 1964, o público e a crítica francesa ficaram impressionados com o realismo da cena e acreditaram que a cadela tivesse sido de fato sacrificada de verdade durante as filmagens, o que não foi verdade. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no ano de 2018, o diretor de fotografia do filme Luiz Carlos Barreto...
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"RODA DE LIVROS", ENGENHOCA DO CAPITÃO RAMELLI / JOÃO SCORTECCI

O engenheiro e capitão italiano Agostino Ramelli (1531 - 1610), nasceu na comuna de Ponte Tresa, hoje Suíça. Foi o inventor da “Roda de livros”, uma estante rotativa que possibilita ler, consultar e pesquisar vários livros num mesmo local. Foi inventada numa época em que livros grandes apresentavam problemas práticos para os leitores. Girava como se fossem movimentos de um moinho movido a água. Para garantir que os livros permanecessem em um ângulo consistente, Ramelli incorporou ao projeto engrenagens epicíclicas. Quando a roda gira, cada prateleira gira na mesma proporção, permanecendo nivelada. Ramelli ficou conhecido por escrever e ilustrar o livro de projetos de engenharia “As várias e engenhosas máquinas do capitão Agostino Ramelli” (“Le diversas et artificiose machine del Capitano Agostino Ramelli”), que, além de seu projeto da “roda de livros”, contém 195 designs, mais de 100 dos quais são máquinas de levantamento de água, como bombas d'água, pontes, moinhos e um possível precursor do motor Wankel - motor rotativo de combustão interna, inventado pelo engenheiro alemão Felix Wankel (1902 – 1988), que utiliza rotores com formato semelhante ao de um triângulo em vez dos pistões dos motores alternativos convencionais. Durante o "Cerco de La Rochelle”, ordenado por Luís XIII, rei da França, e comandado pelo Cardeal de Richelieu (Armand Jean du Plessis, 1585 - 1642), que acabou com a capitulação da cidade, em 28 de outubro de 1628, Ramelli construiu com sucesso uma mina sob um bastião - posto avançado para a defesa de um território...
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CAMILO CASTELO BRANCO E O AMOR: PERDIÇÃO E SALVAÇÃO / MARIA MORTATTI

Certos livros têm um misterioso poder de atração, antes, durante e depois da leitura. Há os inteiramente sedutores, que convidam à releitura. Há os que basta ler uma vez, pois cumpriram sua missão, deixando um ou outro aspecto gravado nas estantes da memória: o momento da leitura, uma frase, um verso, um enredo, um episódio, um protagonista, a capa, o título. De duas novelas do escritor português Camilo Castelo Branco (16.03.1825 – 1º.06.1890), ficaram-me principalmente os títulos: Amor de perdição e Amor de salvação. Gostei de lê-las durante o curso de Letras e depois, nos anos 1980, com meus alunos do ensino médio – na edição pela Série Bom Livro, da Ática. O foco eram, então, as caraterísticas do Ultrarromantismo português – amores idealizados e arrebatadores, sofrimento e melancolia – presentes em sua turbulenta vida, nessas novelas e na extensa obra do prolífico e popular escritor, de estilo por vezes também satírico e bem-humorado. Talvez o primeiro a viver dos rendimentos de suas publicações – mais de duas centenas, alguns sob pseudônimo, entre romances, novelas, crônicas, poemas, comédias, ensaios, traduções, além dos inéditos que deixou. Filho bastardo, órfão desde criança, leitor de clássicos portugueses e latinos, com personalidade irrequieta e apaixonada, marcada por amores tumultuados e proibidos, prisão por adultério, dificuldades financeiras e sífilis, causa da cegueira que, impedindo-o de ler e escrever e depois de esgotadas todas as tentativas de cura, levou-o a cometer suicídio, aos 65 anos...
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A SÉRIE VAGA-LUME, A LITERATURA "PARADIDÁTICA" E A FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL / MARIA MORTATTI

Lançada em 1973, sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 –  ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial brasileiro, a Série Vaga-Lume da editora Ática deu início à publicação de livros de literatura para público jovem que se tornaram clássicos. E também consolidou o termo “paradidático” para designar esse produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Embora livros desse tipo fossem utilizados esparsamente nas escolas brasileiras desde o início do século XX – com destaque para Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim –, a criação do termo “paradidático” é atribuída ao professor Anderson Fernandes Dias, diretor-presidente da Editora Ática, e ao editor e professor Jiro Takahashi, tendo se estendido a material de apoio de várias matérias do currículo escolar, além de Língua Portuguesa. Com reformulações no projeto original e desdobramentos na Série Vaga-Lume Júnior, desde os anos 1970 mais de 150 títulos foram lançados ou relançados, superando, segundo a editora, oito milhões de exemplares vendidos até 2021. Originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo, a Ática iniciou, em 1970, a publicação de paradidáticos na área de língua portuguesa e literatura com a Série Bom Livro de clássicos de literatura brasileira e portuguesa. Com a democratização do ensino público decorrente das mudanças estabelecidas pela Lei n. 5.692, de 1971 – que, entre...
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RILKE E O JOVEM POETA KAPPUS / JOÃO SCORTECCI

Dez cartas – idas e vindas – e nenhuma poesia! O poeta checo Rilke (Rainer Maria Rilke, 1875 – 1926), em carta enviada ao jovem jornalista e cadete austríaco Franz Xaver Kappus (1883 – 1966), que ambicionava ser um poeta: “Ninguém de fora pode julgar se um autor deve continuar ou desistir de escrever: cada artista precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se entende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Na biografia de Kappus encontrei romances, roteiros e nenhuma poesia. Teria desistido? Viver Rilke e nunca ter “cometido” um poema? Impossível. Pergunta: O que teria acontecido com a décima primeira carta? Existiu de fato? De duas, uma: escrita e nunca enviada – ou nunca respondida? Ficou o mistério. Encontrei na Carta n. 7 um soneto de Rilke dedicado ao jovem Kappus: “Treme sem queixa por meu coração,/sem suspiro, uma dor muito sombria./ Só dos sonhos a nívea floração/é a festa de algum mais tranquilo dia.//Tanta vez a grande interrogação/se me depara! Encolho-me, e com fria/ timidez passo, como passaria/por bravo mar, sem aproximação.//Desce, então, sobre mim, turva amargura/como esses céus cinzentos de verão/onde uma estrela às vezes estremece.//Tateantes, minhas mãos vão à procura/do amor, buscam palavras da oração/que meu lábio deseja e não conhece” Busco, desde então, encontrar – mesmo que perdido, que seja – um poema...
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MASSAO ONO, PEDRO MORAES, MARIA VIANNA, CUNHA BUENO E VINICIUS DE MORAES: POSTO QUE É CHAMA! / JOÃO SCORTECCI

Quando da morte do poeta, diplomata e compositor Vinicius de Moraes (Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes, 1913 – 1980), em 9 de julho, uma quarta-feira, o editor e artista gráfico Massao Ohno (1936 – 2010), ligou-me e deu – de sola – a triste notícia: “Scortecci, o Vinicius morreu!”. “Não sabia”, respondi, surpreso. Massao Ono, aceleradíssimo, metralhou: “Falei agora com o Pedro, filho do Vinicius. Sabe, né? Ele autorizou usarmos aquela foto do pai de perfil, num cartaz! Sabe qual é, né?” “Não”, respondi. “Vinicius de perfil, sem a garrafa e o copo de uísque, claro!”, justificou. E continuou falando, sem parar: “Faço a arte final, “fulano de tal” cuida dos fotolitos e você imprime os cartazes. Combinado?” Topei. Massao Ohno, pilhado, continuou: “Estão organizando uma missa, algo assim, na igreja da Consolação, aqui em São Paulo, no sábado, dia 12, em sua homenagem. A ideia é distribuir o cartaz na cerimônia. Temos 3 dias!” Terminamos a conversa, com a promessa de nos falarmos novamente, no final do dia. Liguei, então, para a atriz e poeta cearense Maria Vianna, atriz em filmes como “Menino da porteira”, “A pequena órfã” e autora da Scortecci, com o livro de poemas “Vertical dos Descaminhos”. Contei-lhe o plano. Maria Vianna, prontamente, ligou para o Deputado Cunha Bueno, também autor da Scortecci e, na época, Secretário de Cultura do Estado de São Paulo. O pedido foi curto e irrecusável: “Secretário, precisamos imprimir 500 cartazes, formato meia folha, papel couchê, para um evento em homenagem ao Vinicius! Feito?” Na hora,...
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FALAR NA LÍNGUA DO SANTO E NA LÍNGUA DO “P” / JOÃO SCORTECCI

"Pajubá" é um dialeto ou criptoleto – linguagem de um grupo, usada para excluir ou confundir pessoas de fora do grupo – da linguagem popular, constituído da inserção em língua portuguesa de palavras e expressões provenientes de línguas africanas ocidentais, como nagô e iorubá. O pajubá (ou bajubá) é muito usado pelo chamado “povo do santo”, praticantes de religiões afro-brasileiras, como o candomblé. No Brasil, a partir de 1968, durante o período da ditadura militar, foi usado como código entre homossexuais, travestis e, posteriormente, adotado pela comunidade LGBT e simpatizantes. A palavra “pajubá” tem o significado de fofoca, novidade e notícia. Entre as palavras populares nesse criptoleto, estão: “mona” – gay efeminado; “gongar” – ato de zombar de alguém ou de alguma coisa; e “babado” – novidade. O “pajubá” reúne também características linguísticas próprias, como o vocabulário, o movimento performático do corpo, a tonalidade das palavras e o contexto cultural. Ganhou seu primeiro documento oficial em 1995, com a publicação do dicionário Diálogo de bonecas, organizado por Jovana Baby – batizado Osias Cardoso –, presidente da extinta Astral – Associação de Travestis e Liberados. Quando criança – isso nos anos 1960 – aprendi a cifra da “Língua do P”, que consiste em introduzir a consoante “P” antes de cada sílaba da palavra. Exemplo: “João gosta de comer feijão e farinha”, ficaria assim: “PEJoPEão PEgosPEta PEde PEcoPEmer PEfeiPEjão PEe PEfaPEriPEnha”. No dicionário Diálogo de bonecas até arrisquei um poema à la Drummond: “Ocó...
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